12.6.12

Jaime Gil de Biedma (Pandémica e celeste)







PANDÉMICA E CELESTE





Imagina agora tu e eu
a falarmos, noite alta,
de homem para homem, finalmente.
Imagina,
uma dessas noites memoráveis
de estranha comunhão, a garrafa
meio vazia, os cinzeiros sujos,
depois de esgotado o tema da vida.
Que eu vou mostrar-te um coração,
um coração infiel,
nu da cinta para baixo,
hipócrita leitor – mon semblable, mon frère!


Porque não é a impaciência do buscador de orgasmo
que me puxa do corpo a outros corpos
possivelmente jovens:
eu persigo também o doce amor,
o terno amor para dormir junto
e alegrar minha cama ao despertar,
próximo como um pássaro.
Se eu não consigo nunca desnudar-me,
se não pude jamais envolver-me nuns braços
sem sentir – mesmo que só por um momento –
o mesmo deslumbramento dos vinte anos!


Para saber de amor, para aprendê-lo,
é preciso ter estado só.
E é preciso em quatrocentas noites
- com quatrocentos corpos diferentes –
ter feito amor. Que seus mistérios,
como disse o poeta, são da alma,
mas o corpo é o livro em que se lêem.


E por isso me alegra ter-me revirado
na areia grossa, os dois meio vestidos,
enquanto procurava aquele tendão do ombro.
Comove-me a lembrança de tantas ocasiões...
Aquela estrada do monte
e os bem empregados abraços furtivos
e o instante indefeso, de pé, após a travagem,
colados ao muro, cegos com as luzes.
Ou aquele entardecer, junto do rio,
a rir desnudados, coroados com hera.
Ou aquele portal em Roma – na via de Babuino.
E lembranças de caras e cidades
mal conhecidas, corpos entrevistos,
escadas sem luz, camarotes,
bares, passagens desertas, prostíbulos,
e de infinitas casas de banhos,
de fossos de um castelo.
Lembranças de vós, sobretudo,
ó noites de hotéis de uma noite,
eternas noites de pensões sórdidas,
em frios quartos,
noites que devolveis aos hóspedes
um esquecido sabor de si mesmos!
A história em corpo e alma, como quebrada imagem,
de la languer goutée à ce mal d’être deux.
Sem desprezar
- alegres como festa à semana –
as experiências de promiscuidade.


Embora sabendo que nada me valiam
trabalhos de amor disperso
se não existisse o verdadeiro amor.
Meu amor,
íntegra imagem de minha vida,
sol das noites mesmas que lhe roubo.


Sua juventude, a minha
- música do meu fundo –
sorri ainda na graça imprecisa
de cada corpo jovem,
em cada encontro anónimo,
iluminando-o. Dando-lhe alma.
E não há músculos formosos
que não me façam pensar nos seus formosos músculos
quando nos conhecemos, antes de ir para a cama.


Nem paixão de uma noite de dormida
que possa comparar
com a paixão que dá o conhecimento,
os anos de experiência
de nosso amor.
Porque no amor é também
importante o tempo.
E doce, de algum modo,
verificar com mão melancólica
sua visível passagem por um corpo
- enquanto que basta um gesto familiar
nos lábios,
ou a ligeira palpitação de um membro
para fazer-me sentir a maravilha
dessa graça antiga,
fugaz como um reflexo.


Na sua pele desmaiada,
quando os anos passarem e estivermos no fim
quero esmagar estes lábios
invocando a imagem do seu corpo
e de todos os corpos que um dia amei,
mesmo por instante, desfeitos pelo tempo.
Pedindo força para viver
sem beleza, sem força e sem desejo,
continuando juntos
até morrermos em paz, os dois,
como dizem que morrem aqueles que muito amaram.


Jaime Gil de Biedma


(Trad. A.M.)




> Outra versão:  Vício da poesia (José Bento)



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