A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.
Albano Martins
[Poemário]
A sensação que tens
é de que tudo
quanto dizes já o leste
noutros livros. Mas
depois consideras: também
o sol e os pássaros
repetem todos os dias
a mesma canção.
Albano Martins
[Poemário]
CANCIÓN PARA ESE
DÍA
He aquí que viene el tiempo de soltar palomas
en mitad de las plazas con estatua.
Van a dar nuestra hora. De un momento
a otro, sonarán campanas.
Mirad los tiernos nudos de los árboles
exhalarse visibles en la luz
recién inaugurada. Cintas leves
de nube en nube cuelgan. Y guirnaldas
sobre el pecho del cielo, palpitando,
son como el aire de la voz. Palabras
van a decirse ya. Oíd. Se escucha
rumor de pasos y batir de alas.
Jaime Gil de Biedma
no meio das praças com estátua.
Está a soar a nossa hora. Tocarão
os sinos, de um momento para o
outro.
Olhai os nós tenros das árvores
a fazer-se visíveis na luz
recém-inaugurada. Fitas leves
pendem de nuvem a nuvem. E
grinaldas
no peito do céu, palpitando,
são como o vento da voz. Palavras
vão ser ditas. Escutai. Ouve-se
um rumor de passos, bater de asas.
> Outra versão: Acontecimentos (José Bento)
ELOGIO DE UN ATARDECER
Que no muera la tarde.
No que no muera,
que se quede.
Que se quede la luna
de la tarde,
la luna de los árboles
casi azules,
la luna en los aleros,
la luna en la ventana,
con un mosquitero
momentáneamente en desuso.
Jacobo Rauskin
Que não morra a tarde,
que não morra não,
que perdure.
Que perdure a lua da tarde,
a lua das árvores
quase azuis,
a lua nos beirais,
a lua na janela,
com um mosquiteiro
de momento fora de uso.
(Trad. A.M.)
TESTAMENTO
DO POETA
Não sou
dos que se aceita... a não ser mortos.
Demais,
já desisti de quaisquer portos;
Não peço
a vossa esmola de mendigos.
O mesmo
vos direi, sonhos antigos
De amor!
olhos nos meus outrora absortos!
Corpos
já hoje inchados, velhos, tortos,
Que
fostes o melhor dos meus pascigos!
E o
mesmo digo a tudo e a todos, - hoje
Que tudo
e todos vejo reduzidos,
E ao meu
próprio Deus nego, e o ar me foge.
Para
reaver, porém, todo o Universo,
E amar!
e crer! e achar meus mil sentidos!....
Basta-me
o gesto de contar um verso.
José
Régio
ACEPTO ESTE DESTINO
Estoy aprendiendo
a
habitar estos días previsibles
en los
que siempre me levanto a las 7:30
y
desayuno siempre un tazón de leche
con
galletas. Estos días ni tristes
ni
alegres
de los
que uno no espera gran cosa.
Ya es
bastante
si el
día amanece soleado,
y sigo
respirando otras veinticuatro horas,
y no
sufro ni provoco sufrimiento a otros,
y
tengo una compañera
a
quien agarrar de la mano,
y
algunos poemas que llevarme al alma
antes
de preparar el despertador
para
que suene a las 7:30
y
apagar la luz.
Estou a aprender
a habitar estes dias previsíveis
em que me levanto sempre às 7.30
e tomo um copázio de leite
com bolachas. Estes dias
nem tristes nem alegres
dos quais não se espera grande coisa.
Já é bastante
se o dia amanhece com sol,
e respiro ainda mais vinte e quatro horas,
e não sofro nem faço sofrer os outros,
e tenho companheira
a quem dar a mão,
e alguns poemas para fazer bem à alma
antes de acertar o despertador
para tocar às 7.30
e depois apagar a luz.
(Trad. A.M.)
.
PETER PAUL RUBENS, ‘A
QUEDA DOS CONDENADOS’
[c.1620, óleo s/tela. 286 X
224cm]
(Para
José Miguel Braga)
Olho o quadro e espero. Olho de novo o quadro
E volto a esperar. Por mais que olhe, por muito
Que espere, o quadro nunca está onde espero
Que esteja. Sem que se movimente, o quadro movimenta-se
Num impulso subtil sob os meus olhos, a minha
Expectativa, a minha ansiedade, o meu modo de querer
Corroborar razões e disso estar aflito. Volto
A olhar e o quadro estremece. Não está, de novo,
No mesmo lugar onde o vi, onde o vejo agora.
Nunca está no lugar que ocupa, embora ocupe
Um vultuoso lugar de estremecimento. Não, não
Compreendo, isto é quase uma batalha, uma adversidade
Que me contradiz e supera. O quadro não pára de
estremecer
E eu estremeço com ele. Por isso, sempre que o olho
O quadro não está no lugar onde o vejo,
Está mais perto de mim e porventura mais longe do meu olhar,
O quadro está num infinito de que nada sei,
De que nada se sabe. Aqui e ali, estremece para me perturbar.
Foi Peter Paul Rubens que, cerca de 1620, o pintou,
Diz-se que sobre um esboço feito em giz preto
E vermelho e uma tinta cinza, desenhado por um
Um assistente da oficina. Agora o quadro está na antiga
Pinacoteca de Munique, mas é como se estivesse
Em todo o lado, como se cada uma das suas abrangências
Se impusesse a todos os olhares, os pios e os ímpios, os que
querem
Entender como se tende a massa humana na crispação
De nunca sabermos do que nos adverte a arte
Quando nos deparamos com ela e com ela somos
Confrontados. Olho o quadro e espero. Olho de novo
O quadro e volto a esperar. Espero e espero sem que saiba
Por que tudo estremece à minha volta, por que estremece
Cada uma das figuras que o quadro representa, cada um
Dos corpos que o arcanjo Miguel, sob um raio de luz,
Precipita no abismo, num caudal contínuo. Olho o quadro.
Uma e outra vez olho o quadro e espero. Tento contar
O número de corpos que caem no vórtice, sem resultado.
Se um desaparece no tumulto, logo um outro corpo o substitui
Como se fosse sem fim a cegarrega do infortúnio
E a nenhum apelo pudesse a esperança alcandorar-se.
Este é um voo que a coação impele, uma queda a que nenhum
De nós será alheio, nenhum de nós deixará de interrogar
Se sobre a sua desolação o encontrar, sobre as suas
Derrogações, sobre as escarpas que tiver na vida.
Olhando o quadro nota-se que tem uma profundidade
Que ganha altura, que tem um ímpeto inexorável
Que entontece o coração, os corpos caem e somos nós a cair,
Somos nós a sofrer a expiação da espada do arcanjo,
Da crueldade divina, que tanto afirma amar-nos.
O quadro estremece, estremece sempre que o olho,
E não sei se sou eu que estremeço, se é o mundo
Que estremece por ele e por mim. Nunca está onde julgo
Que está, e é belo, e é terrífico, e enche-me de afrontas e de
dúvidas,
Como se eu estivesse nele, como se também eu caísse
Para a cloaca do inferno, sujeito ao alvedrio de um anjo
Sumptuoso mas tirânico, sob o livre arbítrio de um deus déspota
E falaz. Aceito que Rubens tivesse finalizado este quadro,
Dotando-o do rigor do seu talento. Aceito que tenha
permitido
Que a exaustão pudesse ver-se, talvez como exemplo, talvez
como
Reconhecimento de quanta fragilidade recai sobre os nossos
ombros
Se somos sumariamente julgados no juízo que de nós é feito
Sem que as nossas razões sejam pesadas, contadas as nossas
palavras
Inocentes. Aceito que ao tempo tudo indicasse
Que fosse o extravio a solução para a deriva,
Entre o bulício da reforma e da contra-reforma,
Com tantos assassinatos em presença, tantas mortes,
Tantas intrépidas traições, tanto dolo sobre a humanidade.
Aceito que Rubens elevasse a beleza ao desconcerto,
A este modo de ficarmos alucinados por tanta apoteose,
Tanto discernimento plástico sobre a tela, tanta excelência
A mostrar o que se não pode ou deve ver na derrisão
A que cada um de nós está exposto, como se mais nada
Houvesse, como se amanhã nada existisse. Mas fica-me
No olhar uma tontura, olho o quadro e espero, olho de
novo
O quadro e volto a esperar. Dele chega uma luz
Que me faz estremecer, quanto mais
O olho mais o estremecimento me invade,
Mais a escuridão se aproxima, mais a queda é extensa,
Demorada, encantatória, sedutora, entorpecente para quem
Espera ter a alma tão limpa como as mãos, o espírito
Tão nítido como um fogo que se vê ao longe,
Uma casa e a sua luz no topo de uma montanha muito escura.
Olho o quadro e sinto-me estremecer, e comigo, quem sabe
Se por mim, o quadro estremece também, esplendoroso e frágil,
A fazer de mim não mais que um farrapo sem préstimo,
Um ente que veio ao mundo com menos serventia do que uma alfaia
Agrícola ou a vela de um navio. Presumo que estes
corpos
Foram todos tirados do natural, como há época começou a
ser hábito,
Mas penso que estes corpos são mais do que parecem
Ser sobre esta tela, estão a cair, a rebolar pela escarpa
Sob o contínuo escrutínio do arcanjo Miguel
Mas parecem luminosamente corajosos, ditosos sobre o acaso
Que lhes foi destinado, bem-aventurados sobre a queda,
Magníficos e mortais no desvelo que nos mostram, na coragem
Que se lhes adivinha, a carregar o castigo que lhes foi imposto
Sem que alguém queira indagar sobre a dor que os sitia,
O perdão que alguma benevolência poderia ter-lhes dado,
alguma misericórdia, alguma graça possível.
Creio que estes corpos serão a primazia da sua humanidade,
Com os seus erros e as suas bondades, a sua fortuna e a sua
desventura,
O maligno e o benigno a que tudo se reduz, aqui uma
virtude,
Um defeito ali, já que é na perfeição que a imperfeição existe,
À imagem e semelhança de tudo o que criamos. A alta
pintura
Faz-se pela graça repartida entre os mortais
e há-de essa graça
Entender-se por sapiência, por letras gregas, latinas e
hebraicas,
Pela muita ou pouca experiência que se tem, pela força do
sangue
De quem vive, de quem olha, de quem espera e estremece
No quadro, olhando o quadro, olhando o mundo. A dor é
poderosa,
A mortandade ilimitada, a criação magnânima. Ignoro se
Deus também poderá ter sido tirado do natural da sua
intratável
Natureza, se o uso das línguas o pode descrever, se o sangue
Terá alguma vez oportunidade de responder ao que sujeita o
homem,
Se também espera, se também olha, se também estremece,
Se também faz parte da queda, tal como a queda faz parte deste
quadro.
Ignoro se Deus sabe ou não sabe perdoar e redimir,
Se a ideia que nos fez ter da astúcia que tem mais não é
Do que a reprodução exacta da sombras que o identificam,
Do que se diz ter gerado, do que nos proibiu sabendo que isso era
bom.
Deus está omisso neste quadro, mas sem dúvida que está lá,
Está lá, como sempre, embuçado, inimputável, ausente, a desferir
Os seus golpes ominosos, as suas proezas execráveis. Assim
condena
A quem ofende, sem que sequer estremeça pela sua própria criação,
Sem que olhe, de novo, sem que espere. E o mais é o
infortúnio
Dos que olham e olham, e esperam e esperam, incrédulos
Da beleza deste quadro e da crueldade divina que nele se adivinha.
Olho o quadro e espero. Olho de novo o quadro
E volto a esperar. Olho o quadro e estremeço: Olho
Aqueles corpos indefesos que rolam pela escarpa,
Aquelas almas – e por uma vez fico a saber que amanhã
Não nos iremos encontrar no paraíso.
Amadeu Baptista
PERSONAJE A PUNTO
DE CRUZAR LA CALLE
ahora que las
ventanas sólo son
rectángulos
vacíos de cristal y madera
contra la densa
niebla de la tarde
y el otoño ha
llegado
tras esa larga
enfermedad que es el verano.
Qué pobre este
ahorrar para luego
sin saber para
cuándo,
y que las cosas
ya no sean,
sólo sirvan,
y que se cierren
puertas para siempre,
y marcharme
con lo que quise
haber dicho entre los labios
y cruzar la
avenida
cuando cambien a
verde los semáforos.
agora que as janelas são só
rectângulos vazios de vidro e madeira
contra a névoa densa da tarde
e o outono chegou
após essa longa doença do verão.
Que pobre este poupar para depois
sem saber para quando,
e que as coisas não sejam,
sirvam só,
e que se cerrem portas para sempre,
e ir-me
com o que gostava de ter dito nos lábios
e atravessar a rua
quando o semáforo mudar para verde.
A LUZ DE LISBOA
as duas janelas, e é sempre a mesma luz, embora
de um lado seja o poente – onde está o sol, agora – e do outro
o nascente – onde o sol já esteve. No quarto
juntam-se poente e nascente, e é esta
luz que confunde o olhar, que não sabe em que
hora se situa a luz primeira. Então, olho a linha
que percorre o espaço entre as duas janelas,
como se não tivesse princípio nem fim; e
o que faço é puxar essa linha para dentro
do quarto, e enrolá-la, como se me
pudesse servir dela para atar as duas extremidades
do dia ao meio-dia, e deixar que o tempo fique
parado entre duas janelas, a poente
e a nascente, até que o fio se volte
a desenrolar, e tudo
recomece.