HOMENAGEM A LUÍSA DACOSTA
Não sei, querida, se de onde estás agora
consegues ver o mar.
Não sei se nesse lugar os teus amigos
te visitam e entregam finalmente
a faca que aos gritos reclamaste
na casa onde estavas para morrer.
Não sei se o céu te recebeu e agora tudo
não é mais do que uma letra
que falta contornar.
Onde estás escuta-se o
Nocturno
para Orquestra, op.70, de Martucci?
As aves são as mesmas que tu viste
a progredir no azul da praia?
Há aí crianças?
No termo dos teus dias pedias aos amigos
uma faca para te matares.
Uma razão benigna cobria-te o espírito
porque o que tinhas era insuportável
e não há o que tenha gumes mais desesperados
do que a lucidez.
Quem morre há-de saber o que encontrar.
Após a luz uma outra luz existe,
que é mais profunda e chega de mais longe,
o oculto brilho que habita a faca que pediste.
Com muito poucas sombras à tua porta,
tu cerzias a escrita, enquanto os pássaros
te tocavam a cabeça
e um esbracejo de mulheres se afadigava
a estender a migalha de sargaço
que a nortada trouxe.
Sabias bem como atravessar os campos da noite
e que, algures no tempo, deixaremos
de cá estar para registar a perda.
Sabias bem, querida,
que na polpa do corpo só o desejo resta
e que a sede permanece e não se extingue.
Subiste às árvores durante toda a vida.
Por ti subiu o fogo e às águas vens,
para que o tudo e o nada se consumam
e de ti façam uma árvore de vento.
A tua escrita, querida, ficará
cerzida a essa árvore, com a bênção
das marés que hão-de vir,
onda após onda sobre o areal
de tudo quanto amaste.
A palavra é sagrada,
escreveste, um dia.
E assim há-de ser para todo o sempre,
até que nunca mais haja partida.
Amadeu Baptista
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