8.12.25

Alessandro Celani (Por muito que batalhes)




Por muito que batalhes
o ir e o voltar
o juntar e o separar
o estar com e o estar sem
o recordar e o esquecer
hão-de fazer-se de pedra
e as pedras edifício
e quão difícil te será deixar
a vida que pensas que não viveste
(tu estrangeiro nela
e ela não 
em ti)

Alessandro Celani

(Trad. A.M.)

.

6.12.25

Ángel Manuel Gómez Espada (The other side)

 


 

THE OTHER SIDE IS THE SAME SHIT

 

Entonces, dígame.
Estamos de acuerdo en eso, al menos.
Todo lo que usted me reprocha es a lo que aspira.
Forma mi patrimonio parte de sus sueños.
Repítame de nuevo, pues, si es usted tan amable,

En qué nos diferenciamos. 

Eso mismo me había parecido a mí.

Ángel Manuel Gómez Espada 

 

 

Então, diga-me.
Estamos de acordo pelo menos nisso,
o que você me censura é o que ambiciona.
O meu património faz parte dos seus sonhos.
Repita-me lá novamente, portanto, se faz favor,
em que é que nos diferenciamos.

Ah, bem me queria parecer a mim.


(Trad. A.M.)

.

5.12.25

Ángel Guinda (Ser jovem)



SER JOVEM
 

Ser joven
era abrazar la noche en llamas
hasta el amanecer,
tomar las curvas rectas
como quien tiene prisa por llegar a sí mismo.
Ser joven
era atropellar la vida,
un ejercicio de funambulismo.
Estrellarse contra el azul del cielo,
contra el aire, contra la realidad.
A veces, ser joven
era un deseo temerario de envejecer,
como quien echa un pulso al tiempo
y sólo arriesga el instante de una detonación.
Ser joven fue,
y no volverá a serlo nunca más.

Ángel Guinda

[Trianarts]



Ser jovem
era abraçar a noite em chamas
até amanhecer,
tomar as curvas rectas
como quem tem pressa de chegar a si mesmo.
Ser jovem era atropelar a vida,
um exercício de funambulismo.
Estampar-se contra o azul do céu,
contra o vento, contra a realidade.
Às vezes, ser jovem
era um desejo temerário de envelhecer,
como quem toma o pulso ao tempo
e arrisca só o instante de uma detonação.
Ser jovem foi,
não voltará a ser nunca mais.

(Trad. A.M.)

 .

3.12.25

Alexandre Pinheiro Torres (Portugal dentro das cascas)



PORTUGAL DENTRO DAS CASCAS

 

Antes íamos às árvores da cerca além do claustro
tratar das asas que lhes sonhávamos ao corpo
Primeiro a nau   velas altas         uma casa de sobrado
Depois as santas imagens de pau de cerejeira

Era um Portugal imenso que nem cabia nas cascas
a entrar pelos robles e pinhos de Alcácer
Desenhava-se um mapa e era toda uma serra
O rio Tejo adormecia do voo dele e alheio

Foi impossível    um dia  escrever mais nos lenhos
Começavam a soletrar-se bancos ou mesas das tábuas
e às vezes janelas ornadas que depois se via
serem grades de ferro    postigos só de nuvens

A cerca fechou-se            Nem nela havia árvores
com que sonhar velhas coisas:  memórias só que eram
Ficaram as oitavas rimas e Camões nadando
Hoje       Portugal               seu traço             cabe numa acha


Alexandre Pinheiro Torres

.

1.12.25

Alfonso Brezmes (Beatus ille)




BEATUS ILLE 

 

Felices los que se saben felices,
pues los que lo son sin saberlo
son unos desgraciados.
Felices los mediocres,
porque pueden elegir dos caminos.
Felices los que no han leido a Borges,
a Yourcenar o a Cortázar,
ya que pueden hacerlo todavía.
Felices los poetas y los tontos,
porque al menos creen que son felices.
Felices los que tienen bastante,
porque su necesidad no crece
y su tesoro no mengua.
Felices los que buscan la felicidad
en donde no se esconde,
porque su mala vista les reserva
la felicidad de seguir buscando.
  

Alfonso Brezmes 

 

Felizes os que se sabem felizes,
pois os que o são sem saber
são apenas desgraçados.
Felizes os medíocres,
porque podem escolher dois caminhos.
Felizes aqueles que não leram Borges,
Yourcenar ou Cortázar,
já que podem ainda fazê-lo.
Felizes os poetas e os tontos,
porque ao menos crêem ser felizes.
Felizes os que têm o bastante,
pois que sua necessidade não cresce
e o tesouro não lhes mingua.
Felizes os que buscam a felicidade
onde ela não se encontra,
porque a falta de vista lhes reserva
a sorte de continuar buscando.

(Trad. A.M.)

.

30.11.25

Angel González (Está tudo explicado)




ESTÁ TUDO EXPLICADO

 

A esperança – dantes tão diligente –
há tempos que não nos visita.

Ultimamente distraía-se,
chegava sempre tarde, e chamava-nos
com nomes de parentes já falecidos.
Olhava para nós com olhos vidrados,
como esses espelhos que perdem o azougue.
Tocava-nos com mãos imperceptíveis,
mas de manhã estávamos cheios de arranhões.
Também nos dava moedas que depois não serviam.

Mas agora nem isso.
Não aparece já há tanto tempo,
que eu até cheguei a pensar:
                                            será que terá morrido?

Depois caí na conta
de que os mortos éramos nós.


Ángel González

(Trad. A.M.)

.

28.11.25

Alexandre O' Neill (Que vergonha, rapazes)




QUE VERGONHA, RAPAZES


Que vergonha, rapazes! Nós pràqui,
caídos na cerveja ou no uísque,
a enrolar a conversa no «diz que»
e a desnalgar a fêmea («Vist’? Viii!»)

Que miséria, meus filhos! Tão sem jeito
é esta videirunha à portuguesa,
que às vezes me soergo no meu leito
e vejo entrar quarta invasão francesa.

Desejo recalcado, com certeza…
Mas logo desço à rua, encontro o Roque
(«O Roque abre-lhe a porta, nunca toque!»)
e desabafo: – Ó Roque, com franqueza:

Você nunca quis ver outros países?
– Bem queria, Sr. O’Neill! E… as varizes?
 

Alexandre  O’Neill

 .

26.11.25

Pedro Flores (Cair)




CAER

 

Caer bien, con clase.
No desfallecer,
ni desmayarse,
ni derrumbarse,
ni trastabillar,
ni doblar la cerviz.
Caer como un roble en sus dominios
después de cien años mirando al Sol
frente a frente.
 

Pedro Flores

 


Cair bem, com classe.
Não desfalecer,
nem desmaiar,
nem desmoronar,
nem tropeçar,
nem dobrar a cerviz.
Cair como um carvalho em seu domínio
depois de cem anos a olhar o sol
cara a cara.


(Trad. A.M.)


>>  Hector Castilla (+66p) /  Octavo Boulevard (6p) / Zenda-1 (5p) / Zenda-2 (5p) / La Literatura (4p) / Trasdemar (3p) /  Wikipedia


25.11.25

Ángel Campos Pámpano (Entrar em casa)




Entrar en casa
como animal que acude
a su refugio.
Y buscar en la sombra
otra sombra que duerme.

Ángel Campos Pámpano 

 

Entrar em casa
como animal que volta
a seu refúgio,
e buscar na sombra
outra sombra que dorme.


(Trad. A.M.)

.

23.11.25

Álamo Oliveira (Lua de ganga)



LUA DE GANGA


quando te via
na ganga azul do teu fato
embandeirava-me de ternura
e propunha despir-te como
se lua fosses ou nada

tocava
com a ponta dos dedos
o poema do teu corpo

era azul mas eu morria de medo


Álamo Oliveira

[RTP- Açores]

 .

21.11.25

Amalia Bautista (A pesagem do coração)




EL PESAJE DEL CORAZÓN


Que nadie por tu culpa haya pasado hambre,
haya sentido miedo o frío.
Que nadie haya dejado de vivir por tu culpa,
ni temido la muerte, ni deseado morir.
Que ninguno haya dicho tu nombre con espanto
o mirado tu rostro con desprecio.
Que los demás te lloren cuando partas.
Así tu corazón no habrá albergado el plomo
que lastra las mudanzas.
Así tu corazón será más leve
que la más leve pluma.

Amalia Bautista 

 

Que ninguém passe fome por tua culpa,
nem sinta medo ou frio.
Que ninguém deixe de viver por tua causa,
nem tema a morte ou queira morrer.
Que ninguém diga teu nome com espanto
ou olhe com desprezo a tua cara.
Que os outros te chorem quando morras.
Assim teu coração não guardará
o chumbo que é o lastro das mudanças.
Assim teu coração será mais leve
que a mais ligeira pluma.


(Trad. A.M.)

.

20.11.25

Álvaro Cunqueiro (Meti meus dias)




Metí todos mis días en un hatillo remendado
y me eché a andar.
Yo mismo hacía los caminos que me llevaban
lejos, mas allá de los bosques,
por la orilla del mar, por el mar mismo.
Y en el hatillo, al lado de los días míos,
—infancia, juventud, madurez, vejez—
iba metiendo el pan de las limosnas.
Alguna vez el pan estaba aún caliente y al tocarlo
resucitaba un día mío en el que, muy joven,
vi a una mujer hermosa que cogía flores en el jardín.
En el sur me agasajaban con vasos de vino.
Pero ya es tiempo de volver. Me canso, y ya no sé soñar.
Como una colmena hendida por un rayo
ya no enjambran las abejas en verano
dentro de mí. Sueños no hay, ni inquietudes.
En la vieja casa haré lumbre y le contaré a las llamas
de qué modo muere un vagabundo.

Álvaro Cunqueiro

 


Meti meus dias numa trouxa remendada
e pus-me a andar.
Eu mesmo fazia os caminhos que me levavam
longe, além dos bosques,
pela beira do mar, pelo mar mesmo.
E na trouxa, ao pé dos dias
– infância, juventude, maturidade, velhice –
ia metendo o pão da esmola.
Às vezes o pão estava quente ainda e ao tocar-lhe
ressuscitava aquele dia em que, muito jovem,
vi uma mulher bela colhendo flores no jardim.
No sul recebiam-me com copos de vinho.
Mas é tempo já de voltar, canso-me e nem sei já sonhar.
Como uma colmeia fendida por um raio,
não fazem já enxame as abelhas no verão
dentro de mim. Sonhos não há, nem inquietação.
Acenderei lume na casa velha e contarei às chamas
de que modo morre um vagabundo.


(Trad. A.M.)

.

18.11.25

Alessandro Celani (Faz-te feroz, poesia)



Faz-te feroz, poesia
quando ferozes são os tempos
Aprende com os animais por esses campos
como matam e são mortos
Aprende com o tempo que vem em auxílio
de quem está morto já
Não vás nas cantigas dos poetas
diz a verdade sobre a morte
quem matou e quem foi morto
nome por nome
 

Alessandro Celani

(Trad. A.M.)

[Interno Poesia]

 

>>  Nazione Indiana (recensão/3p) /  Facebook (óbito) / Instagram

.

16.11.25

Antonio Orihuela (O mundo fantástico)




O MUNDO FANTÁSTICO DA SARDINHA PORTUGUESA


Dois milhões de pobres
e latas de sardinha a nove euros.

Chamemos-lhe liberalismo.


Antonio Orihuela

 (Trad. A.M.)

.

15.11.25

Ana Pérez Cañamares (Sei que são nove)




Sé que son las nueve por cómo
me pesan las piernas.
El día es largo, pero el tiempo es corto.

En un momento, para hacer tu salsa
segaste las plantas de hierbabuena.
Lo que la primavera parió despacio
desapareció de golpe una tarde de otoño.
Atardece. El cansancio se posa
sobre mis hombros como un buitre.

Sé que es la hora del telediario
porque me siento carroña.
 

Ana Pérez Cañamares 

 

Sei que são nove pela maneira
como me pesam as pernas.
O dia é longo, mas curto o tempo. 

Num instante, para fazer o teu molho,
cortaste as plantas de hortelã.
O que a primavera pariu devagar
desapareceu de súbito numa tarde de outono.
Entardece. O cansaço pousa
nos meus ombros como um abutre. 

Sei que é a hora do telejornal
porque me sinto derrancada.
 

(Trad. A.M.)

 .

13.11.25

A.M.Pires Cabral (A umas flores amarelas)




A UMAS FLORES AMARELAS


Encontro-as por acaso numa ilharga
sombria do caminho. São amarelas.
Reluzem como um sol que arda na noite. 

Estas flores tão densamente de ouro,
eriçadas de estames que parecem
a pelagem dum gato posto à prova,

a mim, que me comovo com igrejas singelas
de preferência a grandes catedrais, 

mostram um esplendor totalmente inesperado
neste chão de pedra que ninguém diria
poder florir assim. 

Ó flores cujo nome desconheço,
prolongai esse fulgor humilde em cada dia
de que ainda disponho para ver as flores, 

antes de as flores virem ter comigo.
 

A.M.Pires Cabral 

[Hospedaria Camões]

 .

11.11.25

Alfredo Buxán (Silêncio)




SILÊNCIO 

 

Não dizer nada já 
àquilo que te rodeia,
viver sem fazer ruído. 

Escutar apenas
o canto profundo 
das pedras,
                    o som
antigo do que estava
ali desde o princípio. 

Calar como elas calam.
 

ALFREDO BUXÁN
Las cosas quietas
La Garza Roja
(2025)

 

(Trad. A.M.)

 .

10.11.25

Amalia Bautista (A ponte)

 



EL PUENTE 

 

Si me dicen que estás al otro lado
de un puente, por extraño que parezca
que estés al otro lado y que me esperes,
yo cruzaré ese puente.
Dime cuál es el puente que separa
tu vida de la mía,
en qué hora negra, en qué ciudad lluviosa,
en qué mundo sin luz está ese puente
y yo lo cruzaré.           


Amalia Bautista

 

Se me disserem que estás no outro lado
duma ponte, por estranho que pareça
tu estares ali e me esperares,
eu passarei essa ponte.
Diz-me que ponte separa
a tua vida da minha,
em que hora negra, em que cidade chuvosa,
em que mundo sem luz está essa ponte
e eu a passarei. 


(Trad. A. M.)

 .

8.11.25

Álamo Oliveira (Graciosa ilha)




GRACIOSA ILHA

 

chego como as palavras de verão
que se deixam afogar no lago das sombras.
vejo a ilha na concha da mão
dormir sob o cobertor da serenidade.
sento-me ao lado do tempo como
moinho parado à espera que d. quixote
me assalte com a utopia a trote de rocinante.

aqui a vida é a rendeira que se diverte
a prender a morte na sua teia de linho
e caio na ignorância de uma laça perdida.
estou aqui sem ter jeito para ver
quem navega pela penumbra misteriosa do nevoeiro.

às vezes esqueço que não posso ver o mundo
sem arredar a cortina das araucárias.
arredo-a plissada de silêncios
e só uma garça rasga o céu
com a liberdade do seu voo.

ah se a ilha moesse esta solidão
e a desse aos ventos da memória
talvez soubesse o seu nome de forma graciosa
e a inscrevesse como um sonho
que se avista na linha do mar. apenas.

Álamo Oliveira

[Lusofonias]

 

>>  Lusofonias (monográfico) / Já não gosto de chocolates / Wikipedia

.

6.11.25

Aldo Luis Novelli (O oleiro-III)




EL ALFARERO-III 

(8)

venimos del barro elemental
con las manos vacías
y el alma iluminada. 

a poco de andar
rozando la piel del mundo
nos ponemos de pie
y reímos de alegría
al sabernos humanos. 

pero en la mitad del camino
dejamos de reír
llenamos las manos de baratijas
y el alma va perdiendo su luz
se vuelve opaca
como la tierra sucia que vuela
en las ciudades de cemento. 

al final del camino
nos despojamos
de las cargas de la espalda
vaciamos nuestras manos
nos arrodillamos en el barro
y oramos al dios sol
para que nos ilumine nuevamente el alma.
 

Aldo Luis Novelli

[Marcelo Leites] 

 

(8)

Nós vimos do barro elementar
com as mãos vazias
e a alma iluminada.
 

A pouco de andar
roçando a pele do mundo
pomo-nos de pé
e rimos de alegria
ao sabermo-nos humanos.

Mas a meio do caminho
deixamos de rir
enchemos as mãos de bugigangas
e a alma vai perdendo a luz
tornando-se opaca
como a poeira que voa
na cidade de cimento. 

No fim do caminho
tiramos o carrego das costas
esvaziamos as mãos
e ajoelhamos na lama
pedindo ao deus sol
que nos ilumine a alma de novo.
 

(Trad. A.M.)

 .

5.11.25

Basilio Sánchez (Árvores)




ÁRBOLES

 

El buscador de sombra
reconoce en un árbol su majestuosidad,
pero elige en secreto su pobreza.

El rastreador de símbolos
encuentra en la corteza arrancada de los árboles
una caligrafía primitiva,
las huellas de una forma en desuso
de comunicación con la existencia:
una expresión remota, la más rudimentaria,
del agradecimiento.

No hay consuelo para los desterrados:
para ellos el bosque es la quimera
de un retorno imposible,
la lluvia de otros días,
la memoria de un árbol levantándose
entre el cielo y los hombres
ante la puerta de la casa,
el ruido de sus hojas disputándose el aire.

Basilio Sánchez

 

O buscador de sombra
reconhece numa árvore a majestade,
mas prefere-lhe em segredo a pobreza.

O pesquisador de símbolos
encontra na casca das árvores
uma primitiva caligrafia,
os traços de uma forma desusada
de comunicação com a existência:
uma expressão remota, a mais rudimentar,
de agradecimento.

Não há consolação para os desterrados,
para eles o bosque é a quimera
de um impossível retorno,
a chuva de outros dias,
a memória de uma árvore erguendo-se
entre os homens e o céu
frente à porta de casa,
com o ruído das folhas a disputarem o ar.


(Trad. A.M.)

.

3.11.25

Francisco Rodriges Lobo (Se coubesse em meus versos)




Se coubesse em meus versos e em meu canto
a tristeza sem fim que o peito encerra,
moveria aos penedos desta serra
a nova piedade e novo espanto.

Se puderam meus olhos chorar tanto
quanto se deve à causa que os desterra,
cobriram já em lágrimas a terra,
escurecendo o seu tão verde manto.

Mas o que tem amor dentro encerrado
na alma, que à língua e olhos se defende,
não pode ser com lágrimas contado:

Ah! quem sabe sentir quanto compreende
que o mal que está oculto em meu cuidado
não se vê, não se mostra, não se entende.


Francisco Rodrigues Lobo

[Um reino maravilhoso]

 .

1.11.25

Victor Herrero de Miguel (Filologia)




FILOLOGIA

 

Compreende-lo agora. Tanto estudo,
tanta morfologia e a sintaxe
do latim e do grego,
as tardes com Eurípedes,
tanto afã dedicado a entrever
que lógica governa os acasos
que dão impulso às línguas,
tanta filologia
era de todo necessária
para estar em silêncio frente ao mundo.


Victor Herrero de Miguel

(Trad. A.M.)

 .


 

31.10.25

Karmelo C. Iribarren (Não é o meu este tempo)




NÃO É O MEU ESTE TEMPO

 

Estas ruas que corro todos os dias
não são já faz tempo
as minhas ruas. 

Passo as pontes, entro nas livrarias,
sento-me nos bancos das praças,
miro a chuva hipnotizado no bar,
faço enfim o que sempre fiz,
mas não são as minhas ruas. 

Faz tempo resolvi pôr-me à margem
de um corrupio de gente e de ideias
que não me dizem nada,
em que não me reconheço. 

Com tal companhia, melhor sozinho.
 

Karmelo C. Iribarren 

(Trad. A.M.)

 .

29.10.25

José Tolentino Mendonça (Isto é o meu corpo)




ISTO É O MEU CORPO



O corpo tem degraus, todos eles inclinados
milhares de lembranças do que lhe aconteceu
tem filiação, geometria
um desabamento que começa do avesso
e formas que ninguém ouve

O corpo nunca é o mesmo
ainda quando se repete:
de onde vem este braço que toca no outro,
de onde vêm estas pernas entrelaçadas
como alcanço este pé que coloco adiante?

Não aprendo com o corpo a levantar-me,
aprendo a cair e a perguntar


José Tolentino Mendonça

[Um reino maravilhosos]

 .

27.10.25

Alfonso Brezmes (Autobiografia alheia)




AUTOBIOGRAFIA ALHEIA

 

Imperdoável lapso,
ter a vida toda para trás
e não saber onde a puseste.

Estranho paradoxo,
ter a vida toda pela frente
e passá-la a sonhar como viver.


Alfonso Brezmes

(Trad. A.M.)

 .

26.10.25

Basilio Sánchez (Amo o que se faz)

 



Amo lo que se hace lentamente,
lo que exige atención,
lo que demanda esfuerzo.

Amo la austeridad de los que escriben
como el que excava un pozo
o repara el esmalte de una taza.

Mi habla es un murmullo,
una simple presencia que en la noche,
en las proximidades del vacío,
se impone por sí sola contra el miedo,
contra la soledad que nos revela
lo pequeños que somos.

El poeta no ha elegido el futuro.
El poeta ha elegido descalzarse en el umbral del desierto.


Basilio Sánchez

 

Amo o que se faz lentamente,
o que exige atenção,
o que requer esforço.

Amo a austeridade de quem escreve
como quem escava um poço
ou repara o esmalte de uma chávena.

Minha fala é um murmúrio,
uma simples presença na noite,
próximo do vazio,
que se impõe por si só contra o medo,
contra a solidão que nos mostra
como somos pequenos.

O poeta não escolheu o futuro,
o poeta escolheu descalçar-se à entrada do deserto.


(Trad. A.M.)


>>  Basilio Sanchez  (bio/livros/crítica/linques/vária) / Wikipedia

 .

24.10.25

Vitorino Nemésio (Disposições de última vontade)




DISPOSIÇÕES DE ÚLTIMA VONTADE 

 

Não me proíbam que seja o imaginário amoroso,
nem me venham prender
à sua própria cama
esta vaga mulher que se insinuou na minha alma
e acha o ninho gostoso.
Não me amesquinhem nem reduzam
só ao que sou por fora e é negado por dentro;
Mas também não me lastimem como quem diz de uma casa:
‘Que lindo jogo de varandas!
É pena
que tenha o forro roto e cheio de ratos.’
Deixem-me dormir,
dormir maciçamente e com todas as distensões
semelhantes, no cómodo, à posição dos extintos,
e sem tirar as polainas cor de café com leite
que usam os rapazes distintos.
Dormir! Estar pràqui quieto e atravessado
pelos fogos que perderam a direção dos chamuscos,
pelos rastos dos cometas que deixaram o lume no céu
e o atilho no mar — papagaios enormes!
O meu cinzeiro de fumador cá está crescendo;
Cá estou fazendo os versos que hão de dar ‘honra às letras’.
Que mais querem?
Não é este o célebre Dever e a obrigação de cada um?
Cumprida a qual — desistam
de me pedir a volta ao costumado equilíbrio,
à pacatez forçosa.
Sofro com olhos naturais
e sem sombra de arranjo
o que uma força remota tem necessidade de que eu sofra
e embebe em mim até aos copos da lúcida espada do Anjo.
E, se tenho chagas curáveis,
cá sei por que é saboroso ir sugando o seu podre!
Peço além disso que a terra
onde nasci  seja ainda e sempre conservada
a uma boa distância de mim:
Para que quem lá mora tenha o tempo por si para esquecer-me —
ou então para se lembrar cada vez mais de mim
enquanto me torno impossível:
Mas lembrar com uma lembrança aguda e intolerável,
que pese como o mar e seja salgada e repetida
como cada onda que bate
no rochedo — até lá por outras ondas seguida:
Onda que não me salva,
porque estou longe e será para todo o sempre perdida.
E assim ficarei quieto,
além de ficar restituído
ao original silêncio;
E, enfim, me irei perdendo...
Porque era realmente disparate,
como quem acha um cigarro ainda com lume, ter achado
certo fogo que não pode de modo algum ficar ardendo.
Abram as janelas para sair o resto do fumo
e fechem a porta. Não deixem entrar ninguém
e, muito menos, poetas.
Agora sinto-me bem;
Os mortos, na verdade, são umas pessoas completas.
 

Vitorino Nemésio

.

22.10.25

Virgilio Piñera (Na porta do vizinho)




En la puerta de mi vecino
un papelito me dejó helado.
“No me molesten. Estoy llorando.
Y consolarme ya nadie puede."

Ahora yo sueño con mi vecino.
Y mientras sueño, abro la puerta.
Adentro veo mi propia cara,
mi propia cara bañada en lágrimas.


Virgilio Piñera

[Una broma colosal]

 

 

Na porta do vizinho
um papel deixou-me gelado:
‘Não me incomodem, estou a chorar.
E consolar-me ninguém pode’.

Agora, eu sonho com o vizinho.
E, no sonho, abro a porta,
vejo dentro a minha própria cara,
a minha cara banhada em lágrimas.


(Trad. A.M.)

.

21.10.25

Francisco García Marquina (Testamento ológrafo)




TESTAMENTO OLÓGRAFO 

 

Llegados a este punto comienzo a desbarrar
y a insultarte con gracia, a hacerte algunas
proposiciones indecentes.
Este poema es una saludable
invitación al mal
que sólo entenderás si tú me amas
con toda crueldad y sin respiro
y al margen de la ley.
A lo peor de ti se dirigen mis versos:
a tu ternura airada y a tus lágrimas
que matan a distancia, a tu mentira
hecha de oro mojado,
a tu hacienda perdida de antemano
y a esta muerte gloriosa y compartida
que quiero negociar.
Nos queda por delante algo de vida
caducable y dudosa, pero luego
sin duda gozaremos
de una extensa y perdurable muerte.
Al hacer nuestros planes de futuro
hay que contar con esa
terrible dimensión de despropósito.
Yo amo la vida que cargo a mis espaldas
pero, si miro al frente,
debo reconocer que el futuro está en esa
solidez de desastre.
Tuvimos ciertas buenas experiencias
ensayando tan negro porvenir
en esas muertes dulces
con las que agonizaron nuestros cuerpos
en esos urgentísimos delitos
de los que fuimos cómplices,
y en esos golpes cálidos de mano
con que la carne toca el más allá.
El crimen fue perfecto
llenándonos de dicha la sentencia.
En consecuencia, ahora
y muy serenamente, he decidido
participar en esta ceremonia
capital, de la muerte.
Voy a darle la cara
para que no se fragüe a mis espaldas.
Yo he cometido errores y también cobardías
que empañan el pasado
pero, mirando al frente, me propongo
que el morir sea un acierto.
Y si mi vida fue involuntaria y necia,
saber morir adrede
podría ser la enmienda de aquel caos.
A quien amo le digo:
el regalo exquisito que te ofrezco,
con la honradez que da el amor penúltimo,
es la muerte entre dos.
Vamos del brazo al cabo de la vida,
lo que hayamos de hacer
lo haremos juntos.

FRANCISCO GARCÍA MARQUINA
Cartas a Deshora
(2010)


Aqui chegados eu começo a desvairar
e a insultar-te por graça, a fazer-te algumas
propostas indecentes.
Este poema é um são convite para o mal
que tu só vais entender se me amares
do modo mais cruel, sem respirar
e à margem da lei.
Ao pior de ti meus versos vão dirigidos,
à tua ternura airada e tuas lágrimas
que matam à distância, à tua mentira
feita de ouro molhado,
á fazenda perdida de antemão
e a esta morte gloriosa e partilhada
que eu pretendo negociar.
Para diante nos fica alguma vida
duvidosa e caducável, mas depois gozaremos
extensa e perdurável morte.
Ao fazermos nossos planos de futuro
temos de contar com essa
terrível dimensão de despropósito.
Eu amo a vida que carrego nas minhas costas,
mas, se olhar para a frente,
tenho de reconhecer que o futuro
está nessa solidez de desastre.
Boas experiências tivemos nós
ensaiando tão negro futuro
nessas mortes doces
em que nossos corpos agonizaram,
nesses urgentíssimos delitos
em que ambos fomos cúmplices,
e nesses golpes de mão
com que a carne toca o além.
Crime perfeito,
a sentença nos ditou a ventura.
Assim, muito serenamente, tenho decidido
participar nesta cerimónia
capital da morte.
Vou dar-lhe a cara
para não se fazer nas minhas costas.
Cometi erros, sim, e também cobardias
que turvam o passado,
mas, olhando para a frente,
proponho que a morte seja um acerto final.
E se minha vida foi néscia e casual,
saber morrer adrede
poderia ser a emenda desse caos.
A quem amo eu digo:
o presente fino que te ofereço,
com a honradez do amor quase derradeiro,
é a morte entre os dois.
Vamos de braço dado até ao fim,
o que tivermos de fazer
faremos juntos.
 

(Trad. A.M.)

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