(Início)
Cá estou.
Precisamente no mesmo quarto onde, faz hoje um ano, me instalei na minha primeira visita à aldeia e onde, com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro.
Repare-se que tenho a mão direita pousada num livro antigo - Monografia do Termo da Gafeira - ou seja, que tenho a mão sobre a palavra veneranda de certo abade que, entre mil setecentos e noventa, mil oitocentos e um, decifrou o passado deste território.
É nele que penso também - nisto tudo, na aldeia, nos montes em redor e nos seres que a habitam e que formigam lá em baixo, por entre casas, quelhas e penedos, à distância de um primeiro andar.
Sou um visitante de pé (e em corpo inteiro, como numa fotografia de álbum), um Autor apoiado na lição do mestre.
Lavatório de ferro à esquerda, mesa de trabalho à direita; em fundo, a porta com a espingarda e a cartucheira penduradas no cabide.
Pormenor importante: enfrento a janela de guilhotina que dá para o único café da povoação, do outro lado da rua, e, mais para diante, vejo o largo, a estrada de asfalto e um horizonte de pinhais dominado por uma coroa de nuvens: a lagoa.
Algures, no corredor, a dona da casa chama pela criadita.
Temos, pois, o Autor instalado na janela duma pensão de caçadores.
Sente vida por baixo e à volta dele, sim, pode senti-la, mas, por enquanto, fixa-se unicamente, e com intenção, no tal sopro de nuvens que é a lagoa.
Não a vê dali, bem o sabe, porque fica no vale, para lá dos montes, secreta e indiferente.
No entanto, aprendeu a assinalá-la por aquele halo derramado à flor das árvores, e diz: lá está ela, a respirar.
Depois, se quisesse escrever, passaria apenas o dedo na capa encarquilhada do livro que o acompanha (ou numa tábua de relíquia, ou numa pedra) e sulcaria o pó com esta palavra: Delfim
JOSÉ CARDOSO PIRES
O Delfim
(1968)
.