6.11.25

Aldo Luis Novelli (O oleiro-III)




EL ALFARERO-III 

(8)

venimos del barro elemental
con las manos vacías
y el alma iluminada. 

a poco de andar
rozando la piel del mundo
nos ponemos de pie
y reímos de alegría
al sabernos humanos. 

pero en la mitad del camino
dejamos de reír
llenamos las manos de baratijas
y el alma va perdiendo su luz
se vuelve opaca
como la tierra sucia que vuela
en las ciudades de cemento. 

al final del camino
nos despojamos
de las cargas de la espalda
vaciamos nuestras manos
nos arrodillamos en el barro
y oramos al dios sol
para que nos ilumine nuevamente el alma.
 

Aldo Luis Novelli

[Marcelo Leites] 

 

(8)

Nós vimos do barro elementar
com as mãos vazias
e a alma iluminada.
 

A pouco de andar
roçando a pele do mundo
pomo-nos de pé
e rimos de alegria
ao sabermo-nos humanos.

Mas a meio do caminho
deixamos de rir
enchemos as mãos de bugigangas
e a alma vai perdendo a luz
tornando-se opaca
como a poeira que voa
na cidade de cimento. 

No fim do caminho
tiramos o carrego das costas
esvaziamos as mãos
e ajoelhamos na lama
pedindo ao deus sol
que nos ilumine a alma de novo.
 

(Trad. A.M.)

 .

5.11.25

Basilio Sánchez (Árvores)




ÁRBOLES

 

El buscador de sombra
reconoce en un árbol su majestuosidad,
pero elige en secreto su pobreza.

El rastreador de símbolos
encuentra en la corteza arrancada de los árboles
una caligrafía primitiva,
las huellas de una forma en desuso
de comunicación con la existencia:
una expresión remota, la más rudimentaria,
del agradecimiento.

No hay consuelo para los desterrados:
para ellos el bosque es la quimera
de un retorno imposible,
la lluvia de otros días,
la memoria de un árbol levantándose
entre el cielo y los hombres
ante la puerta de la casa,
el ruido de sus hojas disputándose el aire.

Basilio Sánchez

 

O buscador de sombra
reconhece numa árvore a majestade,
mas prefere-lhe em segredo a pobreza.

O pesquisador de símbolos
encontra na casca das árvores
uma primitiva caligrafia,
os traços de uma forma desusada
de comunicação com a existência:
uma expressão remota, a mais rudimentar,
de agradecimento.

Não há consolação para os desterrados,
para eles o bosque é a quimera
de um impossível retorno,
a chuva de outros dias,
a memória de uma árvore erguendo-se
entre os homens e o céu
frente à porta de casa,
com o ruído das folhas a disputarem o ar.


(Trad. A.M.)

.

3.11.25

Francisco Rodriges Lobo (Se coubesse em meus versos)




Se coubesse em meus versos e em meu canto
a tristeza sem fim que o peito encerra,
moveria aos penedos desta serra
a nova piedade e novo espanto.

Se puderam meus olhos chorar tanto
quanto se deve à causa que os desterra,
cobriram já em lágrimas a terra,
escurecendo o seu tão verde manto.

Mas o que tem amor dentro encerrado
na alma, que à língua e olhos se defende,
não pode ser com lágrimas contado:

Ah! quem sabe sentir quanto compreende
que o mal que está oculto em meu cuidado
não se vê, não se mostra, não se entende.


Francisco Rodrigues Lobo

[Um reino maravilhoso]

 .

1.11.25

Victor Herrero de Miguel (Filologia)




FILOLOGIA

 

Compreende-lo agora. Tanto estudo,
tanta morfologia e a sintaxe
do latim e do grego,
as tardes com Eurípedes,
tanto afã dedicado a entrever
que lógica governa os acasos
que dão impulso às línguas,
tanta filologia
era de todo necessária
para estar em silêncio frente ao mundo.


Victor Herrero de Miguel

(Trad. A.M.)

 .


 

31.10.25

Karmelo C. Iribarren (Não é o meu este tempo)




NÃO É O MEU ESTE TEMPO

 

Estas ruas que corro todos os dias
não são já faz tempo
as minhas ruas. 

Passo as pontes, entro nas livrarias,
sento-me nos bancos das praças,
miro a chuva hipnotizado no bar,
faço enfim o que sempre fiz,
mas não são as minhas ruas. 

Faz tempo resolvi pôr-me à margem
de um corrupio de gente e de ideias
que não me dizem nada,
em que não me reconheço. 

Com tal companhia, melhor sozinho.
 

Karmelo C. Iribarren 

(Trad. A.M.)

 .

29.10.25

José Tolentino Mendonça (Isto é o meu corpo)




ISTO É O MEU CORPO



O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve

O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?

Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar


José Tolentino Mendonça

[Um reino maravilhosos]

 .

27.10.25

Alfonso Brezmes (Autobiografia alheia)




AUTOBIOGRAFIA ALHEIA

 

Imperdoável lapso,
ter a vida toda para trás
e não saber onde a puseste.

Estranho paradoxo,
ter a vida toda pela frente
e passá-la a sonhar como viver.


Alfonso Brezmes

(Trad. A.M.)

 .

26.10.25

Basilio Sánchez (Amo o que se faz)

 



Amo lo que se hace lentamente,
lo que exige atención,
lo que demanda esfuerzo.

Amo la austeridad de los que escriben
como el que excava un pozo
o repara el esmalte de una taza.

Mi habla es un murmullo,
una simple presencia que en la noche,
en las proximidades del vacío,
se impone por sí sola contra el miedo,
contra la soledad que nos revela
lo pequeños que somos.

El poeta no ha elegido el futuro.
El poeta ha elegido descalzarse en el umbral del desierto.


Basilio Sánchez

 

Amo o que se faz lentamente,
o que exige atenção,
o que requer esforço.

Amo a austeridade de quem escreve
como quem escava um poço
ou repara o esmalte de uma chávena.

Minha fala é um murmúrio,
uma simples presença na noite,
próximo do vazio,
que se impõe por si só contra o medo,
contra a solidão que nos mostra
como somos pequenos.

O poeta não escolheu o futuro,
o poeta escolheu descalçar-se à entrada do deserto.


(Trad. A.M.)


>>  Basilio Sanchez  (bio/livros/crítica/linques/vária) / Wikipedia

 .

24.10.25

Vitorino Nemésio (Disposições de última vontade)




DISPOSIÇÕES DE ÚLTIMA VONTADE 

 

Não me proíbam que seja o imaginário amoroso,
nem me venham prender
à sua própria cama
esta vaga mulher que se insinuou na minha alma
e acha o ninho gostoso.
Não me amesquinhem nem reduzam
só ao que sou por fora e é negado por dentro;
Mas também não me lastimem como quem diz de uma casa:
‘Que lindo jogo de varandas!
É pena
que tenha o forro roto e cheio de ratos.’
Deixem-me dormir,
dormir maciçamente e com todas as distensões
semelhantes, no cómodo, à posição dos extintos,
e sem tirar as polainas cor de café com leite
que usam os rapazes distintos.
Dormir! Estar pràqui quieto e atravessado
pelos fogos que perderam a direção dos chamuscos,
pelos rastos dos cometas que deixaram o lume no céu
e o atilho no mar — papagaios enormes!
O meu cinzeiro de fumador cá está crescendo;
Cá estou fazendo os versos que hão de dar ‘honra às letras’.
Que mais querem?
Não é este o célebre Dever e a obrigação de cada um?
Cumprida a qual — desistam
de me pedir a volta ao costumado equilíbrio,
à pacatez forçosa.
Sofro com olhos naturais
e sem sombra de arranjo
o que uma força remota tem necessidade de que eu sofra
e embebe em mim até aos copos da lúcida espada do Anjo.
E, se tenho chagas curáveis,
cá sei por que é saboroso ir sugando o seu podre!
Peço além disso que a terra
onde nasci  seja ainda e sempre conservada
a uma boa distância de mim:
Para que quem lá mora tenha o tempo por si para esquecer-me —
ou então para se lembrar cada vez mais de mim
enquanto me torno impossível:
Mas lembrar com uma lembrança aguda e intolerável,
que pese como o mar e seja salgada e repetida
como cada onda que bate
no rochedo — até lá por outras ondas seguida:
Onda que não me salva,
porque estou longe e será para todo o sempre perdida.
E assim ficarei quieto,
além de ficar restituído
ao original silêncio;
E, enfim, me irei perdendo...
Porque era realmente disparate,
como quem acha um cigarro ainda com lume, ter achado
certo fogo que não pode de modo algum ficar ardendo.
Abram as janelas para sair o resto do fumo
e fechem a porta. Não deixem entrar ninguém
e, muito menos, poetas.
Agora sinto-me bem;
Os mortos, na verdade, são umas pessoas completas.
 

Vitorino Nemésio

.

22.10.25

Virgilio Piñera (Na porta do vizinho)




En la puerta de mi vecino
un papelito me dejó helado.
“No me molesten. Estoy llorando.
Y consolarme ya nadie puede."

Ahora yo sueño con mi vecino.
Y mientras sueño, abro la puerta.
Adentro veo mi propia cara,
mi propia cara bañada en lágrimas.


Virgilio Piñera

[Una broma colosal]

 

 

Na porta do vizinho
um papel deixou-me gelado:
‘Não me incomodem, estou a chorar.
E consolar-me ninguém pode’.

Agora, eu sonho com o vizinho.
E, no sonho, abro a porta,
vejo dentro a minha própria cara,
a minha cara banhada em lágrimas.


(Trad. A.M.)

.

21.10.25

Francisco García Marquina (Testamento ológrafo)




TESTAMENTO OLÓGRAFO 

 

Llegados a este punto comienzo a desbarrar
y a insultarte con gracia, a hacerte algunas
proposiciones indecentes.
Este poema es una saludable
invitación al mal
que sólo entenderás si tú me amas
con toda crueldad y sin respiro
y al margen de la ley.
A lo peor de ti se dirigen mis versos:
a tu ternura airada y a tus lágrimas
que matan a distancia, a tu mentira
hecha de oro mojado,
a tu hacienda perdida de antemano
y a esta muerte gloriosa y compartida
que quiero negociar.
Nos queda por delante algo de vida
caducable y dudosa, pero luego
sin duda gozaremos
de una extensa y perdurable muerte.
Al hacer nuestros planes de futuro
hay que contar con esa
terrible dimensión de despropósito.
Yo amo la vida que cargo a mis espaldas
pero, si miro al frente,
debo reconocer que el futuro está en esa
solidez de desastre.
Tuvimos ciertas buenas experiencias
ensayando tan negro porvenir
en esas muertes dulces
con las que agonizaron nuestros cuerpos
en esos urgentísimos delitos
de los que fuimos cómplices,
y en esos golpes cálidos de mano
con que la carne toca el más allá.
El crimen fue perfecto
llenándonos de dicha la sentencia.
En consecuencia, ahora
y muy serenamente, he decidido
participar en esta ceremonia
capital, de la muerte.
Voy a darle la cara
para que no se fragüe a mis espaldas.
Yo he cometido errores y también cobardías
que empañan el pasado
pero, mirando al frente, me propongo
que el morir sea un acierto.
Y si mi vida fue involuntaria y necia,
saber morir adrede
podría ser la enmienda de aquel caos.
A quien amo le digo:
el regalo exquisito que te ofrezco,
con la honradez que da el amor penúltimo,
es la muerte entre dos.
Vamos del brazo al cabo de la vida,
lo que hayamos de hacer
lo haremos juntos.

FRANCISCO GARCÍA MARQUINA
Cartas a Deshora
(2010)


Aqui chegados eu começo a desvairar
e a insultar-te por graça, a fazer-te algumas
propostas indecentes.
Este poema é um são convite para o mal
que tu só vais entender se me amares
do modo mais cruel, sem respirar
e à margem da lei.
Ao pior de ti meus versos vão dirigidos,
à tua ternura airada e tuas lágrimas
que matam à distância, à tua mentira
feita de ouro molhado,
á fazenda perdida de antemão
e a esta morte gloriosa e partilhada
que eu pretendo negociar.
Para diante nos fica alguma vida
duvidosa e caducável, mas depois gozaremos
extensa e perdurável morte.
Ao fazermos nossos planos de futuro
temos de contar com essa
terrível dimensão de despropósito.
Eu amo a vida que carrego nas minhas costas,
mas, se olhar para a frente,
tenho de reconhecer que o futuro
está nessa solidez de desastre.
Boas experiências tivemos nós
ensaiando tão negro futuro
nessas mortes doces
em que nossos corpos agonizaram,
nesses urgentíssimos delitos
em que ambos fomos cúmplices,
e nesses golpes de mão
com que a carne toca o além.
Crime perfeito,
a sentença nos ditou a ventura.
Assim, muito serenamente, tenho decidido
participar nesta cerimónia
capital da morte.
Vou dar-lhe a cara
para não se fazer nas minhas costas.
Cometi erros, sim, e também cobardias
que turvam o passado,
mas, olhando para a frente,
proponho que a morte seja um acerto final.
E se minha vida foi néscia e casual,
saber morrer adrede
poderia ser a emenda desse caos.
A quem amo eu digo:
o presente fino que te ofereço,
com a honradez do amor quase derradeiro,
é a morte entre os dois.
Vamos de braço dado até ao fim,
o que tivermos de fazer
faremos juntos.
 

(Trad. A.M.)

.

19.10.25

Ruy Belo (Os bravos generais)




OS BRAVOS GENERAIS 

 

Os bravos generais caem do escadote
citam teilhard frequentam o templo
São eles e não as damas quem nos salões dá o mote
Os filhos podiam invocá-los como exemplo
seu peito fero é todo uma medalha
e ganham sempre só perdem a batalha
do escadote quando o inimigo grita: toma
chegou a tua vez de receberes um hematoma
Seja a subir seja a descer - desde que não seja escada -
os generais avançam pois não temem nada
Mas -- sobressaltam-se eles -- o que é que o meu olhar avista?
Um simples escadote o grande terrorista
 

Ruy Belo 

[Voar fora da asa]

 .

17.10.25

Vicente Muñoz Álvarez (Vento e cinza)




VIENTO Y CENIZA

 

qué difícil
para los que seguimos decir adiós
a los que se van

vuela alto
que la tierra
te sea leve
descansa en paz

solo palabras
y lágrimas

viento y ceniza

qué corto el viaje
qué breve la vida
qué efímero todo

qué triste

Vicente Muñoz Álvarez

[Mi vida en la penumbra]

 

 

Que difícil
para nós que continuamos dizer adeus
aos que se vão

Voa alto
que a terra
te seja leve
descansa em paz

Tudo palavras
e lágrimas

Vento e cinza

Que curta a viagem
que breve a vida
que efémero tudo

Que triste


(Trad. A.M.)

.

16.10.25

Victor Herrero de Miguel (Casta)





CASTA

 

Um homem desnuda-se diante dum rio.
Sabe que o importante nos é dado
sempre com leveza
                            e que a graça
foge daquilo que pesa.
Acerca-se lentamente, como a um templo.
Passa a soleira do ar.
Desfruta contemplando
a forma das pedras.
Mergulha com os peixes.
Leva tempo, atrás do adjectivo
que diga aquilo que sente
ao abraçar a água.
E achou-o por fim:
                              casta.


Victor Herrero de Miguel

(Trad. A.M.)

 

 >>  La linea amarilla (perfil)

 .

14.10.25

Vinicius de Moraes (Ausência)




AUSÊNCIA



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
e eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
e eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
e todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


Vinicius de Moraes

[Vinicius de Moraes]

 .

12.10.25

Jenaro Talens (Paisagens-2)





 PAISAGENS-2


A florista passa à frente do café. Leva uma menina
pela mão. Vai muito depressa. Ao fundo da rua
um carro aguarda no meio da neve.
O homem mal baixa o vidro.
Posso ver-lhe, no entanto, o casaco de couro,
o chapéu texano e o sorriso. São
rosas ou crisântemos? Várias pétalas caem
sobre a poeira do chão. Envolto num jornal
o ramo está agora nos braços da menina.
O capucho do seu anoraque como uma imagem rasgada.
As flores são de plástico no café.
Olho para esta imitação de jardim,
o contorno apagado das túlipas, assépticas,
lembrando o fastio das empregadas
a servir as bebidas. Tomo o meu brunch.
É domingo. No canto ao lado
dois jovens beijam-se e falam das montanhas do Perú.

 
Jenaro Talens

(Trad. A.M.)

.




11.10.25

Raquel Lanseros (O homem que espera)

 



O HOMEM QUE ESPERA

 

A colherita triste remexe
uma vez mais a borra do café.
Dez dedos bailam no tampo da mesa do bar
um tango à média luz com o esquecimento.
               Está sozinho, cansado,
               sentado no meio de gente alheia
              que olha para ele sem o ver.
Um anel de ouro gasto pelos anos
é o único traço de brilho que lhe resta.

A paixão rebentou-lhe nas mãos uma vez.
E perdeu a esperança nos abismos
                              de um coração humano.

Não há desventura que lhe fosse alheia,
nem humilhação que lhe seja desconhecida.
É por isso que sabe falar de amor.
Por isso espera.

 

Raquel Lanseros

(Trad. A.M.)

.

9.10.25

Dinis Moura (Eu queria um poema)




eu queria um poema que pagasse as minhas facturas 
m poema que reduzisse o meu ácido úrico 
um poema que fosse passear o meu cão 
um poema que me ajudasse 
a tirar bem as nódoas do vinho tinto
eu queria um poema que acalmasse os meus vizinhos 
um poema que me tirasse de vez o vício do tabaco
um poema que me explicasse deus e as mulheres 
eu queria um poema que me afugentasse as insónias
um poema que calasse a boca àquele fascista que todos
   os dias palra no telejornal 
um poema que fosse dietético analgésico e hidratante
um poema com a magia
e a garra do futebol  

eu queria um poema curto
exacto fiável funcional 
e com garantia 

mas quando eu abro as antologias
infelizmente ou inexplicavelmente 
eu só me deparo com poemas  

nos dias em que me acho
menos paciente e mais birrento 
eu pergunto-me sempre:
para que porra servem afinal os poetas?
 

Dinis Moura

 .

7.10.25

Valeria Pariso (Podia dizer-se que chove)




Podría decirse: llueve
hay cientos
de inesperadas
gotas
cayéndose del mundo.

 
Valeria Pariso

 

Podia dizer-se que chove
há centenas
de gotas
inesperadas
a caírem do mundo.


(Trad. A.M.)

.


6.10.25

Santiago Sylvester (O poema não escrito)




EL POEMA NO ESCRITO


Una declaración honesta en la pared de una calle: 
“No sé por dónde empezar”.

En ese mensaje
hay un apremio que nos ha llegado, un desconcierto, 
y no estaría bien invadirlo por ostentación, 
por irresponsabilidad. 

Ahí se oculta un poema, 
y un poema que se oculta en la pared de una calle 
merece estar donde está: donde arranca una moto, pasa una  chica y 
los loros cruzan llenos de noticias.
Que nadie caiga en la vanidad de escribirlo.

Santiago Sylvester

[Marcelo Leites]

 

 

Uma declaração honesta numa parede na rua:
‘Não sei por onde começar’.

Nessa mensagem
há uma urgência que nos toca, um desconcerto,
e não ficaria bem invadi-la por ostentação,
por irresponsabilidade.

Ali oculta-se um poema,
e um poema que se oculta na parede de uma rua
merece estar onde está: onde arranca uma moto,
passa uma miúda e os carros se cruzam apressados.
Que ninguém caia na vaidade de o escrever.


(Trad. A.M.)

.

4.10.25

Ferreira Gullar (Gato pensa?)




 

GATO PENSA? 

 

Dizem que gato não pensa
mas é difícil de crer.
Já que ele também não fala
como é que se vai saber?
A verdade é que o Gatinho
quando mija na almofada
vai depressa se esconder:
sabe que fez coisa errada.
E se a comida está quente,
ele, antes de comer,
muito calculadamente
toca com a pata pra ver.
Só quando a temperatura
da comida está normal
vem ele e come afinal.
E você pode explicar
como é que ele sabia
que ela ia esfriar?
 

Ferreira Gullar

 .

2.10.25

Francisco Caro (Como a praia)



COMO LA PLAYA

 

Como la playa ociosa
a final de septiembre, allí
donde la luz asume que su vigor caduca
ajeno a la existencia de los otros,
así contempla el hombre
mansa y leve su mano, la herramienta
con la que atesorara
el esplendor azul de cada instante.
 

Francisco Caro

 

Como a praia ociosa
nos fins de Setembro, lá
onde a luz assume que seu vigor falece
alheio à existência dos outros,
assim contempla o homem
mansa e leve sua mão, o instrumento
com que guardara
o esplendor azul de cada instante.
 

(Trad. A.M.)

 .

1.10.25

Francisco García Marquina (Autorretrato)



AUTORRETRATO 

 

Porque la muerte no puede tener razón
Francisco, fiel amante de la tierra,
espectador de todo, seductor a traición,
contradictorio y lleno de humor de Dios,
nació sobre las ruinas de un jovenzuelo
lírico y barroco, viajero gravemente
enamorado, hijo –sin duda póstumo–
de un tierno niño juicioso, muerto
por sobredosis de cordura.
 

Francisco García Marquina



Porque a morte não pode ter razão
Francisco, amante fiel da terra,
de tudo espectador, sedutor à traição,
contraditório e cheio de humor de Deus,
nasceu sobre as ruínas de um mocinho
lírico e barroco, viajante gravemente
apaixonado, filho – póstumo, sem dúvida –
de um terno menino sensato, morto
por sobredose de prudência.


(Trad. A.M.)



.

29.9.25

Aurea mediocritas (CA-10)




AUREA MEDIOCRITAS
 

 

Bendita idade
em que a primeira tarefa do dia
é dormir uma sesta



(A.M.)

.

27.9.25

Rodolfo Serrano (Anos de glória)




AÑOS DE GLORIA

 

Puedes llevarte, amor,  el año que termina,
y los días del odio, los calendarios rotos,
los horarios de trenes y los mapas perdidos
las tardes de domingo y el frío de diciembre.

Las veces que he dejado tu recuerdo en las barras
perdidas de los bares, y el corazón salvaje
de tus noches, los besos y la risa del viento.
Y esa dulce manera de convocar la dicha.

Puedes llevarte todo. Porque ya nada tengo.
Aposté a tus caderas y dejé entre tus brazos
los ríos de la tierra y la palabra nunca,
la carne de tu alma y el aliento del mundo.

Esta tierra y la piel de los amores ciegos,
el vientre en el que todo revive y multiplica,
la redondez prohibida donde acaban tus pasos,
el mar, el mar, las aguas que brotan de tu boca.

Llévate cuanto quieras. Ya nada necesito.
Tengo el sabor maldito de tu sangre en los labios.
Y bebí del olvido sin poder olvidarte.
De todos mis pecados el peor es tu nombre.

Sin ti, sin ti la vida es el espejo oscuro
donde está la madrastra y yo no soy el príncipe
que pueda con un beso devolverte a la vida.
Pero puedo morir agarrado a tus brazos.

Búscame por caminos y calles solitarias.
Búscame en la nostalgia, búscame en el recuerdo,
por las noches sin ti, por la palabra amada:
"jamás  me olvidarás, aunque ya no te quiera".

Búscame por las sombras, porque ahora que vives
en el abrazo de otro, te doy esta locura
de acariciar la vida que vivió entre la carne,
cuando fuimos eternos en los años de gloria.

Rodolfo Serrano 

 

Podes levar, amor, o ano que termina,
e os dias de ódio, os calendários rasgados,
os horários de comboios e os mapas perdidos,
as tardes de domingo e o frio de Dezembro.

As vezes que deixei a tua lembrança nos balcões 
perdidos dos bares, e o coração selvagem 
de tuas noites, os beijos e o riso do vento.
E esse modo doce de convocar a ventura.

Podes levar tudo, porque eu nada tenho já,
apostei nas tuas ancas e deixei-te nos braços 
os rios da terra e a palavra nunca,
a carne da tua alma e o alento do mundo.

Esta terra e a pele de cegos amores,
o ventre em que tudo revive e se multiplica,
o redondo proibido onde acabam teus passos,
o mar, o mar, as águas que te brotam da boca.

Leva quanto quiseres, eu nada necessito,
tenho o sabor maldito de teu sangue nos lábios.
E bebi do olvido sem poder olvidar-te,
de todos meus pecados o pior é teu nome.

Sem ti, sem ti a vida é o espelho baço
onde mora a madrasta e eu não sou o príncipe
que possa com um beijo devolver-te à vida.
Mas posso morrer apertado em teus braços.

Busca-me por caminhos e ruas solitárias,
busca-me na nostalgia, na lembrança,
pelas noites sem ti, pela palavra amada
‘jamais me esquecerás, mesmo que eu não te ame mais’.

Busca-me pelas sombras, porque agora que vives
no abraço de outro, dou-te esta loucura
de afagar a vida que viveu entre a carne,
quando fomos eternos nos anos de glória.


(Trad. A.M.)

 .

26.9.25

Pedro Andreu (Advertências)




ADVERTENCIAS 

 

No vengas otra vez con tus historias
tan siglo diecinueve de tristezas.
No jures y perjures que perdiste
tu zapato en mi casa, Cenicienta,
pues bien sabes que perdiste otras cosas:
la cabeza tal vez, algo de pasta, un par de bragas
que voy probando a todas
las que prueban mi cama
sin dar con la que vuela.
Que ni yo soy azul ni tú princesa,
así que apaga y vámonos, y vuelve
a ser mi perra callejera, mi musa en celo,
mi luna de dormir la borrachera,
mi billete de avión a la locura,
mi Blancanieves puta y harapienta,
mi vino y la ressaca, el frío y mis palabras.
Y déjate de cuentos y dame mucho sexo
y poco poquito poco
abominable falso esclavo imbécil
desvergonzado amor.
 

Pedro Andreu

 

Não venhas outra vez com as tuas histórias
tão séc. XIX de tristezas.
Não jures e perjures que perdeste
o sapato em minha casa, Cinzenta,
pois sabes bem que outras coisas perdeste,
a cabeça se calhar, algum dinheiro, um par de calcinhas
que eu vou experimentando em todas
que me entram na cama
sem dar com a tal que voa.
Que nem eu sou azul nem tu princesa,
daí que desliga e vamos, volta
a ser a minha cachorra vadia, minha musa de cio,
minha lua de dormir a bebedeira,
meu bilhete para a loucura,
minha Branca de Neve puta e farrapenta,
meu vinho e ressaca, meu frio e palavras.
E deixa-te de histórias, dá-me muito sexo
e pouco pouquinho pouco
abominável falso escravo imbecil
desavergonhado amor.


(Trad. A.M.)

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24.9.25

Louise Glück (Labor Day)

 





LABOR DAY (*)

 

It’s a year exactly since my father died.
Last year was hot. At the funeral, people talked about the weather.
How hot it was for September. How unseasonable.

This year, it’s cold.
There’s just us now, the immediate family.
In the flower beds,
shreds of bronze, of copper.

Out front, my sister’s daugther rides her bicycle
the way she did last year,
up and down the sidewalk. What she wants is
to make time pass.

While to the rest of us
a whole lifetime is nothing.
One day, you’re a blond boy with a tooth missing;
the next, an old man gasping for air.
It comes to nothing, really, hardly
a moment on earth.
Not a sentence, but a breath, a caesura.

 

Louise Glück

[Hector Castilla]

 

 

Faz precisamente um ano morreu meu pai.
Foi quente esse ano, as pessoas falavam do tempo, no funeral,
como era calor para Setembro, como estava fora da estação.

Este ano está frio,
e estamos só nós agora, a família mais chegada.
Nos canteiros de flores,
tiras de bronze, de cobre.

Em frente, anda de bicicleta a filha da minha irmã,
como fez no ano passado,
acima e abaixo no passeio, a matar o tempo.

Enquanto, cá para nós,
uma vida inteira não é nada.
Num dia, és um menino ruço com falha de um dente,
no dia seguinte um velho com falta de ar, a arfar.
Tanto como nada, realmente, um instante
na terra quando muito.
Não uma frase, um sopro apenas, uma cicatriz.


(Trad. A.M.)

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(*) Feriado nacional (USA), primeira segunda-feira de Setembro

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