7.10.23

Fernando Pessoa (A ceifeira)




A CEIFEIRA

 

Ela canta, pobre ceifeira,
Julgando-se feliz talvez...
Canta e ceifa e a sua voz cheia
De alegre e anónima viuvez

Ondula como um canto de ave
No ar limpo como um limiar,
E há curvas no enredo suave
Do som que ela tem a cantar.

Ouvi-la alegra e entristece,
Na sua voz há o campo e a lida,
E canta como se tivesse
Mais razões pra cantar que a vida.

Ah, com tão límpida pureza
A sua voz entra no azul
Que em nós sorri quanto é tristeza
E a vida sabe a amor e a sul!

Canta! Arde-me o coração.
O que em mim ouve está chorando.
Derrama no meu peito vão
A tua incerta voz ondeando!

Ah, poder ser tu, sendo eu!
Ter a tua alegre inconsciência
E a consciência disso! Ó céu,
Ó campo, ó canção, a ciência

Pesa tanto e a vida é tão breve!
Entrai por mim dentro, tornai
Minh’alma a vossa sombra leve!...
Depois, levando-me, passai!...

Fernando Pessoa

[Pessoa digital]

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