30.4.23

Armindo Rodrigues (Ao ritmo da distância)




(XIII)

 

Ao ritmo da distância,
a lua em foice ceifa
a nitidez das estrelas.

ARMINDO RODRIGUES
Quadrante Solar
IN/CM (1984)

 .

28.4.23

Ape Rotoma (Fábula-III)




FÁBULA III 

 

Nos hemos instalado en la playa y estamos listos.
Con el amanecer lo arrasaremos todo. A sangre y fuego
entraremos en el fuerte amurallado. Es la catarsis
necesaria. Lo heroico de nuestro acto es sólo
que conocemos su inutilidad de sobra y, aún así,
lo haremos. Mañana mismo, con el gallo y sin dudar.
 

Ape Rotoma 

 

Instalados na praia, estamos a postos.
Ao amanhecer arrasaremos tudo. A sangue e fogo
entraremos no forte amuralhado. É a catarse
necessária. O heroísmo do nosso acto está só
em sabermos de sobra da sua inutilidade e, mesmo assim,
fá-lo-emos. Amanhã mesmo, com o galo, sem vacilar.
 

(Trad. A.M.)


.

27.4.23

Antonio Rivero Taravillo (Viver)




VIVER

 

Si no es bisiesto,
un año se descompone
en trescientas sesenta y cinco zancadillas.
Por el contrario, una vida
se va –se fue– en un suspiro.
Lo que tarda en picar una cobra.
Lo que se toma una bala
en atravesar un naipe que es
en realidad una carta del Tarot.
La vida es haber eludido
tantos traspiés,
resbalar sobre el cartón satinado
y dejar de ser bípedo, un charco
de sangre que se va,
no de semen que viene.
Vivir es ensayar esa caída.

Antonio Rivero Taravillo 

 

Não sendo bissexto,
um ano decompõe-se
em trezentas e sessenta e cinco rasteiras.
Pelo contrário, uma vida
vai-se – foi-se – num suspiro.
O que demora uma cobra a picar.
O que leva uma bala
a atravessar um naipe que é
na verdade uma carta de Tarot.
A vida é iliudir
mil tropeções,
resvalar sobre o cartão acetinado
e deixar de ser bípede, um charco
de sangue que se vai,
não de sémen que vem.
Viver é ensaiar essa queda.

(Trad. A.M.)

 .

25.4.23

Ruy Belo (Elogio da amada)




ELOGIO DA AMADA 

 

Ei-la que vem ubérrima numerosa escolhida
secreta cheia de pensamentos isenta de cuidados
Vem sentada na nova primavera
cercada de sorrisos no regaço lírios
olhos feitos de sombra de vento e de momento
alheia a estes dias que eu nunca consigo
Morde-lhe o tempo na face as raízes do riso
começa para além dela a ser longe
A amada é bem a infância que vem ter comigo
Há pássaros antigos nos límpidos caminhos
e mortes como antes nunca mais
Ei-la já que se estende ampla como uma pátria
no limiar da nossa indiferença
Os nossos átrios são para os seus pés solitários
Já todos nós esquecemos a casa dos pais
ela enche de dias as nossas mãos vazias
A dor é nela até que deus começa
eu bem lhe sinto o calcanhar do amor
Que importa sermos de uma só manhã e não haver
em volta
árvore mais açoitada pelos diversos ventos?
Que importa partirmos num desmoronar de poentes?
Mais triste mesmo a vida onde outros passarão
multiplicando-lhe a ausência que importa
se onde pomos os pés é primavera?
 

Ruy Belo

 .

23.4.23

Antonio Porchia (Se não levantares os olhos)




Si no levantas los ojos, creerás que
eres el punto más alto.


Antonio Porchia




Se não levantares os olhos,
vais pensar
que és o ponto mais alto.


(Trad. A.M.)

.

22.4.23

Javier Cánaves (Aqui)



 

AQUÍ

 

No sé qué pasos he seguido,
cómo he llegado aquí, a este amanecer
de principios de enero.
No es tanto el hecho de saberme solo
como la sensación de que era imprescindible
dejar a un lado nombres, llegar a esta mañana
de espaldas a las cosas, separado de todos
y a la vez muy unido.
Saber que es por amor y no por miedo.
Brindar por mi abandono y no moverme.
 

Javier Cánaves

 

Não sei que passos segui,
ou como cheguei aqui, a este amanhecer
de princípios de Janeiro.
Não é tanto o saber-me só
como a sensação de que era imprescindível
deixar os nomes de lado, chegar a esta manhã
de costas para as coisas, separado de todos
e porém muito unido.
Saber que é por amor, não por medo.
Brindar ao meu abandono e não me mexer.


(Trad. A.M.)

.

20.4.23

Giuseppe Ungaretti (Longe)




LONTANO

 

Lontano lontano
come un cieco
m’hanno portato per mano


Giuseppe Ungaretti

 

 

Longe longe
como um cego
pela mão me levaram


(Trad. A.M.)

.

18.4.23

Carmen Martín Gaite (Certeza)

 



CERTEZA

 

Habéis empujado hacia mí estas
piedras.
Me habéis amurallado
para que me acostumbre.
Pero aunque ahora no pueda
ni intente dar un paso,
ni siquiera proyecte fuga alguna,
ya sé que es por allí
por donde quiero ir,
sé por dónde se va.
Mirad, os lo señalo:
por aquella ranura de poniente.


Carmen Martín Gaite 

 

Empurrastes estas pedras contra mim,
emparedastes-me
para eu me habituar.
Mas embora agora eu não possa
nem tente dar um passo,
nem sequer tenha ideia de fugir,
já sei que é por ali
que eu pretendo ir,
sei por onde se vai.
Olhai, por ali,
por aquela ranhura de poente.


(Trad. A.M.)


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.


17.4.23

Antonio Pereira (Canção da raia)




CANCIÓN EN LA RAYA 

 

¡Qué bien huele Portugal! 
El aire de sus pinares
llega hasta Ciudad Rodrigo. 

Vienen a aromar en mí,
si desde Ayamonte miro, 
briznas de algarves maduros 
y limones extendidos. 

Si desde Aracena, pan.
Si desde Zamora, 
vino dorado al lado del Duero. 
¡Pájaros, si desde el Miño! 

Toda la raya rayana
me huele a amores antiguos. 

Para pasar la frontera, 
por el aroma me guío. 
Y nadie podrá decirme, 
nadie,
que voy perdido.
 

Antonio Pereira

 

 
Que bem cheira Portugal!
Chega a Cidade Rodrigo
o ar dos seus pinheirais. 

Vêm perfumar-me a mim,
se olho de Ayamonte,
brisas de algarves maduros
e limões olorosos. 

Se de Aracena, pão fresco.
E se de Zamora,
vinho dourado da beira do Douro.
Pássaros, no caso do Minho. 

Toda a raia raiana
me cheira a antigos amores.

Para passar a fronteira
eu pelo aroma me guio.
E ninguém me diga,
ninguém,
que ainda acabo perdido.
 

(Trad. A.M.)

 .


15.4.23

Francisco Duarte Mangas (Janela)




JANELA

 

certas noites por aí
convido a lua
tomamos chá de cidreira
trocamos versos antigos. 


Francisco Duarte Mangas

  .

13.4.23

Antonio Gamoneda (Sinto o crepúsculo)




Siento el crepúsculo en mis manos.
Llega a través del laurel enfermo.
Yo no quiero pensar ni ser amado
ni ser feliz ni recordar.

Sólo quiero sentir esta luz en mis manos
y desconocer todos los rostros
y que las canciones dejen de pesar en mi corazón
y que los pájaros pasen ante mis ojos
y yo no advierta que se han ido.

Hay grietas y sombras en paredes blancas
y pronto habrá más grietas y más sombras
y finalmente no habrá paredes blancas.

Es la vejez.
Fluye en mis venas como agua atravesada por gemidos. Van
a cesar todas las preguntas. Un sol tardío
 pesa en mis manos inmóviles y a mi quietud
vienen a la vez suavemente, como una sola sustancia,
el pensamiento y su desaparición.

Es la agonía y la serenidad.
Quizá soy transparente y ya estoy solo sin saberlo.
En cualquier caso, ya
la única sabiduría es el olvido.
 

Antonio Gamoneda 

[Lyrikline]

  

Sinto o crepúsculo nas mãos,
chegando através do cravo doente.
E eu não quero pensar, nem ser amado,
nem ser feliz, nem recordar. 

Quero só sentir esta luz nas mãos
e desconhecer os rostos
e que as canções deixem de pesar-me no coração
e os pássaros me passem diante dos olhos
sem eu dar conta de que se foram. 

Há fendas e sombras nas paredes brancas
e breve haverá mais sombras e fendas
até deixar de haver paredes brancas. 

É a velhice.
Corre-me nas veias como água
atravessada por gemidos.
Cessarão as perguntas todas. Um sol tardio
pesa-me nas mãos imóveis, enquanto
o pensamento e a sua negação invadem,
à uma, a minha quietude. 

É a agonia e a serenidade.
Sou talvez transparente e já estou só, sem saber.
Em qualquer caso, há uma só sabedoria,
a do esquecimento. 

(Trad. A.M.)

.

12.4.23

Antonio Fernández Lera (A noite intermitente)




LA NOCHE INTERMITENTE                                                    

                       (A mi padre, cuatro años después) 

 1

Observas la curva
donde se abrazan la tierra y el mar. 

Miras el agua, oscura,
misteriosa y viva.

 Todas las palabras
están escondidas, hundidas,
ocultas
en tus ojos,
en el espejo exacto
de tus días.

2

Es el silencio lo que más me abruma,
brizna de viento
que se deja llevar
por un suspiro,
vapor de furia sin cerebro,
sin planes,
el silencio
del mar,
este silencio.

3

Una mirada siempre,
una mirada 

simple y antigua 

como un vaso de agua
y eterna como un puente,
como un arco iris,
como la noche intermitente
que derrama
sus lágrimas
para sembrar
el día.

4

Nada es eternamente
triste
ni mortal.

Sientes el eco de una fotografia
que a su vez es un eco
de la frontera entre ser y no ser
(unas manos
te acarician los ojos, 
unos ojos
te sonríen). (...)
 

Antonio Fernández Lera

[Portal de poesia

 

1

Observas a curva
onde se abraçam a terra e o mar.

Olhas a água, escura,
viva e misteriosa.

Todas as palavras
estão escondidas, afundidas,
ocultas
em teus olhos,
no espelho exacto
de teus dias.


2

O que mais me abruma é o silêncio,
sopro de vento
que se deixa levar
por um suspiro,
vapor de fúria sem cabeça,
sem planos,
o silêncio
do mar,
este silêncio.


3

Um olhar sempre,
um olhar

simples, antigo

como um copo de água,
eterno como uma ponte,
um arco-íris,
como a noite intermitente
que derrama
suas lágrimas
para semear
o dia.


4

Nada é eternamente
triste
nem mortal.

Sentes o eco de uma fotografia
que é por sua vez um eco
da fronteira entre ser e não ser
(umas mãos
te afagam os olhos,
uns olhos
te sorriem). (…)


(Trad. A.M.)

.

10.4.23

Eugénio de Andrade (Não se aprende grande coisa)




Não se aprende grande coisa com a idade.
Talvez a ser mais simples,
a escrever com menos adjectivos.
Demoro-me a escutar um rumor.
Pode ser o prelúdio tímido ainda
do cantar de um pássaro, uma gota
de água na torneira mal fechada,
a anunciação do tão amado
aroma dos primeiros lilases.
Seja o que for, é o que me retém
aqui, me sustenta, impede de ser
uma qualquer vibração da cal,
simples acorde solar, um nó
de luz negra prestes a explodir.

 

Eugénio de Andrade

[Poemário]

 .

8.4.23

José A. Ramírez Lozano (Gelado de lágrimas)




HELADO DE LÁGRIMAS

 

Hay que ir guardando las lágrimas
durante todo el invierno en dos frasquitos.
En uno pondremos las lágrimas del llanto;
en otro, las de la risa.

No os fiéis de los que venden en las heladerías;
son de lágrimas falsas, importadas de Egipto,
lágrimas de cocodrilo.

Mejores son las caseras:
las de la abuela
cuando cumple años,
o las de papá
cuando corta cebolla.

Batir luego con azucar
y aguardar a que cuajen en el congelador.

El helado de lágrimas de risa
sabe a sombrilla mandarina.

El de lágrimas de llanto, a flor de penumbra.

José A. Ramírez Lozano

 

 

Temos de ir guardando as lágrimas
no inverno em dois vidrinhos,
num as lágrimas de pranto,
noutro as de riso.

Não vos fieis dos que vendem nas gelatarias,
são de lágrimas falsas, que vêm do Egipto,
lágrimas de crocodilo.

São melhores as caseiras, 
as da avó 
quando faz anos,
ou as do papá
quando corta cebola.

Bater depois com açúcar 
e aguardar que coalhem no congelador.

O gelado de lágrimas de riso
sabe a sombreiro de mandarim.

O de lágrimas de pranto, a flor de penumbra.

(Trad. A.M.)

 .

7.4.23

Mariano Peyrou (Auto-retrato)




AUTORRETRATO 

  

        El mejor autorretrato que conozco es de un
pintor que mira un huevo y pinta un ave. Hay
gente cujo melhor autorretrato está en sus
uñas. Hace diez años creía que mi mejor
autorretrato sería al fin un beso durante el que se
piensa en el futuro para que vuelen juntos 
los sabores. Toda magia es ingenua. Toda
palabra es mágica. Hace cinco años pinté mi
mejor autorretrato: un corazón y un
cuerpo que late dentro de él y lo alimenta. Hace diez
minutos comencé un poema
pensando que en toda palabra late un deseo
de silencio, una conciencia de esterilidad.
Cómo me arriesgo a quedar como un imbécil.
Todo autorretrato implica un riesgo semejante.
Los sueños se suicidan con somniferos.

 
Mariano Peyrou 

 

        O melhor auto-retrato que conheço é o de um
pintor que observa um ovo e pinta uma ave. Há
gente cujo melhor auto-retrato está nas
unhas. Há dez anos eu acreditava que o meu melhor
auto-retrato seria afinal um beijo durante o que se
pensa no futuro para que voem juntos 
os sabores. Toda a magia é ingénua. Toda a
palavra é mágica. Há cinco anos eu pintei meu
melhor auto-retrato: um coração e um
corpo que pulsa dentro dele e o alimenta. Há dez
minutos comecei um poema
pensando que em qualquer palavra pulsa um desejo
de silêncio, uma consciência de esterilidade.
Como me arrisco a ficar como um imbecil.
Todo o auto-retrato implica um risco semelhante.

Os sonhos suicidam-se com soníferos.

 

(Trad. A. M.)

 

>>  Poesia liquida (7p) / Babab (5p) / Periodico de poesia (Miguel Casado) / Verseando (12p) / Periodico de poesia (Exercícios espirituales) / Wikipedia

.

 

5.4.23

David Mourão-Ferreira (Escada sem corrimão)




ESCADA SEM CORRIMÃO 

 

É uma escada em caracol
e que não tem corrimão.
Vai a caminho do Sol
mas nunca passa do chão. 

Os degraus, quanto mais altos,
mais estragados estão.
Nem sustos nem sobressaltos
servem sequer de lição. 

Quem tem medo não a sobe.
Quem tem sonhos também não.
Há quem chegue a deitar fora
o lastro do coração. 

Sobe-se numa corrida.
Correm-se perigos em vão.
Adivinhaste: é a vida
a escada sem corrimão. 


David Mourão-Ferreira

 .

3.4.23

Antonio Deltoro (Fábula)



FÁBULA

 

Nos dio el gato y el tigre
para que supiéramos
la distancia
entre lo que se puede tocar
y lo intocable. 

Quizás los conejos,
para que no confundiéramos
gato con liebre.

Al leopardo le debemos
la belleza de la caza
solitária
y los lobos fueron el don
para que aprendiéramos
a cazar en jauría.

La red de la araña,
dicen los chinos, 
nos la dio
para que aprendiéramos
a viajar por hilos de seda
y hacer sopa de nidos de golondrina. 

Sin los animales
seguiríamos en la planicie de la especie.

¿Por qué nos hizo nacer?
¿Por qué nos devora? 

Hay que darle las gracias,
sin preguntarse demasiado,
y bendecir a las presas
que pasan, 
como pasaremos nosotros,
por su vientre. 


Antonio Deltoro
  

 

Deu-nos o gato e o tigre
para que soubéssemos
a distância
entre o que se pode tocar
e o intocável.

Os coelhos, talvez,
para que não confundíssemos
gato com lebre.

Ao leopardo devemos
a beleza da caça
solitária
e os lobos foram a oferta
para que aprendêssemos
a caçar em matilha.

A teia da aranha,
diz o chinês,
foi-nos dada
para que aprendêssemos
a viajar por fios de seda
e fazer sopa de ninhos de andorinha.

Sem os animais
estaríamos ainda no plaino da espécie.

Porque nos fez nascer?
Porque nos devora?

Temos de lhe dar graças,
sem fazer muitas perguntas,
e bendizer as presas
que lhe passam,
como nós passaremos,
pelo ventre.


(Trad. A.M.)

.

2.4.23

Antonio Colinas (A prova)




LA PRUEBA

 

Mira: a punto estás de penetrar en el bosque.
Vas a dejar la casa blanca de la cima,
tan plácida, tan llena de música y sosiego,
y ahí te espera el bosque impenetrable.
Irremediablemente deberás cruzarlo:
el bosque que desciende por ladera escabrosa,
el bosque en que no hay nadie
y el bosque en el que puede haber de todo,
el bosque de humedades venenosas,
morada de lo negro,
y de una luz que enturbia la mirada.

Entra en él con cuidado y sal sin prisas,
mas nunca se te ocurra abandonar la senda
que desciende y desciende y desciende.
Mira mucho hacia arriba y no te olvides
de que este tiempo nuestro va pasando
como la hoz por el trigo.
Allá arriba, en las ramas,
no hay luces que te ciegan, si es de día.
Y si fuese de noche,
la negrura más honda la siembran faros ciertos.
Todo lo que está arriba guía siempre.

Mira: te espera el bosque impenetrable.
Recuerda que la senda que lo cruza
─la senda como río que te lleva–
debe ser dulce cauce y no boa untuosa
que repta y extravía en la maraña.
Que te guíe la música que dejas
–la música que es número y medida–
y que más alta música te saque
al fin, tras dura prueba, a mar de luz.

Antonio Colinas

[Trianarts]

 

Olha, estás mesmo a penetrar no bosque,
vais deixar a casa do alto, tão plácida,
tão cheia de música e sossego,
e aí tens à espera o bosque impenetrável.

Tens de atravessá-lo, sem remédio,
o bosque a descer pela ladeira escarpada
o bosque onde não há ninguém 
e onde pode haver de tudo,
o bosque de humidades venenosas,
morada do escuro
e de uma luz que turva o olhar.

Entra aí com cuidado e sai sem pressa,
mas que nunca te ocorra abandonar a senda, 
a descer, a descer, sempre a descer.
Olha bem para cima e não te esqueças 
que este tempo nosso vai passando 
tal como a foice pelo trigo.
Lá em cima, na ramagem,
não há luzes que te ceguem, sendo dia.
E se for de noite, a mais funda escuridão
são os faróis que a geram.
O que está no alto serve sempre de guia.

Olha, tens à espera o bosque impenetrável,
lembra-te que a senda que o cruza 
- a senda como um rio que te leva -
tem de ser leito suave e não jiboia untuosa
que desafia e se refugia no mato.
Que te guie a música que deixas 
- a música que é número e medida -
e que mais alta música te leve
no fim, a duras penas, a mares de luz.

(Trad. A.M.)

 .