30.9.24

Batania (Não humano)




NO HUMANO 

 

De muchos errores soy responsable,
pero nunca he tratado de ser un hombre. 

No tengo hijos.
No tengo propiedades.
No pertenezco a nada.
No he firmado contratos
que limitaran mi libertad
con la de nadie.

Siempre me he sentido extraño entre ellos.
Van a votar, yo no voto.
Van de vacaciones, yo me quedo.
Tienen amigos, yo no tengo.
Quieren a su madre, yo no la quiero.
Aman a su patria, yo no la amo. 

Por más que busque,
no hallo prueba
que me vincule con esa especie. 

Ni siquiera los conozco.
A golpe de “clic” veo documentales sobre ellos
y observo que son criaturas nacidas para rebaño.
Las hembras parecen un poco más limpias,
eso es todo. 

De algunos fracasos soy responsable, eso sí.
De algunas flaquezas y caídas.
De muchas erratas en mi escritura. 

Pero nunca he tratado de ser un hombre.
 

Batania



De muitos erros sou responsável,
mas nunca cuidei de ser um homem.

Não tenho filhos,
nem propriedades,
não pertenço a nada.
Não assinei contratos
que me limitassem a liberdade
com a de ninguém.

Sempre me senti estranho entre eles.
Vão votar, eu não voto,
vão de férias, eu fico,
têm amigos, e eu não,
querem a mãe, eu não quero,
amam a pátria, eu não amo-

Por mais que busque,
não acho nada
que me vincule com tal espécie.

Nem sequer os conheço.
Clico, às vezes, vejo documentários sobre eles,
e reparo que são criaturas de rebanho,
as fêmeas parecem um pouco mais limoas,
mais nada.

De alguns falhanços sou responsável,
de algumas quedas e fraquezas,
de muitas erratas na minha escrita.

Mas nunca cuidei de ser um homem.


(Trad. A.M.)

.

29.9.24

Antonio Porchia (Venho de morrer)




Vengo de morirme, no de haber
nacido. De haber nacido me voy.


Antonio Porchia



Venho de morrer, não de ter
nascido. De ter nascido me vou.


(Trad. A.M.)

.

27.9.24

Linda Pastan (Escarlate)




VERMILION

  

Pierre Bonnard would enter
the museum with a tube of paint
in his pocket and a sable brush.
Then violating the sanctity
of one of his own frames
he'd add a stroke of vermilion
to the skin of a flower.
Just so I stopped you
at the door this morning
and licking my index finger, removed
an invisible crumb
from your vermilion mouth. As if
at the ritual moment of departure
I had to show you still belonged to me.
As if revision were
the purest form of love.
 

Linda Pastan

 

Pierre Bonnard entrava
no museu com um tubo de tinta
no bolso e um pincel de marta.
Depois violando a integridade
de uma das suas molduras
dava uma pincelada de escarlate
na pele de uma flor.
Assim te parei eu
à porta esta manhã
e, passando o indicador pela língua, removi
uma migalha invisível
dos teus lábios escarlates. Como se
no ritual da despedida
tivesse de mostrar que ainda me pertencias.
Como se a correcção fosse

a forma de amor mais pura.

(Trad. fjcc)

.

25.9.24

Antonio Pereira (Quando descanso os olhos)




CUANDO DESCANSO LOS OJOS
 

Cuando descanso los ojos
 y voy flotando en el sueño,
lo que escucho todavía 
es el sonido del hierro. 

Todo sonaba en la tienda 
enemiga del silencio:
los clavos sobre el platillo 
de la balanza cayendo
y el choque de las caderas 
redondas de los pucheros. 

La chapa galvanizada 
en hornos altos de fuego 
vibraba, curvada y dulce 
materia de los calderos. 

Las guadañas se escogían 
arrancándoles el eco.
¡Todo un bosque de metales
 y yo perdido en su centro! 

Podré olvidar el color
de las cosas que me vieron 
crecer desde los estantes, 
pero su canción no puedo. 

Lo que sonaba en la tienda 
vuelve en la niebla del sueño, 
tan claro que me pregunto
si estoy soñando despierto.

Antonio Pereira 

 

Quando descanso os olhos
e vou boiando no sonho
o que sinto ainda
é o ruído do ferro. 

Tudo soava na tenda
inimiga do silêncio,
os cravos a cair
no prato da balança
e as panelas chocando
umas contra as outras.

A chapa galvanizada
em altos fornos de lume
vibrava, matéria-prima
suave dos caldeiros.

As gadanhas escolhiam-se
arrancando-lhes o eco.
Todo um bosque de metais
e eu perdido lá dentro! 

Poderei esquecer a cor
das coisas que me viram
crescer postas nas prateleiras
mas a música não posso. 

O que soava na tenda
volta agora na névoa do sonho,
tão claro que me interrogo
se não estou sonhando acordado.
 

(Trad. A.M.)

 .

24.9.24

Antonio Gamoneda (Amei as desaparições)




Amei as desaparições e agora o último rosto
saiu de mim. 

Atravessei as cortinas brancas: 

já há somente luz dentro de meus olhos. 

 

ANTONIO GAMONEDA
Livro do Frio
Assírio & Alvim 

(Trad. José Bento)

 .

22.9.24

Jorge Sousa Braga (O livro)




O LIVRO

 

Há um livro que nunca chegarás
a ler um livro que te escapou

da mão estava exposto na livraria
mas outra coisa chamou a tua

atenção ou alguém o arrumou
em segunda fila na estante…

Tu não o sabes – como o poderias
saber? – mas esse livro descreve

como e quando vais morrer

Jorge Sousa Braga

[Bibliotecario de Babel]

 .

20.9.24

Antonio Fernández Lera (Estranha primavera)




(21)

 

Estranha primavera.
Ficções de quietude no ar.
Ficção de corpos mortos.
Nem sombra nem luz.
Inexistência apenas.
Desejo de ser ar.
Ser
desejo de ser 
ar.
 

ANTONIO FERNÁNDEZ LERA
Poemas lentos 
(2012-18)

 

(Trad. A. M.)

. 


19.9.24

Antonio Deltoro (Quinta-feira)




JUEVES

 

El jueves amanece a la misma hora que todos los días y mucho más abierto.
Es tan generoso conmigo que me entra en la mano caluroso y preciso
como una pelota de esponja.
Discreto, como esas cosas que por fuera son nada,
a veces amanece nublado
como si el miércoles no lo anunciara con sus gritos agudos.
Es tan grave, sin duda, que sirve a la sorpresa
caminando tranquilo por las noches del viernes.
Se come a gajos como una mandarina
y por las tardes sabe como una manzana.
En todos los jueves está presente el jueves,
aun hoy que es martes está presente el jueves.
Se puede caminar los jueves como Cristo en las aguas del lago Tiberiades
e ir sin pisar jamás ni lunes ni domingo derechito hasta el jueves.
Sus mañanas están pobladas de aceras, de calles, de periódicos,
hay gente que las vive miércoles y hay gente que las vive viernes,
yo las vivo jueves como un viaje intensísimo y largo
o como un sueño que no quiere acabar.
Apenas son las doce y ya he conocido mujeres que me han llevado al entusiasmo,
la pelota ha golpeado la pared, me ha llenado de vejez un anciano.
Los jueves el tiempo se detiene, surgen la poesía y los amigos,
es un día de piernas fuertes y de mirada serena
en donde por las noches transcurren muchas vidas.
Abandono el volante y me voy a volar, es jueves en el tiempo del mundo,
es jueves en este acantilado sobre esta playa tenue,
es jueves hoy por la mañana, es jueves en los labios del jueves.
En el viaducto blancas paredes conducen al auto por  la noche,
todo tiempo es jueves entre un puente y otro hacia la casa.
El árbol de los jueves es ancho como el tiempo de los jueves,
los pájaros cubren sus elevadas ramas y surcan el espacio:
el cielo de los jueves es un archipiélago de islas alargadas.
Trepar a las primeras ramas de ese árbol es mirar de cerca la distancia,
montar en el asombro,
saber que si un jueves es un tigre, el otro puede ser volcán y parecerse.
De mañana, cuando el patio se abre suspendido en el juego,
cuando se entra por fin a la clase de historia,
cuando las tardes estimulan la fuga y se quedan atrás,
olvidados en el aula, los apuntes de química,
entre niños estudiosos y niñas aplicadas
se prepara a lo lejos el partido nocturno.
También los jueves la gente se suicida, pero no es la misma del lunes o del sábado,
los suicidas del jueves son suicidas serenos, irrevocables,
que se hunden en las aguas del jueves para siempre.

 Antonio Deltoro

 

 

A quinta-feira amanhece à mesma hora
dos outros dias, mas bem mais aberta.
Tão generosa comigo que me toma da mão, calorosa e precisa
como uma bola de esponja.
Discreta, como aquelas coisas que por fora parecem nada,
às vezes amanhece com nuvens
como se a quarta-feira a não anunciasse com seus gritos agudos.
É tão grave, claro, que serve a surpresa
caminhando serena pelas noites de sexta.
Come-se aos gomos como uma mandarina
e à meia tarde tem o sabor da maçã.
A quinta assiste em todas as quintas,
mesmo hoje que é terça a quinta está presente.
Podemos caminhar às quintas como Cristo
nas águas do lago de Tiberíades
ir por ali fora sem pisar domingo nem segunda,
direitinho até à quinta.
As suas manhãs são povoadas de calçadas, avenidas, periódicos,
há quem viva as quartas e há quem viva as sextas,
eu cá vivo as quintas como uma viagem longa, emocionante,
ou como um sonho que nunca mais se acaba.
Mal batem as doze e eu já conheci mulheres que me levaram ao céu,
a bola bateu na parede, e um velho encheu-me de velhice.
À quinta o tempo pára, surgem os amigos e a poesia,
é um dia de pernas tesas e olhar sereno
onde pela noite transcorrem muitas vidas.
Deixo o volante e ponho-me a voar, é quinta pelo tempo do mundo,
é quinta nesta falésia sobre a praia,
é quinta hoje pela manhã, é quinta nos lábios da quinta.
No viaduto brancas paredes guiam o carro pela noite,
todo o tempo é quinta entre uma ponte e  outra a caminho de casa.
A árvore das quintas é larga como o tempo das quintas,
os pássaros cobrem-lhe os ramos e sulcam o espaço:
o céu das quintas é um arquipélago de ilhas estiradas.
Trepar aos ramos desta árvore é olhar de perto a distância,
montar no assombro,
saber que se uma quinta é um tigre, a outra pode ser um vulcão e ser parecida.
De manhã, quando o pátio se abre suspenso da brincadeira,
quando entramos por fim na aula de história,
quando as tardes incitam à fuga e ficam para trás,
esquecendo na sala os apontamentos de  química,
entre meninos estudiosos e ninas aplicadas
prepara-se ao longe o desafio nocturno.
Também à quinta se suicidam pessoas,
mas não são as mesmas da segunda ou de sábado,
os suicidas de quinta são suicidas serenos, irrevogáveis,
que se afundam para sempre nas águas do dia, de quinta.

(Trad. A.M.)

 .

17.9.24

Amadeu Baptista (O cão)




O CÃO 

 

Adormecido, enroscado em frente ao fogo,
Noto como o cão estremece
De instante a instante. Provavelmente
Sonha, a reconhecer no imutável 

Uma paridade subconsciente com o mundo
Ou o discurso que só ele entende
No seu sono pacífico. De vez em quando,
Solta um ténue ganido, suspira fundo 

E volta ao ciclo de estremeções
Que iniciou assim que adormeceu.
Sonha a sono solto e, não tarda, 

Creio que se vai transformar em lírio,
De repente. E assim me lembro de ti,
Uma dália a vibrar em frente ao lume.
 

Amadeu Baptista

 .

15.9.24

Antonio Colinas (Oração nos campos negros)




PLEGARIA EN LOS PÁRAMOS NEGROS 

 

Gracias por la muerte de estos montes
y por la de estos pueblos, en los que sólo las piedras
se mantienen con vida;
gracias por estos negros páramos del invierno
en los que la tierra asciende a los cielos
y las nubes descienden hasta tocar la tierra;
gracias por esta hora de todos los vacíos
en la que se intuye un final.
De tanta pureza y soledad, de tanta muerte
sólo puede brotar una vida más cierta.
Gracias por la noche, que a punto está de llegar
con la bondad de sus nieves,
y por ese perro vagabundo
que prueba a calentar con su hocico
el estanque helado
para extraer un poco de água;
gracias porque no nos hemos cruzado
con ningún ser humano
para pulsar el dolor,
y por la pana remendada de parcelas y prados,
que conservan como un tesoro
las heridas de los disparos,
los tizones de los últimos incendios;
gracias por los frutales grises de los mínimos huertos
y por las colmenas adormecidas,
y por la casa cerrada desde hace muchos años
de la que no se conoce su dueño.
Y, sin embargo, en este anochecer,
yo quisiera ofrecer lo mejor de mi vida
a toda esta muerte;
yo quisiera cambiar todo el gozo y el oro
que hubo en mi vida
por la contemplación (desde estos páramos negros)
de las montañas últimas.
Porque aquí empezó todo para mí,
porque cuanto he sido, y soy, y digo,
nada sería sin las raíces de las luces frías,
sin esos senderos impenetrables
que sólo han recibido la visita
de los rayos amargos.
Por eso, quiero ser esa lastra ferrosa
bajo la que duerme la víbora,
o la yerba tan fuerte, o su escarcha,
que el sol no logró deshacer a lo largo del día.
Quisiera arrodillarme como tapia abatida,
como pinar abrasado.
No deseo ni puedo volver hacia atrás la mirada,
desandar el camino (¡tan largo!) recorrido,
pues ya sé que, vacío,
en la hora en que todo ya parece morir
a punto está todo de nacer.
La mirada vuela sobre la fosa del valle
(sobre la fosa de la vida),
hacia la gran mole coronada de silencio,
hacia la cima que alberga los misterios.
Gracias por este anochecer
en el que me he quedado entre las manos
con las pobres, escasas semillas
de las que habrá de germinar luz perpetua.
En el anochecer de los páramos negros
estoy solo y profundamente en paz.
 

Antonio Colinas 

 

Graças pela morte destes montes
e destes povos, em que só as pedras
se mantêm com vida;
graças por estes negros campos do inverno
onde a terra sobe aos céus
e as nuvens descem até tocar a terra;
graças por esta hora de vazio
em que se adivinha um final.
De tanta pureza e solidão, de tanta morte
só pode brotar uma vida mais verdadeira.
Graças pela noite, quase a chegar
com a bondade da neve
e por esse cão vadio
que tenta com o focinho aquecer o tanque gelado
para tirar um pouco de água;
graças porque não nos cruzámos com nenhum ser humano
para tocar a dor,
e pelo pano remendado de prados e parcelas,
que conservam como tesouro
as feridas dos disparos,
os carvões dos últimos incêndios;
graças pelas fruteiras cinzentas dos quintais
e pelas colmeias adormecidas,
e pela casa fechada há muitos anos,
sem dono conhecido.
E, contudo, neste anoitecer,
eu gostaria de dar o melhor da minha vida
a toda esta morte;
trocar todo o ouro e gozo que teve a minha vida
pela contemplação dos montes, daqui dos campos negros.
Porque aqui começou tudo para mim,
porque tudo quanto fui, sou e digo,
nada seria sem as raízes das luzes frias,
sem estes carreiros impenetráveis
que receberam só a visita dos raios amargos.
Por isso quero ser esse lastro ferroso onde a víbora dorme,
ou a erva ou seu orvalho,
que o sol não desfaz ao longo do dia.
Queria-me deitar como um muro derrocado,
como um pinhal ardido.
Não quero nem posso volver o olhar para trás,
tão pouco apagar o caminho percorrido,
pois sei que, vazio,
quando tudo parece morrer,
está tudo antes à beira de nascer.
O olhar voa sobre a fossa do vale
(sobre a fossa da vida),
para a grande mole coroada de silêncio,
para o cume que guarda os mistérios.
Graças por este anoitecer,
em que fiquei nas mãos
com as pobres, escassas sementes
de que há-de germinar a luz perpétua.
No anoitecer dos campos negros,
aqui estou, sozinho e em paz.

 

(Trad. A.M.)

.

14.9.24

Ángel Manuel Gómez Espada (Poema republicano)




POEMA QUE SALE REPUBLICANO SIN QUERER

 

En un poema, una mariposa siempre hace bonito.
Una manada de nubes desbocadas o un lazo azul también.
Pero hay otras cosas que no.
Que definitivamente no,
no hacen ningún favor al poema.
Como estercolero, alcantarilla, o charco.
Incluso la palabra “rey” ya molesta.
(No digamos ya “reina”).
Los reyes antaño eran campechanos.
Hoy no tanto.

Sin embargo, si fuéramos capaces de tropezar
con una mariposa en un estercolero;
o tuviéramos que descender
a la oscuridad de las alcantarillas
para contemplar un racimo de nubes;
o encontráramos un lazo azul
embarrado en un charco de sangre,
así sí que destilaríamos algo de poesía.

Pero con un rey, nada de nada.
Con un rey no se me ocurre nada
esta tarde de primavera
para arreglar un poema.
Están de capa caída los reyes.
Afean todo lo que tocan.
Incluso los estercoleros.
Incluso las alcantarillas.

(Por supuesto, no seré yo quien proponga
colocar en un poema a un rey
dentro de un charco de sangre.
La educación que he recibido me lo impide.)

 

Ángel Manuel Gómez Espada

[Life vest under your seat]

 

 

Uma borboleta fica sempre bem, num poema,
uma manada de nuvens desbocadas também, ou um laço azul.
Mas há outras coisas que não,
definitivamente não,
não vão lá muito bem com o poema.
Como estrumeira, esgoto, ou charco.
Mesmo a palavra ‘rei’ já incomoda
(‘rainha’, então, nem se fala),
os reis antigamente eram simpáticos,
hoje nem por isso.

Porém, se fossemos capazes
de tropeçar numa estrumeira com uma borboleta;
ou tivéssemos de descer ao escuro dos esgotos
para contemplar um cacho de nuvens;
ou encontrássemos um laço azul
 enlameado num charco de sangue,
aí sim destilaríamos algo de poesia.

Mas com um rei, nada de nada,
com um rei não me ocorre nada
nesta tarde de primavera
para compor um poema.
Os reis estão de capa caída,
desfeiam tudo o que tocam,
mesmo as estrumeiras,
mesmo os esgotos.

(É claro, não serei eu a propor
que se meta um rei num poema
dentro de um charco de sangue.
A minha educação esmerada não permite.)


(Trad. A.M.)

 .

12.9.24

Nuno F. Silva (Felina)





FELINA

 

As patas felinas
encarregam-se de reorganizar 
a ordem dos objetos
e destruir o silêncio 
quando não sei o que fazer com ele.

As patas felinas
marcam território
sobre todas as memórias
que ficaram por revisitar.  

A madrugada avança.
Eu continuo a falar para dentro.


Nuno F. Silva

[Incomunidade]

.

10.9.24

Ángel Guinda (Elogio da imaturidade)




ELOGIO DA IMATURIDADE

 

Neste mundo escuro
não há-de faltar quem diga, com razão,
que tu és um imaturo.
(Madurar é questão
de estolidez, mais que de perfeição.)

Não caias, de maduro,
no chão duríssimo do mundo,
tão morto e tão seguro.
Voa alto e profundo!
Vive o eterno em cada segundo!

Nega-te a madurar,
a acomodar-te ao ritmo da idade.
Procura sempre pairar
sobre a realidade!
(Contra a força da gravidade)


Ángel Guinda

(Trad. A.M.)

.

9.9.24

Luis Ramos (O comum)




 LO COMÚN

 

Contraría decirlo,
pero lo más abierto
que podría ocurrirnos
sería escribir un verso acertado
y dejar que se pierda sin firma en el tiempo.

Nunca anónimo,
                   común en su acierto.


Luis Ramos

 

 

Custa dizê-lo,
mas o mais aberto
que podia ocorrer-nos
era escrever um verso acertado
e deixá-lo perdido no tempo,
por assinar.

Nunca anónimo,
               comum no seu acerto.


(Trad. A.M.)

.

7.9.24

Helga Moreira (Se Deus)




Se Deus com um sinal viesse
se em ti me prolongasse
a luz seria toda a luz
que nos merece 

Se Deus ou quem por ele
em ardor nos encontrasse
apenas o que em nós
é corpo e desejo de súbito 

todo o amor seria
tempestade, acalmia.
E se Deus for corpo 

se Deus for ave, te envie
em um sopro, o que me cabe
dizer-te algum dia, quem sabe. 
 

Helga Moreira

 

>>  Arlindo Correia (12p/ e+) / Suroeste (6p) / Escritas (5p) / Citador (5p)

.

5.9.24

Ángel González (Eleito por aclamação)




ELEGIDO POR ACLAMACIÓN
 

Sí, fue un malentendido.
                                Gritaron: ¡a las urnas!
y él entendió: ¡a las armas! -dijo luego.
Era pundonoroso y mató mucho.
Con pistolas, con rifles, con decretos.
Cuando envainó la espada dijo, dice:
La democracia es lo perfecto.
El público aplaudió. Sólo callaron,
impasibles, los muertos.
El deseo popular será cumplido.
A partir de esta hora soy -silencio-
el Jefe, si queréis. Los disconformes
que levanten el dedo.
Inmóvil mayoría de cadáveres
le dio el mando total del cementerio.
 

Angel González

  

Sim, foi um mal-entendido.
            Gritaram: às urnas!
e ele entendeu: às armas – disse depois.
Era pundonoroso e matou muito.
Com pistolas, espingardas, decretos.
Quando embainhou a espada proclamou, conta-se:
A democracia é o ideal.
O público aplaudiu. Só se calaram,
impassíveis, os mortos.
O desejo popular será cumprido.
A partir de agora sou – silêncio –
o Chefe, se quiserdes. Quem discorde
levante o dedo.
A imóvel maioria de cadáveres
deu-lhe o poder total do cemitério.
 

(Trad. A.M.)

.

4.9.24

Ángel Campos Pámpano (Siquer este refúgio-VII)




SIQUIERA ESTE REFUGIO (VII) (*)
               


Concededme siquiera este refugio, este lugar al sol donde escribir sin culpa, libremente, donde cada palabra sea un acto de amor que se hace piedra, flor del sueño, sed de nubes. Siquiera este refugio, esta orilla secreta, donde todo es más fácil.

Ángel Campos Pámpano

 

 

Concedei-me sequer este refúgio, lugar onde possa escrever sem culpa, livremente, onde cada palavra seja um acto de amor que se faz pedra, flor do sonho, sede de nuvens. Sequer este refúgio, secreta margem, onde tudo é mais fácil.


(Trad. A.M.)

__________________

(*) 


Canção X (Luís de Camões)

Vinde cá, meu tão certo secretário
Dos queixumes que sempre ando fazendo,
Papel, com que a pena desafogo!
As sem-razões digamos que, vivendo,
Me faz o inexorável e contrário
Destino, surdo a lágrimas e a rogo.
Deitemos água pouca em muito fogo;
Acenda-se com gritos um tormento
Que a todas as memórias seja estranho.
Digamos mal tamanho
A Deus, ao Mundo, à gente e, enfim, ao vento,
A quem já muitas vezes o contei,
Tanto debalde como o conto agora;
Mas, já que pera errores fui nascido,
Vir este a ser um deles não duvido.
Que pois já de acertar estou tão fora,
Não me culpem também se nisto errei.
Sequer este refúgio só terei:
Falar e errar, sem culpa, livremente.
Triste quem de tão pouco está contente!

.

2.9.24

Paul Bailey (Paixão)




PASSION

 

My father’s rolling a cigarette. My mother’s knitting.
There’s silence between them, except for the clickety-clack
of her needles. 

He pours himself another beer. She wonders why
without ever asking the question. He hears it even so
since he’s alert to all the things she doesn’t say. 

It’s now he calls her Woman. She loathes the word.
Woman, he snarls again. Be quiet, Woman.
She goes on knitting. 

I’m in the corner, reading. Although I’m only ten
they’ve named me the Professor. Neither of them knows
how much I see of their unhappiness 

as I look up from my book. I try to picture them
as they must have been once, desperate to clutch each other
like Romeo and Juliet in a place called Verona.
 

Paul Bailey

  

O meu pai enrola um cigarro. A minha mãe faz malha.
Silêncio entre eles, se exceptuarmos o clic clac
das agulhas. 

Outra cerveja para ele. Porquê, interroga-se ela,
sem nunca formular a pergunta. Mesmo assim ele ouve,
atento a tudo o que ela não diz. 

É então que ele lhe chama Mulher. Palavra que ela detesta.
Mulher, resmunga outra vez. Está calada, Mulher.
E ela a tricotar. 

No canto estou eu, a ler. Embora com dez anos apenas
chamam-me o Professor. Desconhecem ambos
quanto eu meu me apercebo da sua infelicidade 

ao erguer os olhos do livro. Tento vê-los
como devem ter sido um dia, mortos por se agarrarem,
Romeu e Julieta num sítio chamado Verona. 


(Trad. FJCC)

 .