17.12.15

Amadeu Baptista (Homenagem a Luísa Dacosta)





HOMENAGEM A LUÍSA DACOSTA



Não sei, querida, se de onde estás agora
consegues ver o mar.


Não sei se nesse lugar os teus amigos
te visitam e entregam finalmente
a faca que aos gritos reclamaste
na casa onde estavas para morrer.


Não sei se o céu te recebeu e agora tudo
não é mais do que uma letra
que falta contornar.


Onde estás escuta-se o Nocturno
para Orquestra, op.70, de Martucci?


As aves são as mesmas que tu viste
a progredir no azul da praia?


Há aí crianças?


No termo dos teus dias pedias aos amigos
uma faca para te matares.


Uma razão benigna cobria-te o espírito
porque o que tinhas era insuportável
e não há o que tenha gumes mais desesperados
do que a lucidez.


Quem morre há-de saber o que encontrar.


Após a luz uma outra luz existe,
que é mais profunda e chega de mais longe,
o oculto brilho que habita a faca que pediste.


Com muito poucas sombras à tua porta,
tu cerzias a escrita, enquanto os pássaros
te tocavam a cabeça
e um esbracejo de mulheres se afadigava
a estender a migalha de sargaço
que a nortada trouxe.


Sabias bem como atravessar os campos da noite
e que, algures no tempo, deixaremos
de cá estar para registar a perda.


Sabias bem, querida,
que na polpa do corpo só o desejo resta
e que a sede permanece e não se extingue.


Subiste às árvores durante toda a vida.


Por ti subiu o fogo e às águas vens,
para que o tudo e o nada se consumam
e de ti façam uma árvore de vento.


A tua escrita, querida, ficará
cerzida a essa árvore, com a bênção
das marés que hão-de vir,
onda após onda sobre o areal
de tudo quanto amaste.


A palavra é sagrada,
escreveste, um dia.


E assim há-de ser para todo o sempre,
até que nunca mais haja partida.



Amadeu Baptista

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