Levantou-se com esforço, gemendo, meio tonto, a tropeçar no camisão, e, arremangado, foi-se olhar no espelhinho lavrado do toucador: via-se logo que não andava bom.
O carão pesado, sulcado de rugas fundas como cutiladas, habitualmente rubro, tinha uma palidez mortal debaixo da retícula das veias avinhadas.
O cabelo grisalho caía-lhe em farripas empastadas de suor na testa tortulhosa.
Puxou e revirou as pálpebras empapuçadas, e olhou-as por dentro: as córneas verdes pareciam boiar numa posta de sangue.
Abriu a boca enorme, onde poucos dentes negros e cariados lhe restavam, e examinou a língua: grossa, encortiçada, coberta dum sarro lamacento e esverdinhado, quase que nem lhe cabia na boca.
Era aquela língua que, no sonho, o sufocava como uma mordaça!
Apalpou as queixadas, perras e doridas, onde o restolho da barba crescia havia muitos dias, e enfiou os dedos pelas suíças emaranhadas.
Ficou um momento a olhar a imagem, em que mal reconhecia o garboso coronel de cavalos, herói de tantos combates de campo e da cama: que ruína a sua!
E teve pena de si mesmo, uma vontade estúpida, infantil, de chorar.
Da quinta não vinha um rumor mais alto, e o sol ruivo batia os olmeiros e tílias imóveis na calma da tarde, cheia da paz do Senhor.
- JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS,
Léah e Outras Histórias (O Morgado de Pedra-Má), 1958.
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