29.4.25

António Maria Lisboa (Poema H)




POEMA H 

 

Sei que dez anos nos separam de pedras 
e raízes nos ouvidos 

e ver-te, ó menina do quarto vermelho, 
era ver a tua bondade, o teu olhar terno 
de Borboleta no Infinito  

e toda essa sucessão de pontos vermelhos no espaço 
em que tu eras uma estrela que caiu 
e incendiou a terra  

lá longe numa fonte cheia de fogos-fátuos. 


António Maria Lisboa

 .

27.4.25

Manuel Moya/ Xi Shuao (A figueira)




LA HIGUERA

 

Quien una vez te ha visto, ya nunca te olvida,
como no se olvida el viento
cuando rumia desde dentro de los árboles,
o el olor de la higuera trepando por el abril crecido.
Hoy sólo son sombras en el rojo cáliz de la tarde
pero tu voluntad basta para que la luz crezca en la luz
y ensanche su campo como un río en su crecida.

Yo, que he muerto mil veces,
yo, que me aferro a tu causa mientras huyen las nubes,
me siento arder contigo
bajo el aroma lácteo de la higuera.
Porque con ella vienes y porque eso me basta.


Xi Shuao Quan

 

 

Quem uma vez te viu, nunca mais te esquece,
como não se esquece o vento,
a resmungar por dentro das árvores,
ou o cheiro da figueira trepando pelo Abril medrado.
Hoje são apenas sombras no cálice vermelho da tarde,
mas a tua vontade basta para a luz crescer na luz
e alargar o seu campo como um rio a transbordar.

Eu, que mil vezes morri,
eu, que à tua causa me agarro enquanto as nuvens fogem,
sinto-me ardendo contigo
sob o aroma leitoso da figueira.
Porque tu vens com ela e porque tanto me basta.


(Trad. A.M.)

.

26.4.25

Javier Olalde (Não morre o sol)


 

NO MUERE EL SOL

 

No muere el sol, camina 
crepúsculo a crepúsculo 
siguiendo el horizonte, 
traspasándolo, 
acarreando la luz 
hacia poniente. 

No muere el sol, regresa 
con la mirada clara 
de la aurora 
para llevarse el tiempo 
día a día.

Javier Olalde

  

Não morre o sol, caminha
ocaso a ocaso
seguindo o horizonte,
ultrapassando-o,
acarretando a luz
para poente.

Não morre o sol, regressa
com o olhar claro
da aurora
para levar o tempo
dia a dia.


(Trad. A.M.)


>>  Javier Olalde (sítio of/ tudo+algo/18p) / lLetralia (6p) / Todo literatura (resenha)

.

24.4.25

Camilo Castelo Branco (Os amigos)




OS AMIGOS

 

Amigos cento e dez, e talvez mais,
eu já contei. Vaidades que eu sentia!
Supus que sobre a terra não havia
mais ditoso mortal entre os mortais.
 
Amigos cento e dez, tão serviçais,
tão zelosos das leis da cortesia,
que eu, já farto de os ver, me escapulia
às suas curvaturas vertebrais.
 
Um dia adoeci profundamente.
Ceguei. Dos cento e dez houve um somente
que não desfez os laços quase rotos.
 
– Que vamos nós (diziam) lá fazer?
Se ele está cego, não nos pode ver…
Que cento e nove impávidos marotos!

Camilo Castelo Branco

[Canal de poesia]

 .

22.4.25

Luis Eduardo García (Testamento)




TESTAMENTO

 

Si muero accidentalmente por bala
o acaso
“HOMBRE JOVEN POR GRANADA DESTRUIDO”
dejo listas mis Obras Completas en la carpeta “Poesía” 

la contraseña es “poeta judío alemán rumano
nacido en lo que ahora es Ucrania”. 

Favor de dejar la pornografía en orden.
 

Luis Eduardo García 

[Ediciones Liliputienses

 

Caso eu morra acidentalmente com tiro
ou porventura
‘Homem jovem desfeito por granada’
deixo prontas na pasta ‘Poesia’
as minhas Obras Completas 

a senha é ‘poeta judeu alemão romeno
nascido na actual Ucrânia’. 

Favor deixar em ordem a pornografia.
 

(Trad. A.M.)

 .

21.4.25

Luis Ramos (Os anjos anómalos)




LOS ÁNGELES ANÓMALOS 

(II)
 

Nunca se sabe. 

Somos tan prescindibles, tan efímeros, 
que en el agua del río que miramos
no queda de nosotros, nada más
que la imagen escasa del recuerdo. 

Pero eso sí,
           hay algo que nos salva,
algo que nos distancia de la nada,
y es ese tintineo sereno de la hoja
que observamos y vivimos asombrados. 

En ese baile nuevo,
en ese percutir sencillo está la vida.
 

Luis Ramos 

 

Nunca se sabe.

Somos tão prescindíveis, tão efémeros,
que na água do rio que contemplamos
não fica de nós mais que
a imagem escassa da lembrança.

Mas isso sim,
           há algo que nos salva,
algo que nos distancia do nada,
e é esse tintinar sereno da folha
que observamos e vivemos assombrados.

Nessa dança nova,
nesse singelo percutir está a vida.


(Trad. A.M.)

.

19.4.25

Casimiro de Brito (Nem imaginas)

 



Nem imaginas o que desejo que tu sejas

sem nunca deixares de ser uma mulher: 
uma cobra uma deusa uma raposa

um anjo uma cama de areia uma melodia uma
escultura de mármore 
plantas subaquáticas uma mártir uma longa 
gota de água ou sal ou mel ou aura uma Vénus 

uma pura cortesã de Pompeia uma musa coberta 
de peles uma fera uma fada uma feiticeira 
uma menina um vulcão um arco-íris um jardim

sei lá que mais – poderás ser tudo isto

e mais, e mais. E deixares que em ti me derrame, 
que em ti me complete. A luz da tua pele 
cega-me.

Casimiro de Brito

.

17.4.25

Luis Eduardo Aute (Deus é sexo puro)




DIOS ES SEXO PURO QUE NO PURO SEXO

 

Por qué será
que en éxtasis del orgasmo
siempre se invoca a Dios: «Dios, Dios,
Dios…»,
y jamás a Satanás?


Luis Eduardo Aute

.

16.4.25

Lauren Mendinueta (Nocturno de morte)





NOCTURNO EN MUERTE

 

No te afanes por vivir!
La muerte borra la memoria.
En adelante el pasado no existe.
A los muertos se nos ha vedado
el mirar atrás.
Es sólo porvenir la muerte.
Marcha indefinida.
En cuanto a la luz
una forma asombrosa y oculta
nos hace seguirla por un sendero 
concebible sólo para ojos apagados. 
Somos peregrinos 
en busca de un paraíso que se expande. 

El pasado es un agujero negro insaciable
que devora minutos.
En esto consiste la eternidad en olvidar a cada instante
la condena de permanecer.
Has de saber a tu debido tiempo que este tedio de ser 
es eterno como la continuación del poema 
es el infinito mismo.
 

Lauren Mendinueta 

 

Não te afanes por viver!
A morte apaga a memória,
avante não existe o passado.
A nós, mortos, está vedado
olhar para trás.
A morte é só porvir,
indefinida marcha.
Quanto à luz,
uma forma oculta e assombrosa
faz-nos segui-la por um carreiro
feito só para olhos apagados.
Somos peregrinos
buscando um paraíso em expansão. 

O passado é um buraco negro insaciável 
que devora minutos.
isto consiste a eternidade, esquecer a cada instante
a sentença de permanecer.
A seu tempo saberás que este tédio de ser
é eterno, 
assim como a continuação do poema
é o próprio infinito.

(Trad. A.M.)

 

14.4.25

António Maria Lisboa (Poema do começo)

 



POEMA DO COMEÇO

 

Eu num camelo a atravessar o deserto
com um ombro franjado de túmulos numa mão muito
          aberta 

Eu num barco a remos a atravessar a janela
da pirâmide com um copo esguio e azul coberto de
          escamas 

Eu na praia e um vento de agulhas
com um Cavalo-Triângulo enterrado na
          areia 

Eu na noite com um objecto estranho na algibeira
— trago-te Brilhante-Estrela-Sem-Destino coberta de
         musgo

 António Maria Lisboa

 

>>  Citador (7p) / Recanto do poeta (6p) / Antonio Miranda (5p) / Wikipedia

.

12.4.25

Karmelo C. Iribarren (Talvez)




Acaso
en este desapego
con el que asisto cada tarde
a la defunción
del día,

no haya
en el fondo
sino la desconfianza, el recelo
de quien le pasó la mano
–muchas veces–
por el lomo
a la vida,

y probó
sus colmillos.

Karmelo C. Iribarren

[Escrito en el viento]

 

Talvez
neste descaso
com que assisto em cada tarde
ao passamento
do dia

não haja
no fundo
senão a desconfiança, o receio
de quem – muitas vezes –
passou a mão
pelo pelo
à vida

e lhe sofreu
as dentadas.

(Trad. A.M.)

.

11.4.25

Pedro López Lara (Isto é o que restou)




(LXX)

ESTO es lo que ha quedado:
un día desprovisto
de sus noches nutrientes,
una luz transigente, intransitable,
que mata lentamente.

Pedro López Lara

 


Isto é o que restou,
um dia desprovido
de suas noites nutrientes,
uma luz transigente, impraticável,
que mata lentamente.


(Trad. A.M.)

.

9.4.25

Camilo Castelo Branco (O maior murro)




(O maior murro que ainda levaram queixos de homem)

Chegou a salvamento ao Rocio; aí, porém, o aguardava um desastre que seria ignominioso, se a providência não escolhesse um homem do Porto como instrumento de castigo.
Um homem do Porto, quando bate, honra sempre as costelas que quebra.
Sou insuspeito, aqui o declaro…
(…)
- Pois é para dar-lhe os agradecimentos que eu vim de Paris procurá-lo — disse Bazílio; e atirou-lhe in continenti à cara um murro capaz de matar um elefante.
Henrique Pestana é ocioso dizer que deu um salto, como se o murro fosse um choque de pilha eléctrica e caiu fora do passadiço.
Por instinto de defesa, ficou de costas, com as pernas ao alto.
Bazílio avançou para ele, ergueu-o pelas lapelas do casaco, sacudiu-o como quem desperta um sonâmbulo, e, quando o viu acordado, estampou-lhe dois homéricos pontapés, que o fizeram voltar ao ponto donde o deslocara o murro.  (XVIII)


CAMILO CASTELO BRANCO
Aventuras de Bazílio Fernandes Enxertado
(1863)

.

7.4.25

Juan Luis Panero (Un étranger)

 



UN ETRANGER

 

Produce cierta melancolía,
una tristeza decadente –literaria sin duda–
como algunas canciones de entreguerras 
o páginas perdidas de Drieu La Rochelle,
ver a un hombre solo, apartado y distante,
en la barra de un bar con decorado internacional.
En esa imprecisa edad, tan imprecisa como la luz del ambiente,
en que ya no es joven ni viejo todavía
pero lleva en sus ojos marcada su derrota
cuando con estudiado gesto enciende un cigarrillo.
Las muchas canas y las muchas camas,
un indudable estómago que la camisa inglesa apenas disimula,
el temblor, no demasiado visible, de su mano en un vaso,
son parte del naufragio, resaca de la vida.
Un hombre que espera ¿quién sabe qué?
y aspirando el humo, mira con declarada indiferencia
las botellas enfrente, los rostros que un espejo refleja,
todo con la especial irrealidad de una fotografía.
Y es aún, algo más triste, un hondo suspiro reprimido,
ver al fondo del vaso –caleidoscopio mágico–
que ese hombre eres tú irremediablemente.
No queda entonces sino una sonrisa: escéptica y lejana,
aprendida muy pronto y útil años después—
de un largo trago acabar la bebida,
pagar la cuenta mientras pides un taxi
y decirte adiós con palabras banales.
 

Juan Luis Panero 

[Poeticous]

 

Dá uma certa melancolia 
uma tristeza decadente — literária sem dúvida —
como certas canções de entre-guerras
ou páginas perdidas de Drieu de la Rochelle,
ver um homem sozinho, apartado e distante,
ao balcão de um bar com ar cosmopolita.
Nessa idade incerta, tão incerta como a luz ambiente,
em que já não é jovem nem é velho ainda,
mas vê-se-lhe nos olhos gravada a derrota,
quando acende um cigarro com estudado gesto.
As muitas cãs e as muitas camas,
uma certa barriga que a camisa inglesa disfarça mal,
o tremor, não muito visível, da mão com o copo,
são sinais do naufrágio, da ressaca da vida.
Um homem à espera sabe-se lá de quê,
puxando o fumo, olha com manifesta indiferença
as garrafas em frente, os rostos reflectidos no espelho,
tudo com a especial irrealidade da fotografia.
E há ainda, algo mais triste, um fundo e contido suspiro,
vendo no fundo do copo — caleidoscópio mágico —
que esse homem és tu, tu sem remédio. 
Não há mais então do que um sorriso, céptico e distante,
— aprendido cedo e útil nos anos após —
 acabares a bebida com um grande trago
pagares a conta enquanto pedes um táxi
e despedires-te com palavras banais.
 

(Trad. A.M.)
 

> Outras versões: Do trapézio (R.C.Ferreira) / Antologia
do esquecimento
 (A.Cabrita e outra)

 .

6.4.25

Luis Eduardo García (O último de videos virais)

 



LO ÚLTIMO EN VIDEOS VIRALES

 

Novia llega a su boda dentro de un ataúd.
Rescatan a perro que estuvo más de una hora conduciendo el auto de su dueño.
Anciana se enfrenta y derrota a una excavadora.
Niño daltónico se emociona al descubrir los colores.
Furioso pavo ataca y persigue a camión postal cada vez que entra en su vecindario.
Vierte coca cola en profundo agujero y extraños peces emergen en segundos.
Buzo descubre rara burbuja en el fondo del océano y miles quedan asombrados.
Familia de patos se salva de ser atropellada gracias a la inteligencia artificial de un Tesla.
Graban a niños jugando a la cuerda con una serpiente muerta:
              el resultado deja sin palabras.

Luis Eduardo García

 

 

Noiva chega ao casamento dentro de um caixão.
Cão resgatado depois de uma hora a conduzir o carro do dono.
Anciã enfrenta e derrota uma escavadora.
Criança daltónica emociona-se ao descobrir as cores.
Perú furioso ataca e persegue camião postal cada vez que entra no bairro.
Vertida coca-cola num buraco profundo, estranhos peixes emergem em segundos.
Mergulhador descobre estranha bolha no fundo do mar, para assombro de milhares.
Família de patos escapa de atropelamento graças à IA de um Tesla.
Crianças filmadas a brincar à corda com uma serpente morta:
               o resultado deixa sem palavras.


(Trad. A.M.)



>>   Revista Anestesia (4p) / Zenda (6p) / El Español (recensão)

.

4.4.25

Camilo Castelo Branco (Enviscar a pascacice)




(Enviscar a pascacice)

Alguns negociantes de grosso trato, sócios da Philarmonica, avisaram o seu amigo José Fernandes, carregando a mão no ânimo do especieiro, contra o despachante, que, conluiado com a rapariga, lhe andava enviscando a pascacice do filho.  (VIII)


CAMILO CASTELO BRANCO
Aventuras de Bazílio Fernandes Enxertado
(1863)

.

2.4.25

Rafael Cadenas (Derrota)




DERROTA 

 

Yo que no he tenido nunca un oficio
que ante todo competidor me he sentido débil
que perdí los mejores títulos para la vida
que apenas llego a un sitio ya quiero irme (creyendo que mudarme es una solución)
que he sido negado anticipadamente y escarnecido por los más aptos
que me arrimo a las paredes para no caer del todo
que soy objeto de risa para mí mismo
que creí que mi padre era eterno
que he sido humillado por profesores de literatura
que un día pregunté en qué podía ayudar y la respuesta fue una risotada
que no podré nunca formar un hogar, ni ser brillante, ni triunfar en la vida
que he sido abandonado por muchas personas porque casi no hablo
que tengo vergüenza por actos que no he cometido 

me extravío una frescura nueva, y obstinadamente
me suicido al alcance de la mano
me levantaré del suelo más ridículo todavía para seguir burlándome de los otros
y de mí hasta el día del juicio final
 

Rafael Cadenas

 

Eu que nunca tive um ofício
que me senti fraco diante de qualquer um
que perdi os melhores títulos para a vida
que mal chego a qualquer lado quero logo ir-me embora
(pensando que a solução é mudar-me)
que fui sempre negado e escarnecido pelos mais aptos
que me  agarro às paredes para não cair de todo
que sou objecto de riso de mim mesmo
que acreditei que meu pai era eterno
que fui humilhado por professores de literatura
que um dia perguntei em que podia ajudar e a resposta foi uma risada
que não poderei jamais fazer um lar, nem ser brilhante, nem triunfar na vida
que fui abandonado por muitos porque quase não falo
que tenho vergonha por coisas que não fiz

desencaminho uma frescura nova e obstinadamente
suicido-me ao alcance da mão
erguer-me-ei do chão mais ridículo ainda para troçar dos outros
e de mim até ao juízo final


(Trad. A.M.)

 .