24.2.10

José Rodrigues Miguéis (Levantou-se com esforço)






Levantou-se com esforço, gemendo, meio tonto, a tropeçar no camisão, e, arremangado, foi-se olhar no espelhinho lavrado do toucador: via-se logo que não andava bom.

O carão pesado, sulcado de rugas fundas como cutiladas, habitualmente rubro, tinha uma palidez mortal debaixo da retícula das veias avinhadas.

O cabelo grisalho caía-lhe em farripas empastadas de suor na testa tortulhosa.

Puxou e revirou as pálpebras empapuçadas, e olhou-as por dentro: as córneas verdes pareciam boiar numa posta de sangue.

Abriu a boca enorme, onde poucos dentes negros e cariados lhe restavam, e examinou a língua: grossa, encortiçada, coberta dum sarro lamacento e esverdinhado, quase que nem lhe cabia na boca.

Era aquela língua que, no sonho, o sufocava como uma mordaça!

Apalpou as queixadas, perras e doridas, onde o restolho da barba crescia havia muitos dias, e enfiou os dedos pelas suíças emaranhadas.

Ficou um momento a olhar a imagem, em que mal reconhecia o garboso coronel de cavalos, herói de tantos combates de campo e da cama: que ruína a sua!

E teve pena de si mesmo, uma vontade estúpida, infantil, de chorar.

Da quinta não vinha um rumor mais alto, e o sol ruivo batia os olmeiros e tílias imóveis na calma da tarde, cheia da paz do Senhor.



- JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS, Léah e Outras Histórias (O Morgado de Pedra-Má), 1958.

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