MANGAS VERDES COM SAL
Mangas verdes com sal
sabor longínquo, sabor acre
da infância a canivete repartida
no largo semicírculo da amizade.
Sabor lento, alegria reconstituída
no instante desprevenido, na maré-baixa,
no minuto da suprema humilhação.
Sabor insinuante que retorna devagar
ao palato amargo, à boca ardida,
à crista do tempo, ao meio da vida.
Rui Knopfli
11.11.23
Rui Knopfli (Mangas verdes com sal)
9.11.23
Juan Manuel Roca (Sonho)
SUEÑO
El sol fulge entre la fronda
donde los niños duermen
y cruza bostezando un ángel rojo.
Lejos, los patios de vecindad se llenan
de gentes que remiendan el aire
con la aguja de su parla rumorosa.
Alguien siembra un cortejo de astros,
entre sagrados juegos
y blancas catacumbas,
tú y yo: crisálidas de viento.
Juan Manuel Roca
O sol fulge por entre os ramos
onde os ninos dormem
e um anjo atravessa a bocejar.
Ao longe, os pátios da vizinhança
povoam-se de pessoas que remendam o ar
com a agulha de ruidosas conversas.
Alguém semeia uma corriola de estrelas,
entre sacras brincadeiras
e brancas catacumbas,
tu e eu, crisálidas de vento.
(Trad. A.M.)
8.11.23
Laura Wittner (Estão voltando)
(17)
Están volviendo
todas las historias infantiles;
todo está siendo sometido a juicio,
ya nada es pintoresco, material para poesía.
Los padres son los imputados
y parecen culpables;
nosotros ya empezamos
a parecer culpables.
Laura Witner
[Zenda]
Estão voltando
as histórias da infância;
tudo está sujeito a julgamento,
nada já é pitoresco, matéria de poesia.
Os pais são os réus
e têm ar de culpados;
até nós começamos já
a parecer culpados.
(Trad. A.M.)
6.11.23
Vitorino Nemésio (Outro testamento)
OUTRO TESTAMENTO
Quando eu morrer deitem-me nu à cova
Como uma libra ou uma raiz,
Dêem a minha roupa a uma mulher nova
Para o amante que a não quis.
Façam coisas bonitas por minha alma:
Espalhem moedas, rosas, figos.
Dando-me terra dura e calma,
Cortem as unhas aos meus amigos.
Quando eu morrer mandem embora os lírios:
Vou nu, não quero que me vejam
Assim puro e conciso entre círios vergados.
As rosas sim; estão acostumadas
A bem cair no que desejam:
Sejam as rosas toleradas.
Mas não me levem os cravos ásperos e quentes
Que minha Mulher me trouxe:
Ficam para o seu cabelo de viúva,
Ali, em vez da minha mão;
Ali, naquela cara doce...
Ficam para irritar a turba
E eu existir, para analfabetos, nessa correcta
irritação.
Quando eu morrer e for chegando ao cemitério,
Acima da rampa,
Mandem um coveiro sério
Verificar, campa por campa
(Mas é batendo devagarinho
Só três pancadas em cada tampa,
E um só coveiro seguro chega),
Se os mortos têm licor de ausência
(Como nas pipas de uma adega
Se bate o tampo, a ver o vinho):
Se os mortos têm licor de ausência
Para bebermos de cova a cova,
Naturalmente, como quem prova
Da lavra da própria paciência.
Quando eu morrer...
Eu morro lá!
Faço-me morto aqui, nu nas minhas palavras,
Pois quando me comovo até o osso é sonoro.
Minha casa de sons com o morador na lua,
Esqueleto que deixo em linhas trabalhado:
Minha morte civil será uma cena de rua;
Palavras, terras onde moro,
Nunca vos deixarei.
Mas quando eu morrer, só por geometria,
Largando a vertical, ferida do ar,
Façam, à portuguesa, uma alegria para todos;
Distraiam as mulheres, que poderiam chorar;
Dêem vinho, beijos, flores, figos a rodos,
E levem-me – só horizonte – para o mar.
Vitorino Nemésio
4.11.23
Karmelo C. Iribarren (A última costa)
A ÚLTIMA COSTA
Os dias passam
como passam sempre os dias,
sem grandes sobressaltos,
com essa estranha mistura de lentidão e vertigem.
Até esse em que vês vir do outro lado
- ali entre a névoa, ainda longe -
uma proa a apontar para a tua beira.
E é mesmo então
quando – absolvido
de todos teus erros, perdoado,
com calma por fim, sereno e em paz –
começas a reconciliar-te com a vida.
Mas a proa não deixa de avançar.
Karmelo C. Iribarren
(Trad. A.M.)
3.11.23
Juan Luis Panero (Autobiografia)
AUTOBIOGRAFIA
Una casa vacía, otra derrumbada,
un niño muerto al que le cuentan cuentos,
despedidos fantasmas que se desvanecen,
ceniza y hueso, piedras derrotadas.
Cuartos alquilados, repetidos espacios fugaces,
las huellas de los cuerpos en las sábanas,
una pesada resaca sin destino,
voces que nadie escucha, imágenes de sueños.
Innecesarias páginas, gaviotas en la ventana,
mar o desierto, blancos despojos,
signos y rostros en la pared de la memoria.
Sucias pupilas de sol en México, tercos
los ojos redondos de la calavera
contemplan pasado, presente, futuro,
sombras tenaces, metáforas gastadas.
Miro sin ver lo que ya he visto,
humo disforme que se esfuma,
invisible mortaja bajo nubes fugaces.
Humo en la noche y la nada instantánea.
Juan Luis Panero
Uma casa vazia, outra demolida,
uma criança morta a quem contam histórias,
fantasmas despedidos que se desvanecem,
cinza e osso, pedras derrotadas.
Quartos alugados, repetidos espaços fugazes,
as marcas dos corpos nos lençóis,
uma pesada ressaca sem destino,
vozes que ninguém escuta, imagens de sonhos.
Desnecessárias páginas, gaivotas na janela,
mar ou deserto, brancos despojos,
sinais e rostos na parede memória.
Pupilas sujas de sol no México, firmes
os olhos redondos da caveira
contemplam passado, presente, futuro,
sombras tenazes, gastas metáforas.
Olho sem ver aquilo que já vi,
fumo disforme que se esfuma,
invisível mortalha por baixo de nuvens fugazes.
Fumo na noite e o nada repentino.
(Trad. A.M.)
> Outra versão: Canal de poesia (J.M.Magalhães)
1.11.23
Manuel António PIna (Um sítio onde pousar)
30.10.23
Juan Gelman (Chuva)
LLUVIA
hoy llueve mucho, mucho,
y pareciera que están lavando el mundo
mi vecino de al lado mira la lluvia
y piensa escribir una carta de amor/
una carta a la mujer que vive con él
y le cocina y le lava la ropa y hace el amor
con él
y se parece a su sombra/
mi vecino nunca le dice palabras de amor a la
mujer/
entra a la casa por la ventana y no por la
puerta/
por una puerta se entra a muchos sitios/
al trabajo, al cuartel, a la cárcel,
a todos los edificios del mundo/ pero no al
mundo/
ni a una mujer/ni al alma/
es decir/a ese cajón o nave o lluvia que
llamamos así/
como hoy/que llueve mucho/
y me cuesta escribir la palabra amor/
porque el amor es una cosa y la palabra amor
es otra cosa/
y sólo el alma sabe dónde las dos se
encuentran/
y cuándo/y cómo/
pero el alma qué puede explicar/
por eso mi vecino tiene tormentas en la boca/
palabras que naufragan/
palabras que no saben que hay sol porque
nacen y
mueren la misma noche en que amó/
y dejan cartas en el pensamiento que él nunca
escribirá/
como el silencio que hay entre dos rosas/
o como yo/que escribo palabras para volver
a mi vecino que mira la lluvia/
a la lluvia/
a mi corazón desterrado/
Juan Gelman
Chove muito, hoje, muito,
até parece que estão a lavar o
mundo
o meu vizinho do lado olha para a
chuva
e pensa em escrever uma carta de
amor/
uma carta à mulher que vive com
ele
e lhe cozinha e lava a roupa e faz
amor
e parece a sombra dele/
o meu vizinho nunca diz palavras
de amor
à mulher/
entra em casa pela janela e não
pela porta/
por uma porta entra-se em muitos
lados/
no trabalho, no quartel, na
cadeia,
nos edifícios todos do mundo/ mas
não no mundo/
nem numa mulher, tão pouco na
alma/
quer dizer/ nessa arca ou nave ou
chuva que assim chamamos/
como hoje/que chove muito/
e custa-me escrever a palavra
amor/
porque o amor é uma coisa e a
palavra amor é outra coisa/
e só a alma sabe onde se encontram
as duas/
e quando/ e como/
mas a alma é que pode explicar/
por isso o meu vizinho tem
tempestades na boca/
palavras que naufragam/
palavras que não sabem que há sol
porque nascem e
morrem na mesma noite em que amou/
e deixam cartas na mente que ele
nunca
escreverá/
como o silêncio que há entre duas
rosas/
u como eu/ que escrevo palavras
para voltar
ao meu vizinho que olha para a
chuva/
para a chuva/
para meu coração desterrado/
(Trad. A.M.)
29.10.23
Juan Carlos Mestre (Antepassados)
ANTEPASADOS
Mis antepasados inventaron la Vía Láctea,
dieron a esa intemperie el nombre de la necesidad,
al hambre le llamaron muralla del hambre,
a la pobreza le pusieron el nombre de todo lo que no es extraño a la pobreza.
Poco es lo que puede hacer un hombre con el pensamiento del hambre,
apenas dibujar un pez en el polvo de los caminos,
apenas atravesar el mar en una cruz de palo.
Mis antepasados cruzaron el mar sobre una cruz de palo,
pero no pidieron audiencia,
así que vagaron por los legajos
como los erizos y los lagartos vagan por los senderos de las aldeas.
Y llegaron a los arenales,
en los arenales la tierra es brillante como escamas de pez,
la vida en los arenales sólo tiene largos días de lluvia y luego largos días de
viento.
Poco es lo que puede hacer un hombre que solo ha tenido en
la vida estas cosas,
apenas quedarse dormido recostado en el pensamiento del hambre
mientras oye la conversación de los gorriones en el granero,
apenas sembrar leña de flor en la sábana de los huertos,
andar descalzo sobre la tierra brillante
y no enterrar en ella a sus hijos.
Mis antepasados inventaron la Vía Láctea,
dieron a esa intemperie el nombre de la necesidad,
atravesaron el mar sobre una cruz de palo.
Entonces pusieron nombre al hambre para que el amo del hambre
se llamara dueño de la casa del hambre
y vagaron por los caminos
como los erizos y los lagartos vagan por los senderos de las aldeas.
Poco es lo que puede hacer un hombre con las migas de la
piedad,
comer pan mojado los días de lluvia a los que luego seguirán largos días de
viento
y hablar de la necesidad,
hablar de la necesidad como se habla en las aldeas
de todas las cosas pequeñas que se pueden envolver con cuidado en un pañuelo.
Juan Carlos Mestre
Meus antepassados inventaram a Via
Láctea,
deram a essa intempérie o nome da necessidade,
à fome chamaram muralha da fome,
à pobreza deram o nome de tudo o que à pobreza não é estranho.
Pouco é o que um homem pode fazer com o pensamento da fome,
só desenhar um peixe na poeira dos caminhos,
ou atravessar o mar numa cruz de madeira.
Meus antepassados cruzaram o mar numa cruz de madeira,
mas não pediram audiência,
daí que vagueassem pelos papéis
como os ouriços e lagartos vagueiam pelos carreiros das aldeias.
E chegaram aos areais,
onde a terra brilha como escamas de peixe,
a vida nos areais tem apenas longos dias de chuva e depois longos dias de
vento.
Pouco é o que pode fazer um homem que teve só disto na vida,
apenas deixar-se ficar a dormir recostado no pensamento da fome,
ouvindo a conversa dos pardais no celeiro,
ou semear lenha de flor no lençol dos pomares,
andar descalço por sobre a terra brilhante,
sem enterrar os filhos na mesma.
Meus antepassados inventaram a Via Láctea,
deram a essa intempérie o nome da necessidade,
atravessaram o mar numa cruz de madeira.
Aí deram nome à fome para que o senhor da fome
se chamasse dono da casa da fome
e vaguearam pelos caminhos
como os ouriços e lagartos vagueiam pelos carreiros das aldeias.
Pouco é o que um homem pode fazer com as migas da piedade,
comer pão molhado nos dias de chuva
a que depois se seguirão longos dias de vento
e falar da necessidade,
falar da necessidade como se fala nas aldeias
das coisas miúdas que se podem embrulhar num lenço.
(Trad. A.M.)
.
27.10.23
Jorge Sousa Braga (Agapantos)
AGAPANTOS
Quem desce a
avenida até à
praia nos canteiros entre os
prédios nos
recantos mais
sombrios do meu cérebro
por todo o lado
explodem
os agapantos… É como se fosse
um
fogo-de-artifício rente
ao chão como se inteiros
os dias te
explodissem na mão
Jorge Sousa Braga
25.10.23
José Mateos (Canção do que está por dizer)
CANCIÓN DE LO QUE ESTÁ POR DECIR
Te esperé siendo niño;
en las noches del miedo
sólo con mis preguntas.
Pero tú no acudiste.
Te esperé sin paciencia
más tarde, entre la gente,
dándote nombres falsos.
Y te sentí más lejos.
A la luz de una lámpara,
te esperé en otras voces.
Y casi eras audible
en algunos poemas.
Pero tú me rozabas
y desaparecías.
Después, de muchas formas
y en muchas ocasiones
te he esperado, Palabra
aún por decir, que dice
y no dice, que sabe
lo que nunca se sabe.
Canción que me contiene.
José Mateos
Esperei-te em criança,
pelas noites do medo,
a sós com minhas perguntas.
Mas tu não vieste.
Esperei-te impaciente,
depois, entre as pessoas,
dando-te nomes falsos.
E senti-te mais longe.
À luz de uma lâmpada,
esperei-te noutras vozes,
e quase podia ouvir-te
em certos poemas.
Mas tu tocavas-me,
de leve, e desaparecias.
Depois, esperei-te, de muitas
formas e em muitas alturas,
Palavra ainda por dizer,
que diz e não diz, que sabe
aquilo que nunca se sabe.
Canção que me contém.
(Trad. A.M.)
24.10.23
José Luis Morante (A semente)
LA SEMILLA
En la fragilidad de la semilla
hay un rumor de savia
donde cabe el silencio.
En él escarban
futuro las raíces
y dormitan los troncos
que buscan en el aire arquitectura.
Somos en la semilla
un ciclo de estaciones
y lluvias y solanas
y nubes que desandan los azules gastados
de los cielos con pájaros.
A resguardo del tiempo,
en la semilla duerme otra semilla.
José Luis Morante
Na fragilidade da semente
há um rumor de seiva
onde cabe o silêncio.
Nele cavam
futuro as raízes
e dormitam os troncos
que buscam a arquitectura no ar.
Somos na semente
um ciclo de estações
e chuvas e solinas
e nuvens que empurram os azuis gastos
dos céus dos pássaros.
Ao abrigo do tempo,
na semente dorme outra semente.
(Trad. A.M.)
22.10.23
Joaquim Namorado (O caruncho do eterno)
20.10.23
José Luis García Martín (Ao voltar de um passeio)
Al
volver de un paseo
por la
orilla del río,
recuerdo
la soledad
de mis
catorce años,
de los
que nunca
he
logrado escapar del todo.
Sigo
siendo
el chico
malhumorado
sin otra
función en la vida
que
espiar por las ventanas
encendidas
la
felicidad ajena,
sigo
siendo ese chico
sin
chica y sin amigos
que
camina bajo la lluvia,
retrasando
el momento
de
regresar a una casa
que
nunca ha sido su casa.
J.L.
García Martín
pela
beira do rio,
recordo
a solidão
dos meus
catorze anos,
de que
nunca até hoje
consegui
escapar de todo.
Sou
ainda agora
o moço
mal-humorado
sem
outro papel na vida
senão
espreitar
pelas
janelas iluminadas
da
ventura dos outros,
continuo
sendo esse moço
sem moça
nem amigos,
a
caminhar com a chuva,
retardando
o momento
de
regressar a uma casa
que
nunca foi a sua casa.
(Trad.
A.M.)
19.10.23
José Jiménez Lozano (Homero)
HOMERO
Si ahora llegase Homero
a tu jardín ¿qué harías?
¿Dónde guardas los dátiles, la miel,
la leche o un trozo de puerco?
¿Crees que hablaría contigo de las Pléyades
y podrías darle a leer tus poemas?
¡Oh, padre Homero, siéntate y escucha!
Dime si Ulyses, si Penélope, si la luna
roja
de setiembre, si la escarcha o el viento
cierzo, si las vides o la marina espuma,
si la rima o la luna, si la muerte
están bien situadas en mis versos,
sólo esto.
José Jiménez Lozano
Se aí viesse Homero
ao teu jardim, o que farias tu?
Onde é que guardas o mel, as tâmaras,
o leite, um pedaço de porco?
Achas que ele te falaria das Plêiades,
ou que poderias dar-lhe os teus poemas a ler?
Oh, pai Homero, senta-te e escuta!
Diz-me se Ulisses, se Penélope,
se a lua vermelha de Setembro,
se o vento ou orvalho, se as vides
ou a espuma do mar,
se a rima ou a lua, se a morte
estão bem postas em meus versos,
apenas isso.
(Trad. A.M.)
17.10.23
Mark Strand (O guardião)
THE GUARDIAN
The sun setting. The lawns of fire.
The lost day, the lost light.
Why do I love what fades?
You who left, who were leaving,
what dark rooms do you inhabit?
Guarding of my death,
preserve my absence. I am alive.
Mark Strand
O sol a pôr-se. Os relvados em fogo.
O dia perdido, a luz perdida.
Por que amo eu o que esmorece?
Tu que partiste, que estavas a ir-te embora,
em que escuros quartos vives?
Guardião da minha morte,
protege a minha ausência. Eu estou vivo.
(por fjcc)
15.10.23
José Emilio Pacheco (A flecha)
LA FLECHA
No importa que la flecha no alcance el blanco
Mejor así
No capturar ninguna presa
No hacerle daño a nadie
pues lo importante
es el vuelo la trayectoria el impulso
el tramo de aire recorrido en su ascenso
la oscuridad que desaloja al clavarse
vibrante
en la extensión de la nada
José Emílio Pacheco
Não importa que a flecha não
atinja o alvo
Antes assim
Não apanhar a presa
Não ferir ninguém
pois o importante é o voo a
trajectória o impulso
a porção de espaço que ela
percorre
a escuridão que desaloja ao
cravar-se
vibrante
na extensão do nada
(Trad. A.M.)
14.10.23
José Cereijo (Praga)
MALDICIÓN
Que
alguna enfermedad implacable y secreta
te devore por dentro, lentamente.
Que no haya en ningún sitio agua para tu sed,
sueño para tus ojos extraviados,
tiempo para tu corazón.
Que la vida, continuamente hostil,
te ofrezca sólo espinas, peligros, negaciones.
Que todo lo que lleves a los labios
se llene de un sabor amargo y póstumo.
Que seas, en fin, lo mismo que yo soy,
lo mismo que seré
mientras que no consiga
librarme de tu ausencia.
José Cereijo
Que uma doença secreta e implacável
te devore por dentro, lentamente.
Que não haja em nenhum lado água para a tua sede,
nem sono para os teus olhos,
tempo para o coração.
Que a vida, sempre malina,
te dê apenas espinhos, perigos e negações.
Que tudo que leves aos lábios
tenha um sabor amargo e póstumo.
Que sejas enfim o mesmo que eu sou,
o mesmo que hei-de ser
enquanto não me livrar
da tua
ausência.
(Trad. A.M.)
12.10.23
Giuseppe Ungaretti (Sereno)
SERENO
Dopo tanta
nebbia
a una
a una
si svelano
le stelle
Respiro
il fresco
che mi lascia
il colore
del cielo
Mi riconosco
immagine
passeggera
Presa in un giro
immortale
Giuseppe Ungaretti
Depois
da névoa
uma
a uma
se desvelam
as estrelas
Respiro
a fresca
que me deixa
a cor
do céu
Imagem
passageira
me reconheço
Presa numa roda
imortal
(Trad. A.M.)
10.10.23
José Antonio Martínez Muñoz (Atque amemus)
ATQUE AMEMUS
atque amemus, amada, ahora
justo cuando el mundo se precipita
a la barbarie, aunque no vistas de azul
(ellos sí llevan trajes oscuros)
ni llueva sobre París, que quizá no sea nuestro,
aunque las arenas de Libia ya contengan
sólo el polvo dormido el eco olvidado
de tantas medulas que han gloriosamente ardido
todo eso ya da igual, mas hay plata viva
en el lago de tu mirada
peces que se aman en su honda freza
eres violetas que el viento acaricia
y te pido sólo tu más largo beso
no miles ni millones ni colmatar la Cirenaica
los años de vigor y entusiasmo se han ido
rezumando de una vasija mal sellada
y quizá la arena espera a las viejas banderas
los libros amados las manchas de viva pintura
que nos arrancaban lágrimas de amor
y al mundo y a nuestras respuestas escasas
atque amemus, amada, dame un
beso
quiero tus brazos y tus labios
ahora que ya creo oír atenuado
el torpe sollozo del mundo
amemus, seamos otra vez dignos y bellos
cuando irrumpan los bárbaros a caballo
vivamos otro poco, amada,
atque amemus, mientras el mundo se va al carajo
José Antonio Martínez Muñoz
atque amemus, amada, agora
mesmo que o mundo se precipita
na barbárie, embora não vistas de azul
(eles sim usam fato escuro)
nem chova em Paris, que talvez não seja nosso,
embora as areias da Líbia já tenham só
o pó adormecido o eco esquecido
de tantas medulas que arderam em glória
tudo isso vale o mesmo, mas há prata viva no lago de teu
olhar
peixes a amar-se na desova profunda
és violetas que o vento afaga
e eu peço-te só o beijo mais longo
não mil nem milhões nem encher a Cirenaica
anos de vigor e entusiasmo foram-se
ressumando duma vasilha mal selada
e se calhar a areia espera as velhas bandeiras
os livros amados as manchas de pintura
que nos arrancavam lágrimas de amor,
como espera o mundo e as nossas respostas
atque amemus, amada, dá-me um beijo
quero os teus braços e os lábios
agora que creio já ouvir em surdina
o torpe soluço do mundo
amemus, sejamos de novo dignos e belos
quando a cavalo irromperem os bárbaros
vivamos mais um pouco, amada,
atque amemus, enquanto o mundo se despenha
(Trad. A.M.)
9.10.23
José Bergamín (Que pouco me vai restando)
¡Qué poco me va quedando
de lo poco que tenía!
Todo se me va acabando
menos la melancolía.
José Bergamín
Que pouco me vai restando
do pouco que possuía!
Tudo me vai acabando,
menos a melancolia.
(Trad. A.M.)
7.10.23
Fernando Pessoa (A ceifeira)
A CEIFEIRA
Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez...
Canta e ceifa e a sua voz cheia
De alegre e anónima viuvez
Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.
Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.
Ah, com tão límpida pureza
A sua voz entra no azul
Que em nós sorri quanto é tristeza
E a vida sabe a amor e a sul!
Canta! Arde-me o coração.
O que em mim ouve está chorando.
Derrama no meu peito vão
A tua incerta voz ondeando!
Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu,
Ó campo, ó canção, a ciência
Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro, tornai
Minh’alma a vossa sombra leve!...
Depois, levando-me, passai!...
Fernando Pessoa
5.10.23
José Antonio Labordeta (Os olvidos)
LOS
OLVIDOS
Los olvidos se guardan
en el armario viejo de mi madre.
Cuando lo abro
los inocentes salen a raudales
y el ilustre profesor sin chaqueta
sonríe con una lejana mueca
de tristeza.
Mi madre, reflejada en el espejo,
me vuelve a dar consejos
igual que cuando niños.
Cierro de golpe
y el silencio atenaza
las brumas del otoño.
José Antonio Labordeta
Esquecimentos
guardam-se
no armário velho de minha mãe.
Quando o abro
os coitados saem aos montes
e o ilustre professor sorri
de corpo benfeito
com uma careta distante de tristeza.
Minha mãe, reflectida no espelho,
volta a dar-me conselhos
tal como em criança.
Fecho de repente
e o silêncio envolve
as brumas de outono.
(Trad. A.M.)
4.10.23
José Antonio Fernández Sánchez (Pássaro)
PÁSARO
He decidido hablar de pájaros.
Así, escribiendo pájaro en el aire
con la brasa de un lápiz invisible
conseguiré que un viento peculiar
remueva y mueva las conciencias.
Igual que cuando atamos una anilla
al ala rompedora y le grabamos
el número siguiente al anterior.
Hablar de pájaros es eso.
O como cuando hacemos de las plumas
un modo de metáfora al revés.
Así, leyendo pájaro en el aire
habré llegado al modo de entender
la volatilidad de la escritura,
la paridad de la cadencia, habré
aprendido a diferenciar el humo
inconfundible de un avión
del humo propio de una nube.
Hablar de pájaros no es fácil.
Pues cuanto más me acerco a la palabra,
cuantos más picos, plumas o alas busque
más nada quedará del pájaro.
¿O hablaba de poesía?
¿No será que poesía y pájaro
son la misma palabra? ¿No será
que con distintas letras
se puede retomar el mismo vuelo?
José Antonio Fernández Sánchez
Decidi falar de pássaros.
Assim, escrevendo pássaro no ar
com a brasa de um lápis invisível
conseguirei que um vento peculiar
remova e mova as consciências.
Tal como quando atamos uma anilha
à asa partida e lhe pomos
o número seguinte ao anterior.
Falar de pássaros é isso.
Ou como quando fazemos das penas
um modo inverso de metáfora.
Assim, lendo pássaro no ar
chegarei ao modo de entender
a volatilidade da escrita,
a paridade da cadência,
aprenderei a distinguir o fumo inconfundível de um avião
do fumo próprio de uma nuvem.
Falar de pássaros não é fácil.
Pois quanto mais me acerco da palavra,
quanto mais bicos, penas ou asas procure
mais nada ficará do pássaro.
Ou falava de poesia?
Não serão poesia e pássaro
uma mesma e só palavra? Não será
que com letras distintas
podemos retomar o mesmo voo?
(Trad. A.M.)
.
2.10.23
Manuel Resende (Dentes portugueses)
Adeus, adeus, meus dentes! Só mais outro
dia,
e vai-se acabar todo o conflito entre nós,
divórcio que a dentista estrangeira oficia
num desconsentimento total e feroz.
Essa fidelidade tão à portuguesa,
feita de tanto golpe baixo, tantas fintas,
com que me temperaste o prazer da mesa,
fruto de fero amor, tão vero e
troca-tintas,
Ficai com ela, que eu dispenso despedidas.
A culpa é toda minha, devo confessar
que não tinha dinheiro e descurei medidas
evidentes no plano mais elementar.
O remorso católico arde-me feridas
no sítio que Calvino gosta de brocar.
Manuel Resende