22.10.11
Pablo Neruda (Eu fui marcando com cruzes de fogo)
(Poema 13)
Eu fui marcando com cruzes de fogo
o atlas branco do teu corpo.
A boca era uma aranha que corria a esconder-se.
Em ti, atrás de ti, temerosa, sedenta.
Histórias para contar-te à beira do crepúsculo
boneca triste e meiga, para que não estivesses triste.
Um cisne, uma árvore, algo longínquo e alegre.
O tempo da vindima, o tempo maduro e frutífero.
Eu que vivi num porto que era de onde te amava.
A solidão percorrida de sonho e de silêncio.
Encurralado entre o mar e a tristeza.
Calado, delirante, entre dois gondoleiros imóveis.
Entre os lábios e a voz, algo vai já morrendo.
Algo com asas de pássaro, algo de angústia e de olvido.
Da mesma forma que as redes não retêm a água.
Boneca minha, quase nem ficam gotas tremendo.
Mesmo assim algo canta entre estas palavras fugazes.
Algo canta, algo sobe até à minha ávida boca.
Oh poder celebrar-te com todas as palavras de alegria.
Cantar, arder, fugir, como um campanário nas mãos de um louco.
Triste ternura minha, mudas-te em quê de repente ?
Quando eu cheguei ao vértice mais atrevido e frio
fecha-se o meu coração como uma flor nocturna.
PABLO NERUDA
Vinte poemas de amor e uma canção desesperada
(1924)
(Trad. F.A.Pacheco)
[Ruialme]
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