10.2.10

José Rodrigues Miguéis (Como esta gente se ama)






Estou morto de fadiga e de tensão, preciso de dormir, mas é impossível: e dou comigo em pé na cama, crispado e latejante, com as mãos apoiadas à parede, o pescoço esticado e torcido, mais perto do tecto, mais perto deles, a escutar avidamente.

Não quero perder nada do que se passa na intimidade daquele quarto, que já não tem segredos para mim.

Jesus-Senhor, como esta gente se ama!

É de deitar a casa abaixo.

Ela geme cada vez mais alto, grita, diz coisas em voz estrangulada, como quem pede a morte ou a salvação, solta um berro dilacerado, depois um estertor que se prolonga em convulsões, um murmúrio dolente de quem se queixa ou abençoa...

Parece uma agonia.

Tremo como varas verdes, ardo em febre e suo.

E agora o silêncio.

Um dia destes ela fica-lhe nos braços.

E que me importa a mim?



- JOSÉ RODRIGUES MIGUÉIS, Léah e Outras Histórias (Saudades para a Dona Genciana), 1958.



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