31.8.23

Jacob Iglesias (Nunca ninguém te tinha visto assim)




NUNCA NINGUÉM TE TINHA VISTO ASSIM

 

Nunca ninguém te tinha visto assim,
tão desnuda, tão bela,
tão indefesa. E nem sei
se era o teu corpo que eu abraçava com força
ou os restos do naufrágio
que me haviam de salvar.
Recordo apenas que ao olhar-te
pensei que ninguém jamais voltaria a ver-te assim,
tão desnuda, tão bela,
tão indefesa,
nem mesmo eu.


Jacob Iglesias

(Trad. A.M.)

.

29.8.23

Isabel Fraire (O vento)

 


O VENTO afaga as dunas
forma ondas, cordilheiras, rostos
apaga ondas, cordilheiras, rostos

o mar bate na areia
molha-a
avança
            sobe
                   um sujo colar de espuma
             retira
       deixa a areia seca

o mar ergue-se e corre para a areia
uma e outra vez
              outra
              outra

 

Isabel Fraire

(Trad. A.M.)

 .

28.8.23

Egito Gonçalves (A bomba)

 



A BOMBA 

 

O primeiro sopro arrancou-lhe a roupa;
o imediato levou também a carne.
Ao longo da rua
durante alguns segundos correu o esqueleto.
Mas a rua já não estava,
estava toda no ar;
de lá caíam bocados de prédios, bocados
de crianças, restos de cadilaques...
O esqueleto não compreendia sozinho
aquela situação:
deixou-se tombar sobre algumas pedras radioactivas
e permitiu na queda o extravio de alguns ossos.

(Caso curioso: o coração
pulsou ainda três ou quatro vezes
entre o gradeamento das costelas.)
 

Egito Gonçalves

 .

26.8.23

Idea Vilariño (Buscamos)




Buscamos
cada noche
con esfuerzo
entre tierras pesadas y asfixiantes
ese liviano pájaro de luz
que arde y se nos escapa
en un gemido.
 

Idea Vilariño

 

  

Buscamos
todas as noites 
com esforço 
por terras pesadas e asfixiantes
esse ligeiro pássaro de luz
que arde e nos foge
com um gemido.
 

(Trad. A.M.)

 .

25.8.23

Irene Gruss (Sal)

 



SAL 

 

Por volver la vista atrás
pude mirar fracaso tras fracaso tras fracaso,
fuegos vi, la ciudad hecha fuego,
convertida en un apocalipsis precoz. Y
mi nombre perdido hacia un desierto si volteo
la cabeza hacia adelante, hacia
lo que me espera:
soy a duras penas esa mujer de Lot: mi necesidad

no tiene nombre.


Irene Gruss      

 
 

Ao voltar a vista atrás
olhei fracasso após fracasso após fracasso,
fogos vi, a própria cidade feita fogo,
convertida em apocalipse.
E meu nome perdido no deserto
se viro a cabeça para a frente,
para aquilo que me espera:
sou a duras penas aquela mulher de Lot,
a minha necessidade 

nome não tem.

 
(Trad. A.M.)

 .

23.8.23

Maria do Rosário Pedreira (Fado)

 



FADO

 

Dizem os ventos que as marés não dormem esta noite.
Estou assustada à espera que regresses. As ondas já
engoliram a praia mais pequena e entornaram algas
nos vasos da varanda. E, na cidade, conta-se que
as praças acoitaram à tarde dezenas de gaivotas
que perseguiram os pombos e os morderam.

A lareira crepita lentamente. O pão ainda está morno
à tua mesa. Mas a água já ferveu três vezes
para o caldo. E em casa a luz fraqueja, não tarda
que se apague. E tu não tardes, que eu fiz um bolo
de ervas com canela; e há compota de ameixas
e suspiros e um cobertor de lã na cama e eu

estou assustada. A lua está apenas por metade,
a terra treme. E eu tremo, com medo que não voltes.

Maria do Rosário Pedreira

 .

21.8.23

Horacio Castillo (Visita ao mestre)




VISITA AL MAESTRO



Llueve sobre colinas y jardines.
Allá, junto a la ventana, está el fuego.
Hablar o callar ¿qué es lo mejor?
Preguntar o responder ¿qué es lo peor?
Llueve sobre colinas y jardines,
el agua salmodia en la penumbra.
¿También el callar es un hablar?
¿También el hablar es un callar?
Llueve sobre colinas y jardines.
Un caballo negro viene como volando.
¿La respuesta es entonces la pregunta?
¿La pregunta es entonces la respuesta?
Llueve sobre colinas y jardines.
El silencio del cuarto es el silencio del mundo.


Horacio Castillo
 

[Otra iglesia] 

 

 

Chove em colinas e jardins,
além está o fogo, ao pé da janela.
Falar ou calar, qual é melhor?
Perguntar ou responder, qual é pior?
Chove em colinas e jardins,
a água ouve-se cantar na penumbra.
Também o calar é falar?
Também o falar é calar?
Chove em colinas e jardins,
um cavalo negro chega como voando.
A resposta então é a pergunta?
A pergunta então é a resposta?
Chove em colinas e jardins,
o silêncio do quarto é o silêncio do mundo.
 

(Trad. A.M.)

 .

20.8.23

Hilario Barrero (Early sunday morning)


EARLY SUNDAY MORNING

                                   (Para Edward Hopper)

 

Única criatura, la claridade
extiende sus raíces en la línea  
horizonte de la calle vacía,
bautizando al color por su apellido:
azules infantiles, verdes lluviosos,
ocres enamorados, húmedos blancos
que son frontera con la sábana tibia,
el olor a café, la primera caricia,
y el roce de la muerte que, temprana,
teje precipitada la túnica del barro.
Dando razón de luz al carbón de la sombra,
el sol va señalando a la fachada
su destino de noche aún distante.
Dormidas las persianas, amarillo
despierto de septiembre, un visillo
entretiene su frágil esqueleto
en el lento columpio de la brisa,
mientras Mrs. McLaughlin siente un escalofrío,
protegida por Gato (y una buena ginebra)
y comienza a leer la última edición
del New York Times, cuando tan sólo son
las siete menos cuarto, en la recién
creada mañana del domingo.

 
Hilario Barrero 

 

Criatura única, a claridade
estende as raízes na linha
do horizonte da rua vazia,
pondo apelido na cor:
azul infantil, verde chuvoso,
ocres apaixonados, húmidos brancos,
fronteira com o lençol tépido,
o cheiro a café, a primeira carícia,
e o roçar da morte
que tece precipitada a túnica do pó.
Dando razão de luz ao carvão da sombra,
o sol vai esboçando na fachada
seu destino de noite ainda distante.
Dormidas as persianas, amarelo
vivo de Setembro, um cortinado abana
 o esqueleto no lento baloiço da brisa,
enquanto Mrs. McLaughlin sente um calafrio,
protegida por Gato (e  uma boa genebra)
e começa a ler a última edição
do New York Times, quando são apenas
sete menos um quarto, na recém-criada
manhã de domingo.


(Trad. A.M.)

.

18.8.23

Marcos Siscar (Infinito de bolso)




INFINITO DE BOLSO

 

Diante de mim documentos soltos
em forma de redemoinho não caem
nunca apenas giram simulando voo
feito um blefe contra a gravidade
um protótipo de galáxia um infinito
de bolso em contínuo movimento
seu vórtice cospe antigos boletos
palavras de afeto cartas de protesto
certidões de nascimento e óbito
notícias de longe pulsões de todo tipo
fatos sem contexto flutuam antes
de caírem e cobrem-se de poeira
e mormaço enquanto giram recolho
algumas relíquias e monto roteiros
faço colagens sem modelo
coloco um carrapicho em órbita
o afogado em casa e atrás da porta
o susto de um rosto sem história
 

Marcos Siscar

[Ruido Manifesto]

 .

16.8.23

Graciela Perosio (Deus)




DIOS



creo
en
la
cruda
cuchillada
de
la
vida
cuando
descabeza
todos
los
sueños
pero
no
puede
con
la dura
persistencia
del
soñar

Graciela Perosio

 

 

Creio
na
punhalada
cruel
da
vida
ao
decapitar
os
sonhos
mas
sem
nada
poder
contra
a dura
persistência
do
sonhar


(Trad. A.M.)

.


15.8.23

Gloria Fuertes (Pena)

 



PENA



Cuánto he sufrido hoy lunes.
Son las doce y un segundo de la noche
no es ni siquiera martes.
Esto es parecido a reventar
no es ni siquiera parto.
 

Gloria Fuertes

[Emma Gunst]

 

 

Muito sofri hoje, segunda.
É meia-noite mais um segundo,
nem sequer é terça.
Isto é assim como rebentar,
nem sequer é parto.


(Trad. A.M.)

.

13.8.23

Manuel Silva-Terra (Paraíso perdido)

 



PARAÍSO PERDIDO

 

Quando estás no deserto
vê as estrelas que estão
poisadas na linha do horizonte 

Não precisas de levantar a cabeça
para olhá-las de frente

 
Manuel Silva-Terra

 .

11.8.23

Gioconda Belli (Áspera textura do vento)




ÁSPERA TEXTURA DEL VIENTO


Nacida de la selva me tomaste
arisca yegua para estribos y albardas.

Durante muchas noches
nada se oyó
sino el chasquido del látigo
el rumor del forcejeo
las maldiciones
y el roce de los cuerpos
midiéndose la fuerza en el espacio.

Cabalgamos por días sin parar
desbocados corceles del amor
dando y quitando,
riendo y llorando
-el tiempo de la doma
el celo de los tigres.

No pudimos con la áspera textura de los vientos.
Nos rendimos ante el cansancio
a pocos metros de la pradera
donde hubiéramos realizado
todos nuestros encendidos sueños.
 

Gioconda Belli

[La canción de la sirena]

 


Nascida da selva me tomaste
égua arisca com estribos e selas.

Muitas noites
nada se ouviu
só o silvo do chicote
o rumor da rixa
as maldições
o roçar dos corpos
a medir forças no espaço.

Cavalgámos dias e dias sem parar
desbocados corcéis do amor
dando e tirando,
rindo e chorando
- o tempo de domar
o ciúme dos tigres.

Não pudemos com a áspera textura dos ventos.
Rendemo-nos perante o cansaço
a pouca distância do campo
onde teríamos realizado
os nossos sonhos ardentes.

(Trad. A.M.)

.

10.8.23

Francisco Umbral (Metáforas nocturnas)




METÁFORAS NOCTURNAS

 

Hay un sobrante de oro que ilumina las horas
y un sobrante de tiempo que entristece la vida,
hay una lenta prórroga de la nada en la nada,
por donde vago absorto,
sin autobiografía.
Me he salido del mundo, me he salido
del cielo,
he salido a los campos para tocar lo neutro
y paseo entre los árboles rojos de la mañana
tan desnudo de história como el mar del otoño.

Francisco Umbral

 

 

Há uma sobra de oiro que ilumina as horas
e uma sobra de tempo que entristece a vida,
há um lento protelar do nada no nada,
por onde vago absorto,
sem autobiografia.
Deixei o mundo, deixei
o céu,
fui-me aos campos para tocar o neutro
e passeio entre as árvores roxas da manhã
tão sem história como o mar do outono.


(Trad. A.M.)

.

8.8.23

Manuel Resende (Com que então era isto)




COM QUE ENTÃO ERA ISTO



Com que então era isto a vida?
Para que serviram
tantos olhos entornados,
tanto requebro no corpo, tanta catedral, tanta obra de arte?
Tanto filósofo enjoado? Chegados aqui,
quando declina a força animal sobre o seu chão de palha e pó,
haverá alguma mão enfermeira que nos conchegue a
   fronte e nos abrace ainda de húmida humanidade?
O terrível segredo espreita dentro da carne e,
das dobras do tempo que ainda restam,
só ele nos responde e nem sempre nos brinda
com a mansa loucura que nos traz enfim a paz.
E depois,
e depois,
nalguma sitio em África um antigo camponês
vai lavrar ainda o campo sempre virgem,
com as mãos sujas só de amor,
mas os meninos já morrem de todos os vícios.
de arma aperrada, a fuzilaria drapeja por toda a parte,
em tiros disparatados e inconsistentes e apenas dignos de
palavras menos próprias, e se digo isto não é de compaixão
por tanto filho da puta vestido de homem,
mas porque o medo também me assalta, e tenho o direito a isso,
tenho ao menos o direito de
me soerguer de noite na cama gelada, onde
todas as coisas me cercam, e não eram para ali chamadas.


Manuel Resende 

.

6.8.23

Francisca Aguirre (Um pedaço de fio)




UN PEDAZO DE HILO 

 

No es bueno andar por este mundo
soportando el desgaste de nuestra sombra.
No es bueno alzar la voz a nuestras vísceras
inaugurar un grito que hace crujir
tan sólo a nuestro despavorido bazo.
No es bueno andar en soliloquio
con el filo mugriento del desdén.
No es bueno ser residuo de un espejo:
trae mala suerte esa mutilación
con apariencia de totalidad.
No somos de fiar con tanta arista,
somos humanamente peligrosos
y desdichados inhumanamente.
Entonces, con la humildad que otorga la desolación:
compañero, cualquier pedazo de hilo,
cualquier trapo para remendar
este agujero que llamamos vida.
 

Francisca Aguirre 

[Life vest under your seat]

 

Não é bom andar por este mundo
suportando o desgaste da sombra.
Não é bom erguer a voz para as vísceras
inaugurar um grito que faz ranger
apenas o nosso baço apavorado.
Não é bom andar por aí em solilóquio
com o fio da baba do desdém.
Não ė bom ser resíduo de espelho,
dá azar essa mutilação
com aparência de totalidade.
Não somos de fiar com tanta aresta,
somos um perigo humanamente,
inumanamente inditosos.
Então, com a humildade da desolação:
companheiro, um pedaço de fio qualquer,
um trapo qualquer para remendar
este buraco que chamamos vida. 

(Trad. A.M.)

 .

5.8.23

Fernando Luis Chivite (Esboço de mulher só)




ESBOZO DE MUJER SOLA

 

Ella sabe que hay algo, intuye
que hay algo más allí donde los otros
hace ya tiempo que dejaron
de buscar.

De manera que espera a que se alejen,
no dice nada
cuando al atardecer le muestran
sus hallazgos en el bar contentos
con su suerte.

Ella sabe que la pieza mejor
sigue enterrada aún
y cuando todos se han ido, incluso el último,
regresa subrepticia.

A la luz de la luna
con sus ojos de loca
se arrodilla y escarba con sus manos.


Fernando Luis Chivite

[Jose Luis Piquero]

 

 

Ela sabe que há algo, intui
que há algo mais lá onde os outros
há já tempo que deixaram
de buscar.

De modo que espera que se afastem,
e não diz nada
quando ao entardecer lhe mostram
os seus achados no bar contentes
com a sua sorte.

Ela sabe que a melhor peça
continua ainda enterrada,
e quando todos se vão, mesmo o último,
ela volta atrás, subreptícia.

À luz da lua,
com os seus olhos de louca,
ajoelha-se e escava com as mãos.
 

(Trad. A.M.)

 .

3.8.23

Manuel de Freitas (Melingo, 2011)




MELINGO, 2011



Não sei o que vos diga.

Vinha do outro lado do mundo
e vestia-se com rosas e arame.

Tinha a poesia no corpo.

Perante isso – graça
ou desencanto –
somos todos meros escriturários.


 Manuel de Freitas

[Arquivo de cabeceira]

 .

1.8.23

Manuel Alegre (Canção tão simples)





CANÇÃO TÃO SIMPLES


Quem poderá domar os cavalos do vento
quem poderá domar este tropel
do pensamento
à flor da pele?

Quem poderá calar a voz do sino triste
que diz por dentro do que não se diz
a fúria em riste
do meu país?

Quem poderá proibir estas letras de chuva
que gota a gota escrevem nas vidraças
pátria viúva
a dor que passa?

Quem poderá prender os dedos farpas
que dentro da canção fazem das brisas
as armas harpas
que são precisas?


Manuel Alegre


.


Felipe Benítez Reyes (A diferença)




LA DIFERENCIA

 

Tú dando a una metáfora
su sigiloso espectro de sentido.
Tú cuidando ese ritmo, la cadencia
de sombra de tu verso, y a su música
dejando confiada la memoria.
Tú afanado en un verso que te exprese,
tú entre la oscura luz.

                              Mientras afuera
la vida se destroza en su esplendor,
inocente y rotunda, y en nada parecida
a ningún ejercicio de elegía.


Felipe Benítez Reyes

 

 

Tu dando a uma metáfora
seu sigiloso espectro de sentido.
Tu cuidando o ritmo, a cadência
de sombra de teu verso, e à sua música
confiando a memória.
Tu afadigado num verso que te expresse,
tu no meio da escura luz.

                              Enquanto lá fora
a vida se destroça em seu esplendor,
inocente e rotunda, e em nada parecida
a qualquer exercício de elegia.


(Trad.A.M.)

.