29.11.09

Luis Antonio de Villena (Arte de viver)









UN ARTE DE VIDA





Vivir sin hacer nada. Cuidar lo que no importa,
tu corbata de tarde, la carta que le escribes
a un amigo, la opinión sobre un lienzo, que dirás
en la charla, pero que no tendrás el torpe gusto
de pretender escrita. Beber, que es un placer efímero.
Amar el sol y desear veranos, y el invierno
lentísimo que invita a la nostalgia (¿de dónde
esa nostalgia?). Salir todas las noches, arreglarte
el foulard con cariño esmerado ante el espejo,
embriagarte en belleza cuanto puedas, perseguir
y anhelar jóvenes cuerpos, llanuras prodigiosas,
todo el mundo que cabe en tanta euritmia.
Dejar de amanecida tan fantásticos lechos,
y olerte las manos mientras buscas taxi, gozando
en la memoria, porque hablan de vellos y delicias
y escondidos lugares, y perfumes sin nombre,
dulces como los cuerpos. ¡Qué frío amanecer entonces,
qué triste es, qué bello! Las sábanas te acogerán
después, un tanto yermas, y esperarás el sueño.
Del día que vendrá no sabes nada. (No consultas
oráculos). Te quemarán hastíos y emociones,
tertulias y bellezas, las rosas de un banquete
suntuario, y las viejas callejas, donde se siente
todo, en el verano, como un aroma intenso.
Vivir sin hacer nada. Cuidar lo que no importa.
Y si todo va mal, si al final todo es duro,
como Verlaine, saber ser el rey de un palacio de invierno.



Luis Antonio de Villena






Viver sem fazer nada, cuidar do que não importa,
a gravata de tarde, a carta que escreves
a um amigo, a opinião sobre uma tela, o conteúdo
da palestra, mas que não terás o mau gosto
de querer escrita. Beber, esse prazer efémero.
Amar o sol e aspirar ao Verão, ou o Inverno
lentíssimo que convida à saudade (e donde
essa saudade?). Sair todas as noites, compor
o foulard ao espelho com esmero e carinho,
embriagar-te de beleza quanto puderes, perseguir
e anelar jovens corpos, planuras prodigiosas,
todo o mundo que cabe em tanta euritmia.
Deixar manhãzinha tão fantásticos leitos
e cheirar as mãos enquanto chamas um táxi, gozando
na lembrança, pois falam de véus e delícias,
escondidos lugares e perfumes sem nome,
doces como os corpos. Que frio amanhecer então,
que triste e que belo. Os lençóis te acolherão
de seguida, um tanto ermos, e esperarás pelo sono.
Do dia que virá nada sabes. (Não consultas
oráculos). Hão-de queimar-te fastios e emoções,
tertúlias e belezas, as rosas de um banquete
sumptuoso, e as velhas ruelas, onde se sente
tudo, no verão, como intenso aroma.
Viver sem fazer nada. Cuidar do que não importa.
E se tudo correr mal, se tudo for duro a final,
como Verlaine, saber ser o rei de um palácio de inverno.


(Trad. A.M.)



Fontes:  Luis Antonio Villena (sítio pessoal/tudo+algo)  /  A media voz (43p)  /  Poesi-as (24p)  /  Cervantes (9p+bio+videoteca)


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Joaquim Namorado (Mania das grandezas)


                                                                                            








MANIA DAS GRANDEZAS




Pois bem, confesso:
fui eu quem destruiu as Babilónias
e descobriu a pólvora...


Acredite,
a estrela Sírius, de primeira grandeza,
(única no mercado)
deixou-ma meu tio-avô em testamento.


No meu bolso esconde-se o segredo
das alquimias
e a metafísica das religiões
- tudo por inspiração!


Que querem?
Sou poeta
e tenho a mania das grandezas...


Talvez ainda venha a ser Presidente da República...



Joaquim Namorado

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Pedro Salinas (Se me chamasses)








SI ME LLAMARAS





¡Si me llamaras, sí,
si me llamaras!


Lo dejaría todo,
todo lo tiraría:
los precios, los catálogos,
el azul del océano en los mapas,
los días y sus noches,
los telegramas viejos
y un amor.
Tú, que no eres mi amor,
¡si me llamaras!


Y aún espero tu voz:
telescopios abajo,
desde la estrella,
por espejos, por túneles,
por los años bisiestos
puede venir. No sé por dónde.
Desde el prodigio, siempre.
Porque si tú me llamas
-¡si me llamaras, sí, si me llamaras!-
será desde un milagro,
incógnito, sin verlo.


Nunca desde los labios que te beso,
nunca desde a voz que dice:
"No te vayas".



Pedro Salinas






Se me chamasses, sim,
se me chamasses!


Deixaria tudo,
arrojaria com tudo:
preços, catálogos,
o azul do oceano nos mapas,
os dias e suas noites,
telegramas antigos
e um amor.
Tu, que não és meu amor,
se me chamasses!


E ainda espero tua voz:
telescópios abaixo,
lá da estrela,
por espelhos, por túneis,
por anos bissextos
pode ela vir. Não sei donde.
Do prodígio, sempre.
Porque se tu me chamares
- se me chamasses, sim, se me chamasses! –
será de um milagre,
incógnito, sem o ver.


Nunca dos lábios que te beijo,
nunca da voz que diz:
“Não vás embora”.


(Trad. A.M.)

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Pedro Mexia (Pó)











Nas estantes os livros ficam
(até se dispersarem ou desfazerem)
enquanto tudo
passa. O pó acumula-se
e depois de limpo
torna a acumular-se
no cimo das lombadas.
Quando a cidade está suja
(obras, carros, poeiras)
o pó é mais negro e por vezes
espesso. Os livros ficam,
valem mais que tudo,
mas apesar do amor
(amor das coisas mudas
que sussurram)
e do cuidado doméstico
fica sempre, em baixo,
do lado oposto à lombada,
uma pequena marca negra
do pó nas páginas.
A marca faz parte dos livros.
Estão marcados. Nós também.



PEDRO MEXIA
Duplo Império
(1999)


[Mal Situados]

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27.11.09

Antonio Machado (Adeus, campos de Sória)








ADEUS, CAMPOS DE SÓRIA





Adeus, campos de Sória
onde até as pedras sonham,
cerros do altiplano,
e montes de cinza e violeta .
Adeus, convosco ficou
a flor mais doce da terra.
Já não posso cantar-vos,
não vos canta já meu coração,
antes vos reza…



Antonio Machado

(Trad. A.M.)



Cesare Pavese (Virá a morte)








VERRÀ LA MORTE E AVRÀ I TUOI OCCHI




Verrà la morte e avrà i tuoi occhi-
questa morte che ci accompagna
dal mattino alla sera, insonne,
sorda, come un vecchio rimorso
o un vizio assurdo. I tuoi occhi
saranno una vana parola,
un grido taciuto, un silenzio.
Così li vedi ogni mattina
quando su te sola ti pieghi
nello specchio. O cara speranza,
quel giorno sapremo anche noi
che sei la vita e sei il nulla.


Per tutti la morte ha uno sguardo.
Verrà la morte e avrà i tuoi occhi.
Sarà come smettere un vizio,
come vedere nello specchio
riemergere un viso morto,
come ascoltare un labbro chiuso.
Scenderemo nel gorgo muti.


Cesare Pavese


[La poesia non è morta]






Virá a morte e terá os teus olhos -
esta morte que nos acompanha
de manhã à noite, insone,
surda, como um velho remorso,
ou um vício absurdo. Os teus olhos
serão uma mera palavra,
um grito calado, um silêncio.
Assim os vês cada manhã
quando sobre ti mesma te dobras
ao espelho. Ó querida esperança,
nesse dia saberemos também nós
que tu és a vida e és o nada.


Para todos a morte tem um olhar.
Virá a morte e terá os teus olhos.
Será como largar um vício,
como ver no espelho
reaparecer um rosto morto,
como escutar uns lábios cerrados.
Desceremos calados no remoinho.


(Trad. A.M.)


Fontes: La poesia non è morta (56p) / Wikipedia / Fondazione CP / Centro Studi



26.11.09

Daniel Jonas (Provavelmente noutro tempo)








PROVAVELMENTE NOUTRO TEMPO






Provavelmente noutro tempo, noutras circunstâncias
chegaríamos a iguais resultados
pelo que te não adianta imaginar um almagesto
ou tabelas de paralaxe para isto
a que convencionalmente chamamos amor,
nem calcular o ângulo
entre nós e o centro da terra,
de nada nos aproveitaria, tu e eu
centros escorraçados de irregular gravitação.


Porém, isso não me impediu de ver plêiades
cada vez que surgias (só
não te dizia nada) plêiades iluminando
o meu Hades
com suas cabrinhas coruscantes
pascendo
o vale da sombra da morte.


E a questão hoje é: who’s gonna drive you home tonight?
quando o melancólico transístor
destila também outras perguntas, mas nenhuma
tão dura como essa,


por exemplo: porque é que a água tem mais tendência
a subir em tubos estreitos
ao contrário do mercúrio?
Isto é view-master e são coisas que faço
na tua ausência.



DANIEL JONAS
Fantasmas Inquilinos
Cotovia (2005)



25.11.09

Eduardo Lizalde (Bom dia, mundo)







BUENOS DÍAS, MUNDO





Buenos días, mundo.
Me alegra verte afuera al despertar.
Celebro que no hayas
-la ocasión la pintan calva-
aprovechado el manto de la noche maldita
para irte por siempre al inframundo.
También me reconforta
que aún te habiten pájaros cantores,
‘meistersinger’ del bosque en el jardín;
que el sol severo nos escalde aún
y nos torture el rudo ozono
- como todos los días.


Soñé que te habías ido,
conmigo, hacia el infierno
y que se habían quedado aquí
sin mundo todas las demás criaturas:
piedras, grajos, insectos o personas.
Te veo tan grande y bello,
que me río de los siniestros solipsistas
de antaño.
No has de esfumarte cuando yo me extinga.
Canto tu salud de hierro,
tu verde corazón y tu estructura
de granito.
Buenos días, querido, hermoso mundo.



Eduardo Lizalde








Bom dia, mundo.
Alegra-me ver-te cá fora, ao despertar.
Ainda bem que não aproveitaste
- a ocasião pintam-na calva –
o manto da noite maldita
para te ires para sempre até ao submundo.
Reconforta-me também
que te habitem ainda pássaros cantores
‘meistersinger’ do bosque no jardim;
que o sol severo nos escalde ainda
e nos torture o rude ozono
- como todos os dias.


Sonhei que tinhas partido,
comigo, para o inferno
e que tinham ficado aqui
sem mundo as demais criaturas:
pedras, gralhas, insectos ou pessoas.
Vejo-te tão grande e tão belo,
que me rio dos sinistros solipsistas
de antanho.
Não hás-de esfumar-te quando eu me extinguir.
Canto a tua saúde de ferro,
teu verde coração e tua estrutura
de granito.
Bom dia, meu querido, mundo lindo.


(Trad. A.M.)


António de Almeida Mattos (Fossem de água os braços)








Fossem de água os braços
um rio de afagar-te




António de Almeida Mattos



24.11.09

Enrique Vila-Matas (Quarenta anos de luz)









(Quarenta anos de luz...)




Á saída do edifício, em plena rue de Rennes, ela entregou-me o papel e disse-me algo que não entendi absolutamente nada, parecia dito de propósito no seu francês superior.

Não entendi o que ela me dizia, mas sim o que estava escrito no papel.

Entendi perfeitamente que devia pagar mais de quarenta anos de recibos de luz, quer dizer, que não só devia pagar os consumos das luzes de boémia de Copi, Javier Grandes, o travesti Amapola, o cineasta Milosevic, a actriz de teatro búlgara, o amigo do mágico Jodorowsky, mas também me tocava pagar a conta da luz atrasada da Resistência francesa, a do camarada Miterrand nos seus tempos de águas-furtadas.



- ENRIQUE VILA-MATAS, Paris nunca se acaba, 113.


Olhar (62)



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Konya (Turquia)
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23.11.09

Adolfo Casais Monteiro (Vem vento, varre)







VEM VENTO, VARRE





Vem vento, varre
sonhos e mortos.
Vem vento, varre
medos e culpas.
Quer seja dia,
quer faça treva,
varre sem pena,
leva adiante
paz e sossego,
leva contigo
nocturnas preces,
presságios fúnebres,
pávidos rostos
só covardia.
Que fique apenas
erecto e duro
o tronco estreme
de raiz funda.
Leva a doçura,
se for preciso:
ao canto fundo
basta o que basta.

Vem vento, varre!



Adolfo Casais Monteiro


Celso Emilio Ferreiro (O reino)









O REINO




No tempo aquil
cando os animales falaban,
decir libertá non era triste,
decir verdá era coma un río,
decir amor,
decir amigo,
era igual que nomear a primavera.
Ninguén sabía dos aldraxes.



Cando os animales falaban
os homes cantaban nos solpores
pombas de luz e xílgaros de soños.
Decir teu e meu non se entendía,
decir espada estaba prohibido,
decir prisión somente era unha verba
sin senso, un aire que mancaba
o corazón da xente.



¿Cando,
cando se perdeu,
iste gran Reino?



Celso Emílio Ferreiro





21.11.09

Nuno Júdice (Confissão)








CONFISSÃO





De um e outro lado do que sou,
da luz e da obscuridade,
do ouro e do pó,
ouço pedirem-me que escolha;
e deixe para trás a inquietação,
a dor,
um peso de não sei que ansiedade.



Mas levo comigo tudo
o que recuso. Sinto
colar-se-me às costas
um resto de noite;
e não sei voltar-me
para a frente, onde
amanhece.




NUNO JÚDICE
Meditação sobre Ruínas
(1994)



Ver (32)











[Fernando Almeida]

Manuel Moya / Violeta (De passagem)








DE PASO





Una copa de vez en cuando
y ropa limpia aunque no flama. Un parchís
y diez o quince libros, mejor si son robados.
Un chorbo guapo que sepa algunas cosas.
Ni un chulo ni un pirado.
Guardad para vosotros lo demás.
Yo estoy de paso.



Violeta C. Rangel







Um copo de vez em quando
e roupa limpa embora não brilhe. Um joguito
e dez livros ou quinze, melhor ainda se roubados.
Um meco guapo que saiba alguma coisa.
Um chulo não, nem um marado.
Guardai o resto para vós.
Eu estou de passagem.


(Trad. A.M.)


19.11.09

António Ramos Rosa (Sem segredo algum)









SEM SEGREDO ALGUM





Rodeio-te de nomes, água, fogo, sombra,
vagueio dentro das tuas formas nebulosas.
Como um ladrão aproximo-me entre palavras e nuvens.
Não te encontrei ainda. Falo dentro do teu ouvido?
Entre pedras lentas, oiço o silêncio da água.


A obscuridade nasce. Tens tu um corpo de água
ou és o fogo azul das casas silenciosas?
Não te habito, não sou o teu lugar, talvez não sejas nada
ou és a evidência rápida, inacessível,
que sem rastro se perde no silêncio do silêncio.


O que és não és, não há segredo algum.
Selvagem e suave, entre miséria e música,
o coração por vezes nasce. As luzes acendem-se na margem.
Estou no interior da árvore, entre negros insectos.
Sinto o pulsar da terra no seu obscuro esplendor.




ANTÓNIO RAMOS ROSA
Volante Verde
(1986)


Gonçalo M. Tavares (Amar é ver diferente)







Amar é ver diferente.
Depois fica-se cego.
Mas primeiro é ver diferente.




GONÇALO M. TAVARES
Investigações. Novalis
Difel, 2002





Eliseo Diego (Não é mais)








NO ES MAS





Un poema no es más
que una conversación en la penumbra
del horno viejo, cuando ya
todos se han ido, y cruje
afuera el hondo bosque; un poema


no es más que unas palabras
que uno ha querido, y cambian
de sitio con el tiempo, y ya
no son más que una mancha,
una esperanza indecible;


un poema no es más
que la felicidad, que una conversación
en la penumbra, que todo
cuanto se ha ido, y ya
es silencio.



Eliseo Diego







Um poema não é mais
do que uma conversa na penumbra
do forno velho, quando já
todos se foram embora, e ruge
lá fora o bosque profundo; um poema


não é mais que algumas palavras
que alguém amou e que trocam
de lugar com o tempo, e já
não são mais que uma mancha,
uma esperança indizível;


um poema não é mais
que a felicidade, que uma conversa
na penumbra, que tudo
o que desapareceu e é
já silêncio.


(Trad. A.M.)



18.11.09

Luiza Neto Jorge (A magnólia)







A MAGNÓLIA




A exaltação do mínimo,
e o magnífico relâmpago
do acontecimento mestre
restituem-me a forma
o meu resplendor.


Um diminuto berço me recolhe
onde a palavra se elide
na matéria - na metáfora -
necessária, e leve, a cada um
onde se ecoa e resvala.


A magnólia,
o som que se desenvolve nela
quando pronunciada,
é um exaltado aroma
perdido na tempestade,


um mínimo ente magnífico
desfolhando relâmpagos
sobre mim.



Luiza Neto Jorge




Lugares: Poesias e Prosas (28p) / Lídia Aparício (17p) / DGLB (bio+biblio+linques)




16.11.09

Enrique Vila-Matas (Corte de luz)









(Corte de luz...)





Uns dias depois, ao entardecer, estava eu nas águas-furtadas preparando-me tranquilamente para limpar o cachimbo quando me cortaram a luz.

A princípio, inclusive, trocei comigo mesmo e disse que aquilo era como dizer adeus às luzes da boémia.

Mas à medida que passavam os minutos e ia caindo a noite, fui-me dando conta de que o assunto era sério.

O vizinho negro emprestou-me uma vela contrariado e passei a noite com a chambre a meia-luz à espera que se fizesse dia para ir falar com Marguerite e contar-lhe o que se tinha passado.

Devia mostrar-me indignado?

Com ela claro que não.

Bem vistas as coisas, devia-lhe sete ou oito meses de renda.

O que é que esperava?

Não pagar e ter eternamente luzes de boémia nas minhas águas-furtadas?




- ENRIQUE VILA-MATAS, Paris nunca se acaba, 113.


Carlos Nejar (De como a terra-3)









3.


O homem se desgasta,
sopro misturado
ao sopro rijo do arado.
Vai cavando.


Madrugada sai da terra,
como um corpo se entreabre
para o orvalho e para o trigo.


O homem vai cavando,
vai cavando a madrugada.



Carlos Nejar




15.11.09

José Antonio Muñoz Rojas (Teu ofício, poeta)






TU OFICIO, POETA





Para que algo quede de este latir,
para que, si alguien quiere mirarse, pueda;
para calmar quizá alguna sed, y que alguien diga
«a mí me pasó algo semejante».
Los poetas estamos para eso:
para ofrecerles tránsito a los demás,
para que se encaramen sobre nuestros latidos, y que divisen
un poco más allá, en medio
de tanta oscuridad como nos circunda.
A veces nada tiene sentido, ni siquiera
que me des la mano o esse
limón redondo tan bello en la vereda.
A veces lo que tiene sentido no tiene sangre,
ese poco de sangre por la cual se muere.
Todo es ganas de morir de otra manera,
ganas de imitar a los ríos y que la tierra vea
que hay otras aguas y otras penas, y los cielos
contemplen misericordiosamente
nuestras peregrinaciones.
Tu oficio, poeta, es contemplar,
que todo se te escriba dentro; luego,
quizá leer allí mismo, quizá decir a los otros
lo que allí mismo, escrito, tú lees.



José Antonio Muñoz Rojas







Para que algo fique deste latir,
para que, se alguém quiser olhar-se, possa;
para acalmar talvez alguma sede, ou que alguém diga
“a mim aconteceu-me algo semelhante”.
Nós poetas estamos cá para isso,
para dar passagem aos outros,
para que se empinem sobre nossos latidos
e vejam um pouco mais longe
no meio desta escuridão que nos envolve.
Às vezes nada tem sentido, nem mesmo
o dares-me a mão ou esse
limão redondo tão belo na vereda.
Às vezes o que tem sentido não tem sangue,
esse pouco de sangue por que se morre.
Tudo é sede de morrer de outra maneira,
vontade de imitar os rios e que a terra veja
que há outras águas e outras penas e os céus
contemplem misericordiosamente
nossas peregrinações.
Teu ofício, poeta, é contemplar,
que tudo se te escreva dentro; depois,
ler talvez aí mesmo, ou talvez dizer aos outros
o que ali mesmo, escrito, tu consegues ler.


(Trad. A.M.)



Fontes: Cervantes (antologia+perfil) / A media voz (21p)



Ruy Belo (E tudo era possível)




E TUDO ERA POSSÍVEL



Na minha juventude antes de ter saído
da casa de meus pais disposto a viajar
eu conhecia já o rebentar do mar
das páginas dos livros que já tinha lido

Chegava o mês de maio era tudo florido
o rolo das manhãs punha-se a circular
e era só ouvir o sonhador falar
da vida como se ela houvesse acontecido

E tudo se passava numa outra vida
e havia para as coisas sempre uma saída
Quando foi isso? Eu próprio não o sei dizer

Só sei que tinha o poder duma criança
entre as coisas e mim havia vizinhança
e tudo era possível era só querer


Ruy Belo


14.11.09

Mário Quintana (Da felicidade)








DA FELICIDADE





Quantas vezes a gente, em busca de aventura,
Procede tal e qual o avozinho infeliz:
Em vão, por toda parte, os óculos procura,
Tendo-os na ponta do nariz!



Mario Quintana


13.11.09

Rosario Pérez Cabaña (Limpeza geral)








LIMPIEZA GENERAL




Una limpieza general es una cosa completamente seria,
por su crueldad, principalmente.
Despojar al objeto de su pátina, aun invisible,
supone un agravio incuestionable
para el objeto que esperó pacientemente.
Apóstatas del polvo
que aún tenéis la suficiente fe
para creer
que tras limpiar el polvo
el polvo está,
como dicta la ciencia,
mucho más limpio,
decidme: ¿a qué distancia de la mancha
ha quedado abandonado el verso?


Aunque, no nos olvidemos, si se quiere,
todo puede ser poetizable.
A ver si no:
a) Desalojar el polvo de su libro
tiene su propio tiempo, que recuerda
la lentitud del pulso en las orillas
de tu cuerpo.
b) Lanzar al mar por los desagües
el resto de sudor con que me amaste
también tiene su ritmo.
c) Lo de los peines mejor no nombrarlo,
por mi obsesión más que nada.


Claro, después de la tristeza, propia
de las cosas limpias,
¿cómo puede uno seguir amando
la tela de la flor
que ya nunca será la misma?
Eso hay que tenerlo en cuenta.
Más de una vez ocurre
que cuando la casa queda limpia
acude un vértigo (podría jurarlo)
que me hace recordar.


Ciertos inconvenientes los considero lógicos:
por ejemplo, tener que ir urgentemente
a comprar, qué se yo, ropa interior
o perfume para el gato,
que a día de hoy nadie me ha confirmado
que no pueda yo tener un gato.


El cielo, eso sí, se ve más diáfano
con la casa limpia, despojada
de aquello que tal vez nos ayudó
en otro tiempo a amarnos.



Rosario Pérez Cabaña






Uma limpeza geral é uma coisa inteiramente séria,
pela crueldade, principalmente.
Tirar ao objecto a patina, mesmo invisível,
supõe um agravo indiscutível
para o objecto que esperou pacientemente.
Apóstatas do pó
que tendes ainda a fé bastante
para crer
que depois de limpar o pó
o pó está,
como dita a ciência,
muito mais limpo,
dizei-me cá: a que distância da mancha
ficou o verso abandonado?


Se bem que, não esqueçamos, desde que se queira,
tudo pode ser poetizável.
Vejamos:
a) Desalojar o pó do livro
tem o seu próprio tempo, lembrando
a lentidão do pulso nas margens do teu corpo.
b) Lançar ao mar
o resto de suor com que me amaste
tem também o seu ritmo.
c) Isso dos pentes é melhor nem falar,
antes de mais pela minha obssessão.


Claro, depois da tristeza, própria
das coisas limpas,
como é que se pode continuar a amar
o quadro da flor
que jamais será a mesma?
Temos de ter isso em conta.
Acontece às vezes
quando a casa está limpa
que pinta uma vertigem (podia jurar)
que me traz lembranças.


Certos inconvenientes considero-os lógicos:
por exemplo, ter de ir comprar urgentemente,
que sei eu, roupa interior
ou perfume para o gato,
sim que até hoje nunca ninguém me disse
que eu não podia ter um gato.


O céu, esse sim, vê-se mais diáfano
com a casa limpa, despojada
daquilo que outrora nos ajudou
talvez a amar-nos.



(Trad. A.M.)


Olhar (61)








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Antalya
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(Turquia)
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12.11.09

Gabriel Celaya (Conta-me como vives)








CUÉNTAME CÓMO VIVES





Cuéntame cómo vives;
dime sencillamente cómo pasan tus días,
tus lentísimos odios, tus pólvoras alegres
y las confusas olas que te llevan perdido
en la cambiante espuma de un blancor imprevisto.


Cuéntame cómo vives;
ven a mí, cara a cara;
dime tus mentiras (las mías son peores),
tus resentimientos (yo también los padezco),
y ese estúpido orgullo (puedo comprenderte).

.
Cuéntame cómo mueres;
nada tuyo es secreto:
la náusea del vacío (o el placer, es lo mismo);
la locura imprevista de algún instante vivo;
la esperanza que ahonda tercamente el vacío.
.

Cuéntame cómo mueres;
cómo renuncias -sabio-,
cómo -frívolo- brillas de puro fugitivo,
cómo acabas en nada
y me enseñas, es claro, a quedarme tranquilo.



GABRIEL CELAYA
Tranquilamente Hablando
(1945)



[Barcos de Flores]






Conta-me como vives;
diz-me simplesmente como te vão os dias,
teus lentíssimos ódios, tuas pólvoras alegres
e as confusas ondas que te levam perdido
na mutante espuma de imprevista brancura.


Conta-me como vives;
vem cá, cara a cara;
diz-me tuas mentiras (são piores as minhas),
teus ressentimentos (também eu os sofro),
e esse estúpido orgulho (compreendo-te bem).

.
Conta-me como morres;
nada teu é segredo:
a náusea do vazio (ou do prazer, vale o mesmo);
a loucura imprevista de um instante vivo;
a esperança que o vazio afunda teimosamente.


Conta-me como morres;
como renuncias – sábio –
como – frívolo – brilhas de puro fugitivo,
como acabas em nada
e me ensinas, é claro, a ficar tranquilo.


(Trad. A.M.)


11.11.09

José Carlos Barros (O amor)







O AMOR




O amor é um rastilho aceso por dentro dos ferros
de púrpura dos meses
O amor é um pano inconsútil pendurado nos arames dos pátios
O amor é uma lenta transmutação da água nos incêndios
O amor é uma âncora dividida entre o peso do lodo e
a leveza insustentável das alavancas hidráulicas
O amor percorre os labirintos de creta sem nenhum fio pretérito
O amor queima por dentro dos pulmões quando
se respira junto às falésias de calcário
O amor é uma pedra e outra pedra escondida
nas gaivas oscilatórias dos sismos
O amor é um vórtice onde se misturam palavras e buracos negros
O amor é uma árvore com as raízes atadas à nuvem das lágrimas
O amor é uma onda que precede o desmoronamento das
cabeceiras declivosas das penínsulas
O amor é uma molécula da água a transformar-se em éter
O amor é a fórmula de heisenberg
O amor é um mapa em que o momento e a posição não coincidem
O amor é a pele incandescente
O amor é uma puta
O amor é um arco que dispara em círculo
contra o desprotegido coração.



José Carlos Barros



[Casa dos poetas / com nota]


Um verso (66)





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Um verso de Miguel Hernández
(ou dois, podendo ser):


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9.11.09

Rosa Alice Branco (Passos sem memória)








PASSOS SEM MEMÓRIA





Olho pela janela e não vejo o mar. As gaivotas
andam por aí e a relva vai secando no varal. Manhã cedo,
o mar ainda não veio. Veio o pão, veio o lume
e o jornal. A saliva com que te hei-de dizer bom dia.
As palavras são as primeiras a chegar. O que fica delas
amacia o papel. Pão quente com o sono de ontem
e os sonhos de hoje. Prepara-se o dia, os passos
de ir e vir. Estou cada vez mais perto. Olhas-me
como se soubesses o que hei-de saber mais logo.
Nesta cidade nunca é meio-dia. Há sempre uma doçura
de outras horas. E recordações avulsas. Deixa-as sair
de dentro do vestido, deixa soltar as ondas do mar.
A janela está vazia. O meu filho caminha na praia
e tu soletras as gaivotas. Caminha à minha frente
sem deixar pegadas. Perco-me como todas as mães,
todos os amantes. Invento passos e palavras
para adormecer. A esta hora a minha avó enrolava o rosário
nas mãos. Eu estava dentro das contas, dentro do sono
que rondava a prece. Durante muito tempo estive fora.
Agora caminhamos juntos. Sem memória.



Rosa Alice Branco


Enrique Vila-Matas (Está a ouvir-me, Miss Stein?)









(Está a ouvir-me, Miss Stein?)





Às vezes eu passava, ao entardecer, diante daquela casa da rue de Fleurus e desejava que fazê-lo me desse sorte.

Nunca me deu, pelo menos enquanto eu permaneci em Paris, de maneira que este Agosto, quando fui de novo ver a casa talismã, olhei para a placa comemorativa, pensei em Gertrud Stein e na sorte que não me deu e no medo que eu tinha noutro tempo que o seu espírito descobrisse as minhas modestas ligações com Joyce, e também pensei, ou melhor, recordei os problemas que então eu tinha com a unidade, a harmonia e para já não falarmos com o estilo e com o factor tempo.

E desta vez desabafei, disse em voz muito alta, arriscando-me a ser tomado por louco:

“Miss Stein, a senhora está aí, consegue ouvir-me?

“Olhe, olhe-me bem, sou Heminguay.

“Consegue ver-me?

“Ulisses é bom como o caralho é bom como o caralho é bom como o caralho.

“Está a ouvir-me, Miss Stein?”



- ENRIQUE VILA-MATAS, Paris nunca se acaba, 51.


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8.11.09

Fernando Pessoa / A. Campos (Nunca conheci)








NUNCA CONHECI QUEM TIVESSE LEVADO PORRADA





Nunca conheci quem tivesse levado porrada
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irresponsavelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida…


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos – mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.



Álvaro de Campos


6.11.09

Ana Pérez Cañamares (Filha)









Hija, si en algún momento,
mientras estás ocupada en crecer
- dura y lícita tarea -
puedes mirarme a los ojos,
hazlo.


No te dejes las preguntas
para cuando sea la misma voz
la que cuestione y la que responda.


Mira que en esta familia
tenemos la dolorosa costumbre
de conocernos mejor de muertos.



Ana Pérez Cañamares






Filha, se em algum momento,
enquanto estás ocupada a crescer
- dura e lícita tarefa –
puderes olhar-me nos olhos,
fá-lo.


Não deixes as perguntas
para quando for a mesma voz
a perguntar e a responder.


Olha que nesta família
temos o doloroso costume
de conhecer-nos melhor em mortos.


(Trad. A.M.)


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Carlos Nejar (De como a terra-2)









2.

Que será do novo homem
sobre a terra que vergasta ?
Sangra a terra, pasce o gado
e o trabalho é o que nos passa.


Vem o sol e cava a terra;
a semente é como espada.
Há uma noite que nos gera
quando a noite é dissipada.


Vem a noite e cava a terra;
vem a noite, é madrugada.



Carlos Nejar


Casimiro de Brito (Amar-te é nascer de novo)








Amar-te é nascer de novo, regressar à minha fonte.
Nesse momento, começo a morrer.



Casimiro de Brito