2.5.08

Fernando Pessoa / A. Campos (Adiamento)








ADIAMENTO





Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...




Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...



O porvir...
Sim, o porvir...



Álvaro de Campos
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1.5.08

Olhar (22)








Doiro

(Anreade/Resende)

Frente-a-Tormes

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Eugénio de Andrade (O silêncio)






O SILÊNCIO



Quando a ternura
parece já do seu ofício fatigada,
e o sono, a mais incerta barca,
inda demora,
quando azuis irrompem
os teus olhos
e procuram
nos meus navegação segura,
é que eu te falo das palavras
desamparadas e desertas,
pelo silêncio fascinadas.


EUGÉNIO DE ANDRADE
Obscuro Domínio


[Fundação Eugénio A.]

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27.4.08

Raul Brandão (A inutilidade da vida)








Hoje acordei com este grito. Eu não soube fazer uso da vida!

O que me pesa é a inutilidade da vida.

Agarro-me a um sonho; desfaz-se-me nas mãos; agarro-me a uma mentira e sempre a mesma voz me repete:
- É inútil! Inútil!




- RAUL BRANDÃO, Memórias, I, prefácio.


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Nuno Júdice (Carpe diem)





CARPE DIEM




Confias no incerto amanhã? Entregas
às sombras do acaso a resposta inadiável?
Aceitas que a diurna inquietação da alma
substitua o riso claro de um corpo
que te exige o prazer? Fogem-te, por entre os dedos,
os instantes; e nos lábios dessa que amaste
morre um fim de frase, deixando a dúvida
definitiva. Um nome inútil persegue a tua memória,
para que o roubes ao sono dos sentidos. Porém,
nenhum rosto lhe dá a forma que desejarias;
e abraças a própria figura do vazio. Então,
por que esperas para sair ao encontro da vida,
do sopro quente da primavera, das margens
visíveis do humano? "Não", dizes, "nada me obrigará
à renúncia de mim próprio -- nem esse olhar
que me oferece o leito profundo da sua imagem!"
Louco, ignora que o destino, por vezes,
se confunde com a brevidade do verso.



Nuno Júdice
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25.4.08

Vicente Aleixandre (Unas pocas palabras)








UNAS POCAS PALABRAS





Unas pocas palabras en tu oído diría.
Poca es la fe de un hombre incierto.
Vivir mucho es oscuro, y de pronto saber no es conocerse.
Pero aún así diría. Pues mis ojos repiten lo que copian:
tu belleza, tu nombre, el son del río, el bosque,
el alma a solas.



Todo lo vio y lo tienen. Eso dicen los ojos.
A quien los ve responden. Pero nunca preguntan.
Porque si sucesivamente van tomando
de la luz el color, del oro el cieno
y de todo el sabor el pozo lúcido,
no desconocen besos, ni rumores, ni aromas;
han visto árboles grandes, murmullos silenciosos,
hogueras apagadas, ascuas, venas, ceniza,
y el mar, el mar al fondo, con sus lentas espinas,
restos de cuerpos bellos, que las playas devuelven.



Unas pocas palabras, mientras alguien callase;
las del viento en las hojas, mientras beso tus labios.
Unas claras palabras, mientras duermo en tu seno.
Suena el agua en la piedra. Mientras, quieto,
estoy muerto.




Vicente Aleixandre (*)
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Fontes: Poesi-as (74p) / A-media-voz (33p) / A-media-voz-2 (10p) / Los-poetas (36p+bio) / Club-Cultura (sítio of./obra toda)
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(*) N. 26.4.1898 (Sevilha)
.... Prémio Nobel Lit. (1977)

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23.4.08

Miguel Torga (Toupeiras)





Animados da mesma violência, vinham à tona o ódio, o amor e a compaixão.
Toscos e limitados às paredes do seu pequeno mundo, sem cultura e sem horizontes, arrancavam da alma, indiscriminadamente, pedras preciosas e seixos.
Instintivos e contraditórios, estavam longe ainda de acertar o passo das paixões no caminho da livre dignidade que de longe lhes acenava.
Animais domesticados há muitos mil anos, tomavam por condição um jugo que um gesto quebraria.
O senhor tinha-lhes desonrado as mulheres no passado, e agora podiam-no esbofetear e defender a honra.
Mas não eram capazes de alargar a todos os recantos da sujeição as conquistas que faziam.
Toupeiras acostumadas à escuridão, postas à luz do sol, só muito devagar conseguiam abrir os olhos e ver.



- MIGUEL TORGA, Vindima, XLIX, in medio.


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Jaime Sabines (Dona Luz-2)





DOÑA LUZ
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II

Es muy raro que yo también tuviese una madre.
A veces pienso que la soñé demasiado,
la soñé tanto que la hice.
Casi todas las madres son criaturas de nuestros sueños.


JAIME SABINES
Maltiempo (1972)
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21.4.08

António Reis (Sei)








Sei
ao chegar a casa
qual de nós
voltou primeiro do emprego
.
.
.
Tu
se o ar é fresco
.
.
.
eu
se deixo de respirar
subitamente

.

ANTÓNIO REIS
- Novos Poemas Quotidianos,
Porto [1959].





Fonte: António Reis
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Consultar: Wikipedia
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Coitado do Jorge (42)





COSTAS



Lembrar...
Aquelas costas, as mais ingratas da comarca.
Já faladas
aqui

Quantos beijos desperdiçados!...
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18.4.08

Olhar (21)











Córdova

(Espanha)

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Raul Brandão (Amargor)






O que sei de belo, de grande ou de útil, aprendi-o nesse tempo: o que sei das árvores, da ternura, da dor e do assombro, tudo me vem desse tempo…

Depois não aprendi coisa que valha.

Confusão, balbúrdia e mais nada.

Vacuidade e mais nada.

Figuras equívocas ou, com raras excepções, sentimentos baços.

Amargor e mais nada.

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- RAUL BRANDÃO, Memórias, I, prefácio.
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15.4.08

José Bergamín (Água solo es el mar)





AGUA sólo es el mar; agua es el río,
Agua el torrente, y agua el arroyuelo.
Pero la voz que en ellos habla y canta
No es del agua, es del viento.


Agua es la blanda nieve silenciosa
Y el mundo bloque de cristal de hielo.
Pero no es agua, es luz la voz que calla
Maravillosamente en su silencio.


Agua es la nube oscura y silenciosa,
Errante prisionera de los cielos.
Pero su sombra, andando por la tierra
Y el mar, no es agua, es sueño.


José Bergamín





Água apenas é o mar, água o rio,
Água a torrente e o arroio.
Mas a voz que neles canta
Não é da água, é do vento.


Água a branda neve silenciosa
E o mundo bloco de cristal de gelo.
Mas não é água, é luz a voz que cala
Maravilhosamente em seu silêncio.


Água a nuvem escura e silenciosa,
Errante prisioneira dos céus.
Mas sua sombra, andando por terra
E mar, não é água, é sonho.


(Trad. A.M.)

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Vitorino Nemésio (A concha)






A CONCHA




A minha casa é concha. Como os bichos
Segreguei-a de mim com paciência:
Fachada de marés, a sonho e lixos,
O horto e os muros só areia e ausência.


Minha casa sou eu e os meus caprichos.
O orgulho carregado de inocência
Se às vezes dá uma varanda, vence-a
O sal que os santos esboroou nos nichos.


E telhados de vidro, e escadarias
Frágeis, cobertas de hera, oh bronze falso!
Lareira aberta ao vento, as salas frias.


A minha casa. . . Mas é outra a história:
Sou eu ao vento e à chuva, aqui descalço,
Sentado numa pedra de memória.



Vitorino Nemésio




Fonte: Jornal de Poesia

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Antes, aqui: Loa / Um verso

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10.4.08

Miguel Torga (Bambas e destravadas)





(Bambas e destravadas...)




E voltava à certeza anterior.

Infelizmente, as pálpebras, desanimadas das miragens sucessivas, recusavam-se a permanecer abertas.

Semelhantes a janelas de guilhotina, bambas e destravadas nas corrediças, mal se descuidava, fechavam-se obstinadas.

Num arrepio tímido, o resto do corpo acompanhava aquele desertar, e pedia em todas as posições o repouso da enxerga habitual.



- MIGUEL TORGA, Vindima, XXXIV, in medio.

Um verso (43)

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Um verso de Manoel de Barros
(de “O Guardador de Águas”):




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Poeta é um ente que lambe as palavras e depois se alucina.
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7.4.08

Mário Quintana (Poeminha do contra)





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POEMINHA DO CONTRA







Todos esses que aí estão
atravancando meu caminho,
eles passarão...
eu passarinho!





Mário Quintana
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Olhar (20)



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La Alhambra

Granada

(Espanha)





4.4.08

Alberto Pimenta (Sugestão)





SUGESTÃO




já tentaste praticar o bem
fazendo mal?
.
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já tentaste praticar o mal
fazendo bem?
.
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já tentaste praticar o bem
fazendo bem?
.
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já tentaste praticar o mal
fazendo mal?
.
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já tentaste praticar o bem
não fazendo nada?
.
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já tentaste praticar o mal
fazendo tudo?
.
.
já tentaste praticar tudo
não fazendo nada?
.
.
e o contrário, já tentaste?
já?
.
.
seja qual for a tua resposta,
não sei que te diga.




Alberto Pimenta
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2.4.08

Raul Brandão (A que se reduz a vida?)





A que se reduz afinal a vida?

A um momento de ternura e mais nada…

De tudo o que se passou comigo só conservo a memória intacta de dois ou três rápidos minutos.

Esses sim!

Teimam, reluzem lá no fundo e inebriam-me, como um pouco de água fria embacia o copo.

Só de pequeno retenho impressões tão nítidas como na primeira hora: ouço hoje como ontem os passos de meu pai quando chegava a casa; vejo sempre diante dos meus olhos a mancha azul ferrete das hidrângeas que enchiam o canteiro da parede.

O resto esvai-se como fumo.

Até as figuras dos mortos, por mais esforços que faça, cada vez se afastam mais de mim…



- RAUL BRANDÃO, Memórias, I, prefácio.
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Fernando Pessoa (Liberdade)






LIBERDADE





Ai que prazer
não cumprir um dever.
Ter um livro para ler
e não o fazer!
Ler é maçada,
estudar é nada.
O sol doira sem literatura.
O rio corre bem ou mal,
sem edição original.
E a brisa, essa, de tão naturalmente matinal
como tem tempo, não tem pressa...


Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.


Quanto melhor é quando há bruma.
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!


Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol que peca
Só quando, em vez de criar, seca.


E mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças,
Nem consta que tivesse biblioteca...



Fernando Pessoa
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31.3.08

António Botto (Se fosses luz)






Se fosses luz serias a mais bela
de quantas há no mundo: - a luz do dia!
- Bendito seja o teu sorriso
que desata a inspiração
da minha fantasia!


Se fosses flor serias o perfume
concentrado e divino que perturba
o sentir de quem nasce para amar!
- Se desejo o teu corpo
é porque tenho dentro de mim
a sede e a vibração de te beijar!


Se fosses água - música da terra,
serias água pura e sempre calma!
- Mas de tudo que possas ser na vida,
só quero, meu amor, que sejas alma!



António Botto




Antes, aqui: Anda, vem / Nunca te foram (+sinopse)

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Mario Benedetti (Táctica e estratégia)





TÁCTICA E ESTRATEGIA
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Mi táctica es
mirarte
aprender como sos
quererte como sos
.
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mi táctica es
hablarte
y escucharte
construir con palabras
un puente indestructible
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mi táctica es
quedarme en tu recuerdo
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
pero quedarme en vos
.
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mi táctica es ser franco
y saber que sos franca
y que no nos vendamos
simulacros
para que entre los dos
no haya telón
ni abismos
.
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mi estrategia es
en cambio
más profunda y más
simple
mi estrategia es
que un día cualquiera
no sé cómo ni sé
con qué pretexto
por fin me necesites.



Mario Benedetti
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Fonte: EPDLP
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28.3.08

Miguel Torga (Depois de ceia)


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(Depois da ceia...)
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Depois da ceia, o pessoal, extenuado, esfarrapado e imundo, cabeceava pelos cantos, ainda à espera de mais trabalho.
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Ganho o dia aos cestos, era preciso ganhar a noite no lagar, num chouto que a princípio dava gosto e alegria, e se prolongava numa tortura desesperante.
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O sono parava os nervos e os músculos, e a vontade tinha de protestar, de combater, de movimentar à sobreposse as articulações, mais perras que dobradiças enferrujadas.
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Ás tantas, erguer uma perna tornava-se um sacrifício.
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O resto do corpo quase que desanimava perante a obstinada renúncia daquela parcela amortecida, inerte e pesada na espessura do mosto.
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Mas tudo na vida acaba, e a penitência não fugia à regra.
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Medida no relógio do Jacinto, com rigor de quem pesa oiro, a hora almejada de despegar chegava finalmente.
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E, num automatismo resignado, lá iam procurar na palha forças para o dia seguinte.



- MIGUEL TORGA, Vindima, XXXIV, princípio.
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Jorge de Sena (Morra o bispo)






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MORRA O BISPO E MORRA O PAPA





Morra o bispo e morra o papa
maila sua clerezia.
Ai rosas de leite e sangue.
que só a terra bebia!
Morram frades, morram freiras.
maila sua virgaria.
Ai rosas de sangue e leite.
que só a terra bebia!
Morra o rei e morra o conde.
maila toda fidalguia.
Ai rosas de leite e sangue.
que só a terra bebia!
Morram meirinho e carrasco.
maila má judicaria.
Ai rosas de sangue e leite.
que só a terra bebia!
Morra quem compra e quem vende,
maila toda a usuraria.
Ai rosas de leite e sangue.
que só a terra bebia!
Morram pais e morram filhos.
maila toda filharia.
Ai rosas de sangue e leite.
que só a terra bebia!
Morram marido e mulher.
maila casamentaria.
Ai rosas de leite e sangue,
que só a terra bebia!
Morra amigo, morra amante.
mailo amor que se perdia.
Ai rosas de sangue e leite,
que só a terra bebia!
Morra tudo, minha gente.
vivam povo e rebeldia.
Ai rosas de leite e sangue.
que só a terra bebia!




JORGE DE SENA
Visão perpétua (1964)
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25.3.08

Jaime Sabines (Dona Luz-1)


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DOÑA LUZ



I

Acabo de desenterrar a mi madre, muerta hace tiempo.
Y lo que desenterré fue una caja de rosas:
frescas, fragantes, como si hubiesen estado en un invernadero.
Qué raro es todo esto!



JAIME SABINES
Maltiempo (1972)
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23.3.08

Olhar (19)









"Sol na portela é noite"...

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Felgueiras (aliás, Beirós)

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Eduardo Pitta (Gosto da claridade)





Gosto da claridade penumbrosa
de adolescentes indecisos.


Gosto deles assim lentos
inaptos, vorazes, sedentos
do labor meticuloso e da
antiquíssima sabedoria de outras mãos.


Anjos devastados, senhores do caos,
é para longe que partem.


O primeiro dos vinhos, bebido
da ânfora para a boca, alerta-os —

regressam agora às palavras e
aos gestos de antigamente.


Cumprem-se no jogo.
E ninguém suspeita de nada.



Eduardo Pitta



Fonte: Eduardo-Pitta

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21.3.08

Raul Brandão (Não me arrependo)







Se tivesse de recomeçar a vida, recomeçava-a com os mesmos erros e paixões.

Não me arrependo, nunca me arrependi.

Perdia outras tantas horas diante do que é eterno, embebido ainda neste sonho puído.

Não me habituo: não posso ver uma árvore sem espanto, e acabo desconhecendo a vida e titubeando como comecei a vida.

Ignoro tudo, acho tudo esplêndido, até as coisas vulgares: extraio ternura de uma pedra.

Não sei - nem me importo - se creio na imortalidade da alma, mas do fundo do meu ser agradeço a Deus ter-me deixado assistir um momento a este espectáculo desabalado da vida.

Isso me basta.

Isso me enche: levo-o para a cova, para remoer durante séculos e séculos até ao juízo final.



- RAUL BRANDÃO, Memórias, I, prefácio.



Consultar: Vidas-lusófonas (perfil) / DGLB (bio+biblio+linques)

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Albano Martins (Entras)






Entras
em mim descalça, vulnerável
como um alvo próximo, ferida
nos joelhos e nas coxas. Pelo tacto
nos conhecemos, é essa luz
oblíqua que nos cega. E te pertenço
e me pertences como
a lâmina
à bainha, a chama
ao pavio.



Albano Martins


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18.3.08

Claribel Alegria (Pequena morte)






PEQUEÑA MUERTE


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Fue una pequeña muerte
tu partida.
Una muerte pequeña que me crece
cuando imagino
a veces que estás cerca
y me obstino en dar vueltas
por las calles
y regreso a mi casa
con la lluvia
cayendo y me asalta tu voz
en la noche
sin horas.


Claribel Alegria







Foi uma pequena morte
a tua partida.
Uma morte pequena que me cresce
quando imagino
por vezes que estás perto
e me obstino em dar voltas
pelas ruas
e regresso a casa
com a chuva
caindo e me assalta a tua voz
na noite
sem horas.



(Trad. A.M.)
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Miguel Torga (Dezoito asas rumorosas)






(Dezoito asas rumorosas...)
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O primeiro bando de perdizes roncou, e tirou-lhe duas.

No meio do silêncio contido, que a cada momento ameaçava romper-se, o cão parado, a espingarda em meia pontaria, os pés fincados no chão mas tensos como molas, uma gota misteriosa caiu no copo e fê-lo transbordar.

Dezoito asas rumorosas ergueram-se do carqueijal, o Nilo saltou, os tiros partiram, e resultou daquela explosão de força o aniquilamento inevitável de dois seres.

Tudo certo e perfeito.

O catastrófico, o absurdo, fora a continuação da inércia.

A verdadeira morte seria a vida parada, cada respiração a encolher-se, cautelosa.

Assim é que o caçador se sentiria criminoso, o perdigueiro fera, as perdizes vítimas.



- MIGUEL TORGA, Vindima, XIV, princípio.
.
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16.3.08

Bertolt Brecht (Do rio)






Do rio que tudo arrasta se
diz que é violento
Mas ninguém diz violentas as
margens que o comprimem



Bertolt Brecht







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13.3.08

Um verso (42)
















Um verso de Casimiro B.
(mas tem mais…):






O amor é antes de mais um desejo,que nunca se esgota.







Fonte: Sítio-of.
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Pedro Mexia (Aprendizagem)






APRENDIZAGEM
(decalque de e. e. cummings)





o eclesiastes disse-

-lhe:ele não podia
acreditar (nietzche

disse-lhe;ele
não queria acreditar
nisso)cesare

pavese
certamente disse-
-lhe,e jacques
(sim

senhora)
brel
e até
(acredite
ou
não)você
lhe disse: eu disse-
-lhe;nós dissemos-lhe
(ele não acreditou, não
senhor)foi preciso
que o céu lhe caísse
muito justa-

mente
em cima da cabeça:para dizer-

-lhe

.
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[n. do a.: “a partir da versão portuguesa do poema ‘plato told’ por Jorge Fazenda Lourenço”]




PEDRO MEXIA
Avalanche, edições Quasi (2001)
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10.3.08

León Felipe (Sé todos los cuentos)








SÉ TODOS LOS CUENTOS





Yo no sé muchas cosas, es verdad.
Digo tan sólo lo que he visto.
Y he visto:
Que la cuna del hombre la mecen con cuentos,
que los gritos de angustia del hombre los ahogan
con cuentos,
que el llanto del hombre lo taponan con cuentos,
que los huesos del hombre los entierran con cuentos,
y que el miedo del hombre...
ha inventado todos los cuentos.
Yo no sé muchas cosas, es verdad,
pero me han dormido con todos los cuentos...
y sé todos los cuentos.





León Felipe





Eu não sei muitas coisas, é verdade.
Falo apenas daquilo que vi.
E eis o que vi:
que o berço do homem embalam-no com cantigas,
que os gritos de angústia do homem afogam-nos
com cantigas,
que o pranto do homem tampam-no com cantigas,
que os ossos do homem enterrram-nos com cantigas,
e que o medo do homem…
inventou as cantigas todas.
Eu cá não sei muitas coisas, é verdade,
mas adormeceram-me com todas as cantigas…
e conheço as cantigas todas.


(Trad. A.M.)
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Fontes: Wikipedia / Cervantes (Español del êxodo e del llanto - 1939) /Tinet (19p) / EPDLP (bio+2p+audio) / A-media-voz (27p) / Poesi.as (18p) / Portal-de-poesia (linques)

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3.3.08

Rabindranath Tagore (Se não falas)






Se não falas, vou encher o meu coração
Com o teu silêncio, e aguentá-lo.
Ficarei quieto, esperando, como a noite
Em sua vigília estrelada,
Com a cabeça pacientemente inclinada.




A manhã certamente virá,
A escuridão se dissipará, e a tua voz
Se derramará em torrentes douradas por todo o céu.




Então as tuas palavras voarão
Em canções de cada ninho dos meus pássaros,
E as tuas melodias brotarão
Em flores por todos os recantos da minha floresta.



Rabindranath Tagore




Fontes: Starnews (bio+10p) / Cuidar-do-ser (6p) / Nobel (bio) / Toshiko (10p) / Wikipedia / Indolink (20p)


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1.3.08

Adélia Prado (Corridinho)






CORRIDINHO





O amor quer abraçar e não pode.
A multidão em volta,
com seus olhos cediços,
põe caco de vidro no muro
para o amor desistir.
O amor usa o correio,
o correio trapaceia,
a carta não chega,
o amor fica sem saber se é ou não é.
O amor pega o cavalo,
desembarca do trem,
chega na porta cansado
de tanto caminhar a pé.
Fala a palavra açucena,
pede água, bebe café,
dorme na sua presença,
chupa bala de hortelã.
Tudo manha, truque, engenho:
é descuidar, o amor te pega,
te come, te molha todo.
Mas água o amor não é.





Adélia Prado


Fonte: Releituras
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Miguel Torga (Um trilo de flauta)






(Um trilo de flauta...)




Um trilo de flauta, débil e puro, chegou-lhe então do alto, num prelúdio. Impreciso e tímido, hesitava como se receasse saltar os valeiros.

Que gelo vinha do passado, e que doce calor havia naquela hora! A mãe, seca e convencional; o pai, irrascível e grosseiro; o irmão, desconsolado e bisonho. Neste areal, ela, a crescer desiludida. E de repente o deserto transfigurava-se, e os sentidos descobriam nele, repassada de frescura, uma planície de promissão!

Sem pensar que ia colhê-lo, caminhou hipnotizada ao encontro do som.

Vazio de ternura e amor, o corpo pedia-lhe a sua parte no banquete do mundo; a intimidade duma presença querida, o aconchego dum lar feliz…

Alta e acariciadora, a voz da flauta chamava.


- MIGUEL TORGA, Vindima, XIII, in medio.