8.8.23

Manuel Resende (Com que então era isto)




COM QUE ENTÃO ERA ISTO



Com que então era isto a vida?
Para que serviram
tantos olhos entornados,
tanto requebro no corpo, tanta catedral, tanta obra de arte?
Tanto filósofo enjoado? Chegados aqui,
quando declina a força animal sobre o seu chão de palha e pó,
haverá alguma mão enfermeira que nos conchegue a
   fronte e nos abrace ainda de húmida humanidade?
O terrível segredo espreita dentro da carne e,
das dobras do tempo que ainda restam,
só ele nos responde e nem sempre nos brinda
com a mansa loucura que nos traz enfim a paz.
E depois,
e depois,
nalguma sitio em África um antigo camponês
vai lavrar ainda o campo sempre virgem,
com as mãos sujas só de amor,
mas os meninos já morrem de todos os vícios.
de arma aperrada, a fuzilaria drapeja por toda a parte,
em tiros disparatados e inconsistentes e apenas dignos de
palavras menos próprias, e se digo isto não é de compaixão
por tanto filho da puta vestido de homem,
mas porque o medo também me assalta, e tenho o direito a isso,
tenho ao menos o direito de
me soerguer de noite na cama gelada, onde
todas as coisas me cercam, e não eram para ali chamadas.


Manuel Resende 

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