31.10.17

Eucanaã Ferraz (Graça)





GRAÇA



Milhões de palavras derramadas inúteis
mas teu rosto não; árvores tombadas livros
partidos tudo se vende mas teu rosto não;
sangue de cidades e crianças mas teu rosto
segue limpo; em cada canto um inimigo;
no teu rosto não: rosto onde não cabe
a guerra; rosto sem irmão; teu rosto
o teu nome o diz.


Eucanaã Ferraz




>>  Eucanaã Ferraz (sítio/50p)

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30.10.17

Olga Orozco (Mesmo que nosso rasto se apague)





Aunque se borren todos nuestros rastros
 igual que las bujías en el amanecer
y no puedas recordar hacia atrás, como la Reina Blanca,
déjame en el aire la sonrisa.
Tal vez seas ahora tan inmensa como todos mis muertos
y cubras con tu piel noche tras noche
la desbordada noche del adiós:
un ojo en Achernar, el otro en Sirio,
las orejas pegadas al muro ensordecedor de otros planetas,
tu inabarcable cuerpo sumergido en su hirviente ablución,
 en su Jordán de estrellas.
Tal vez sea imposible mi cabeza, ni un vacío mi voz,
algo menos que harapos de un idioma irrisorio mis palabras.
Pero déjame en el aire la sonrisa:
la leve vibración que azogue un trozo de este cristal de ausencia,
la pequeña vigilia tatuada en llama viva en un rincón,
una tierna señal que horade una por una
 las hojas de este duro calendario de nieve.
Déjame tu sonrisa a manera de perpetua guardiana,
Berenice.


Olga Orozco




Mesmo que nosso rasto se apague como a vela de manhã
e não possas recordar para trás, como a Rainha Branca,
deixa-me um sorriso no ar.
Talvez sejas agora tão imensa como os meus mortos
e cubras com tua pele noite após noite
a despejada noite do adeus:
um olho em Achernar, outro em Sirius,
as orelhas coladas ao muro dos planetas,
teu corpo intangível mergulhado em sua ablução,
em seu Jordão de estrelas.
Talvez seja impossível minha cabeça, sequer um vazio minha voz,
menos que farrapos de ridícula língua minhas palavras.
Mas deixa-me no ar o sorriso:
a ligeira vibração deste vidro de ausência,
a pequena vigília tatuada em chama viva a um canto,
um sinal que desfolhe uma a uma as folhas
deste duro calendário de neve.
Deixa-me teu sorriso assim a modo de custódia perpétua,
Berenice.


(Trad. A.M.)

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29.10.17

Ernesto Sabato (Talvez à morte)





Tal vez a nuestra muerte el alma emigre:
a una hormiga,
a un árbol,
a un tigre de bengala;
mientras nuestro cuerpo se disgrega
entre gusanos
y se filtra en la tierra sin memoria,
para ascender luego por los tallos y las hojas,
y convertirse en heliotropo o yuyo,
y después en alimento del ganado,
y así en sangre anónima y zoológica,
en esqueleto,
en excremento.
Tal vez le toque un destino más horrendo
en el cuerpo de un niño
que un día hará poemas o novelas,
y que en sus oscuras angustias
(sin saberlo)
purgara sus antiguos pecados de guerrero o criminal,
o revivirá pavores,
el temor de una gacela,
la asquerosa fealdad de comadreja,
su turbia condición de feto, cíclope o lagarto,
su fama de prostituta o pitonisa,
sus remotas soledades,
sus olvidadas cobardías y traiciones.


ERNESTO SABATO
Sobre héroes y tumbas
(1961)




Talvez à morte a nossa alma emigre,
e se faça uma formiga,
uma árvore,
ou um tigre de Bengala;
enquanto o corpo se desfaz
entre os bichos
e se filtra na terra sem memória,
para se elevar depois pelos talos e folhas
e converter-se em girassol ou erva daninha,
fazendo-se então alimento para o gado,
e daí sangue anónimo e zoológico,
já esqueleto,
já excremento.
Ou talvez lhe calhe um destino mais horrendo
no corpo de uma criança
que um dia fará poemas ou romances
e que em suas escuras angústias 
(sem saber)
purgará seus pecados de criminoso ou guerreiro,
ou reviverá pavores,
o temor de uma gazela,
o asco horrível da doninha,
sua turva condição de feto, ciclope ou lagarto,
sua fama de puta ou pitonisa,
suas remotas solidões,
suas mil cobardias e traições.



(Trad. A.M.)

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28.10.17

José Rentes de Carvalho (Portugal)





Verdade é que Portugal viria a ocupar-me de maneira bem diferente, levando-me a descobrir no exílio sentimentos de vergonha que se juntavam, mas excediam, os que até então só tinham sido de revolta.

Ao insulto pode responder-se com outro, não custa pagar a arrogância com moeda igual, mas dói, dói muito, quando sinceramente, e com fundamento, nos demonstram piedade pela pouca sorte de termos nascido num país de ternura, de tanta gentileza, mas ser ele há séculos coito de quadrilhas que pela força e o embuste chamam a si a lei, a impõem a uma gente que, amedrontada e pobre, se verga ao jugo e muda em subserviência o seu natural carinho. (...)


O passar dos anos e o cansaço das emoções têm acalmado alguma coisa, não muito, da raiva que me possui, mas continua a enfurecer-me a desigualdade, a desvergonha e o desdém dos governantes pelos governados, a roubalheira que fazem da coisa pública, o desmedido fosso entre os que têm e os que nunca terão.


J. RENTES DE CARVALHO
O Meças
(2016)

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27.10.17

Joaquín Benito de Lucas (Elegia)





ELEGÍA



Cuando regreso ahora
a mi ciudad, no puedo contener
la emoción de saber que no me esperan.
No me espera mi padre, que se marchó río abajo
muy despacio entre juncos, bajo puentes de niebla. 
No me espera mi hermano,
que me esperaba siempre al pie de un mostrador
cualquiera, en cualquier calle
brindando por mi último
libro o por su desgracia
o por otro motivo interesante.
Ni tampoco me espera
el otro hermano que recién se ha ido,
dejándome la sombra
de sus zapatos y sus trajes,
que cepillo y que plancho
y me pruebo y me pruebo
sin saber qué me sobra o qué me falta.


Joaquín Benito de Lucas




Agora quando regresso
à minha terra, não posso conter
a emoção de saber que não me esperam.
Não me espera meu pai, que se foi pelo rio abaixo
de seu vagar entre os juncos, sob pontes de névoa.
Não me espera meu irmão,
que me esperava sempre ao pé de uma montra
qualquer, a brindar em qualquer rua
pelo meu último livro, pela sua desgraça
ou por outro motivo palpitante.
Nem me espera tão pouco
o outro irmão falecido há pouco,
deixando-me a sombra 
de seu calçado e dos fatos,
que escovo e passo a ferro,
e provo e torno a provar,
sem saber aquilo que me sobra ou que me falta.


(Trad. A.M)

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26.10.17

Isabel Bono (Roma Termini)





ROMA TERMINI (RUMBO NORTE)



esta lluvia
no va a detenerme

yo sólo estoy de paso

esta lluvia
no es mía


Isabel Bono




esta chuva
não me vai deter

eu estou só de passagem

esta chuva
não é minha


(Trad. A.M.)

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25.10.17

Pedro Tamen (Palavras minhas)





PALAVRAS MINHAS



Palavras que disseste e já não dizes,
palavras como um sol que me queimava,
olhos loucos de um vento que soprava
em olhos que eram meus, e mais felizes.

Palavras que disseste e que diziam
segredos que eram lentas madrugadas,
promessas imperfeitas, murmuradas
enquanto os nossos beijos permitiam.

Palavras que dizias, sem sentido,
sem as quereres, mas só porque eram elas
que traziam a calma das estrelas
à noite que assomava ao meu ouvido…

Palavras que não dizes, nem são tuas,
que morreram, que em ti já não existem
– que são minhas, só minhas, pois persistem
na memória que arrasto pelas ruas.


Pedro Tamen



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24.10.17

Jenaro Talens (Epitáfio)





EPITAFIO                   
         


Fui un viejo juglar, y conté historias.
Mi nombre os es indiferente.
Sólo dejo constancia de mi oficio
porque fue oficio quien dictó mis versos
no la pequeña vida que viví,
ni su dolor, ni su insignificancia.
Ella murió conmigo, y aquí yace,
desnuda como yo, bajo esta piedra.

Jenaro Talens





Um velho malabarista fui,
contador de histórias
- meu nome não conta.
Deixo menção do ofício,
porque ele é que me ditou os versos,
não a vida pequena que vivi,
sua dor, ou a insignificância.
Ela morreu comigo, e aqui jaz,
desnuda como eu, sob esta pedra.


(Trad. A.M.)

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23.10.17

Juan Bonilla (Pai nosso)





Padre nuestro que estás en paradero
desconocido, líbranos de ti.

No nos llenes el tiempo con tu ausencia.

Tú utilizaste el fuego del infierno
para encender el sol de nuestra infancia.

No nos des certidumbre de tus ojos
después de que los nuestros ya no puedan
mirar la rosa negra de la vida.

Oh cordura de Dios que catas
el pecado del mundo,
dispendia tu piedad con los cobardes,
los que te encuentran en cualquier fenómeno
de meteorología, los que imponen
tu Nombre en leyes y oraciones.

Confórmate con ser un huésped
de nuestra infancia rota en mil pedazos.

Vacíanos de Ti,
regresa a tus orígenes
a aquella imensa noche de tormenta
en la que el miedo de unos monos te inventara.

Juan Bonilla




Pai nosso que estás em parte
incerta, livra-nos de ti.

Não ocupes nosso tempo com tua ausência.

Tu, que usaste o fogo do inferno
para acender o sol da nossa infância.

Não nos dês a certeza de teus olhos
quando os nossos já não puderem
olhar a rosa negra da vida.

Ó cordeiro de Deus que tiras
os pecados do mundo,
despende tua piedade com os cobardes,
os que te vêem em qualquer fenómeno
meteorológico, os que impõem
teu Nome em leis e orações.

Conforma-te com ser um hóspede
de nossa infância partida em mil pedaços.

Vazia-nos de ti,
regressa à tua origem,
essa imensa noite de tormenta
em que o medo de alguns macacos te inventou.


(Trad. A.M.)



> Outro pai-nosso: Nicanor Parra

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22.10.17

Camilo Castelo Branco (Maria da Fonte)





Foi a Maria da Fonte a personificação fantástica de uma colectividade de amazonas de tamancos, ou realmente existiu, em corpo e fouce roçadoura, uma virago revolucionaria com aquelle nome e appellido?


É o que vamos esmiuçar. (p. 17)


CAMILO CASTELO BRANCO
Maria da Fonte
Porto (1901)

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21.10.17

Alfonsina Storni (Cansaço)





CANSANCIO



Todos, todos tenemos una hora cobarde,
una hora de hastío cuando muere la tarde.

Cuando se va el amigo que nos trae calor,
el amigo de oro, el Mago Gestador.

Cuando se juntan todas las impresiones malas
y el alma es un tejido de finísimas alas.

Cuando puede decirse: lo que fué no será;
lo que no hice hoy no lo haré nunca ya.

Es entonces, cobarde, que me acosa el deseo
de no ser y ni pienso, ni trabajo, ni creo.

Es una nulidad completa de mí misma
que me asusta y me hiere, me subyuga y abisma.

Es entonces que yo quisiera ser así
como una cosa nimia, futil, baladí.

Un chiche que se lleva guardado en el bolsillo.
una prenda cualquiera, un reloj, un anillo…

Ser una cosa muerta que la llevan cargada
y que no sabe nada y que no piensa nada.

Todos, todos tenemos una hora cobarde,
una hora de hastío cuando muere la tarde.


Alfonsina Storni





Todos nós, todos temos uma hora cobarde,
uma hora de tédio ao morrer da tarde.

Quando parte o amigo que nos dá calor,
o amigo de ouro, o Mago Criador.

Quando se juntam as más impressões 
e a alma é um tecido de finíssimas asas.

Quando pode dizer-se: o que foi já não será,
o que hoje não fiz nunca mais o farei.

É então, cobarde, que me acossa o desejo
de não ser e nem penso, nem trabalho, nem creio.

É uma completa nulidade de mim mesma
que me assusta e me fere, me subjuga e me espanta.

É então que eu gostaria de ser assim,
coisa nímia, fútil, banal.

Um brinquedo que se guarda no bolso,
uma jóia qualquer, um anel, um relógio...

Ser uma coisa morta que se leva às costas,
que não sabe nada, que não pensa em nada.

Todos nós, todos temos uma hora cobarde,
uma hora de tédio ao morrer da tarde.


(Trad. A.M.)


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20.10.17

Silvia Ugidos (Sótão)





DESVÁN



El desván infantil donde sestea el tiempo
antiguo y polvoriento de todos los veranos
y la luz, ese enigma, que se posa despacio
entre objetos y libros, fotos de antepasados
espiando mis juegos
con las rígidas ropas de los recién casados.
Y en un rincón manzanas, pequeñas, perfumadas,
aquel baúl sin llave, misterioso y cerrado,
símbolo de los años que yo aún no conocía,
que estaban por llegar, que ahora son pasado.
Baúl adolescente que abrimos una tarde
fascinados, con miedo, silenciosos, solemnes,
tomados de la mano,
compartiendo los besos de una infancia borrosa
que de pronto nos deja y se aleja y se pierde.
He venido de nuevo a revolverlo todo,
a buscar entre fotos y naftalina y libros
yo no sé qué memoria que guardo de mí misma.
He venido otra vez, como antes, por juego,
esperando encontrar dormido en el desván
un verso elemental, una trampa, algún cepo
donde el tiempo al pasar se pillara los dedos.

Silvia Ugidos




O sótão da infância em que dorme o tempo
antigo e poeirento dos verões
e a luz, esse enigma, que pousa devagar
no meio de livros e objectos, fotos antigas,
espiando-me as brincadeiras
com as roupas tesas dos recém-casados.
E num canto maçãs, miúdas, perfumadas,
aquele baú sem chave, misterioso e fechado,
símbolo dos anos ainda por conhecer,
então do porvir e hoje já passado.
Baú adolescente que um dia abrimos
fascinados, a medo, silenciosos, solenes,
de mãos dadas,
partilhando os beijos de uma infância ilusória
que de repente nos deixa, e se alonja, e se perde.
Aqui venho de novo, a remexer tudo,
buscando entre fotos e livros e naftalina
não sei já que memória que guardo de mim mesma.
Aqui venho outra vez, como dantes, por brincadeira,
à espera de encontrar adormecido no sótão
um verso elementar, uma cilada, algum cepo
em que o tempo ao passar entalasse os dedos.



(Trad. A.M.)

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19.10.17

José Rentes de Carvalho (Ajuste de contas)





Estranhamente, o momento que deveria ser um de grande medo, vivera-o ele em paz, com a firmeza de quem tem razão e ajusta contas.

Quando recordava o negrume da noite sem lua, a canelha dos palheiros, sentia o corpo entesar-se, de novo se via a abrir e a fechar a navalha de barba, correndo os dedos pela macieza do cabo, a repetir a vontade que tinha de encarar o homem.

Porque não seria à traição, havia de saber quem tinha diante, queria vê-lo dar-se conta de que chegara a hora de pagar.

Lançou-se de frente, a navalha horizontal, ao tempo de vê-lo arregalar os olhos já a cabeça pendia, o talho cerce e tão fundo que quase o degolara, ele só por um triz escapando ao espichar do sangue.


J. RENTES DE CARVALHO
O Meças
(2016)

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18.10.17

Andrés Trapiello (É isto)





Es esto                                               
la temible muerte.
Ha llegado el final
y no tienes respuesta.
El vaso de cristal,
la flor sobre la mesa,
el dolor de partir
sin que tu corazón conozca
una sola razón
de estas tres cosas
sencillas.


Andrés Trapiello




É isto
a morte temível.
Chegou o final
e tu não tens resposta.
O copo de vidro,
a flor sobre a mesa,
a dor de partir
sem teu coração conhecer
uma só razão
dessas três coisas
singelas.


(Trad. A.M.)

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17.10.17

Javier Galarza (Destempos)





DESTIEMPOS



Llego pronto a tu antes,
palpo los nunca de tu respiración agitada.
Cuando callás, algo silencia más allá de vos,
y cuando cerramos los ojos,
todo duerme en algún lugar.
Esto está hecho de gestos desesperados,
de destiempos, no tiene sujeción:
donde vos calculás, yo me deshago,
donde vos te mostrás, yo me desarmo.
Sos la regla que confirma la excepción,
lo espectral. Vivo en un no instante,
entre el ya no de tu partida y el aún no
de quien serás.


Javier Galarza



Chego depressa a teu antes,
palpo os nuncas de tua agitada respiração.
Quando te calas, algo fica em silêncio para além de ti,
e quando cerramos os olhos
tudo dorme nalgum lugar.
Isto faz-se de gestos de desespero,
de destempos, não há controlo:
onde ponderas, eu me desfaço,
onde te mostras, eu me desarmo.
És a regra que confirma a excepção,
a sombra. Eu vivo num não instante,
entre o já não da tua partida e o não ainda
de quem serás.


(Trad. A.M.)

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16.10.17

Eugénio de Andrade (De palavra em palavra)





De palavra em palavra                 
a noite sobe
aos ramos mais altos
e canta
o êxtase do dia.


Eugénio de Andrade


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15.10.17

Antonio Martínez Sarrión (Discreto)





DISCRETO



Feliz quien, sin anhelo,
 aguarda la mañana.
Y, en llegando, se dice
sereno: «Ya viví».
Ése empieza ganando
un día y otro día.
Ni se jacta con ello,
ni publica su suerte,
ni menos aún mendiga
aplausos, pompas, humo
con que hacerse una estatua.

Antonio Martínez Sarrión




Feliz aquele que aguarda,
sem ânsia, a manhã.
E em ela chegando diz, sereno,
para si mesmo: ‘Já vivi’.
Esse começa a ganhar
um dia e outro dia.
Não se vangloria disso,
não faz alarde da sua sorte,
nem muito menos mendiga
aplausos, pompas, fumaças
com que erguer uma estátua.


(Trad. A.M.)

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14.10.17

Berta Piñán (Noites de incêndio)





NOCHES DE INCENDIO



Son noches de insomnes las noches
de incendio.
Más cercana la muerte y
la vida, más violenta en esta espera
nocturna que enciende deseos y descubre
promesas,
certezas que pasan
ardiendo.
Prende el fuego en el aire como un aire de fiesta
o de guerra, de cosas que un instante
suceden y no son nada al instante.
En unas horas dejamos atrás aquello que fuimos
y va quedando en el aire
como un aire de urgencia,
de gestos recién aprendidos
y muy pronto olvidados.
Nadie duerme nunca
en las noches de incendio.
Como un amante impaciente,
la llama que crece en la noche
consume la noche
y nos recuerda lo que fuimos
quedando: sólo humo.
Y ceniza.

Berta Piñán




São noites de insones as noites 
de incêndio.
Mais próxima a morte e
a vida, mais violenta nesta espera
nocturna que acende o desejo e descobre
promessas,
certezas que passam 
ardendo.
Solta-se o fogo no ar como um ar de festa
ou de batalha, de coisa que num instante
acontecem e logo a seguir não são nada.
Em poucas horas deixamos
para trás aquilo que fomos,
ficando no ar 
como que um ar de urgência,
de gestos aprendidos há pouco
e muito depressa esquecidos.
Ninguém dorme nunca
nas noites de incêndio.
Como amante impaciente,
a chama que cresce na noite
devora a mesma noite, 
lembrando-nos aquilo em que nos fomos
convertendo, fumo apenas.
E cinza.

(Trad. A.M.)


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13.10.17

Luís Quintais (Ética)






ÉTICA



Vou falando as pequenas coisas
que me são solicitadas.
Sentindo que as ciladas
se acumulam cada vez que falo.
Preferi hoje o silêncio.
A ausência de equívocos
não é partilhável.
No inegociável deste dia,
destituo-me de palavras.
O silêncio não se recomenda.
Deixa-nos demasiado sós,
visitado pelo pensamento.


Luís Quintais




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12.10.17

Aníbal Núñez (Encontros)





ENCUENTROS



Tibio yeso tus ojos tienden sobre
mi corazón en ruinas: rapidísima
reconstrucción de un templo a ti advocado.

Aníbal Núñez





Gesso fino teus olhos estendem
sobre meu coração em ruínas: rapidíssima
reconstrução de um templo
a ti consagrado.


(Trad. A.M.)

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11.10.17

Enrique García-Máiquez (A vocação)





LA VOCACIÓN



Por qué escribir en verso si la prosa
es fácil, la publican, me la pagan
y tiene hasta lectores? La respuesta
es sólo esta pregunta, cada noche.


Enrique García-Máiquez

[Lavorare stanca]




Porquê escrever em verso se a prosa
é fácil, publicam-na, pagam-ma
e até tem leitores? A resposta
é só esta pergunta, cada noite.

(Trad. A.M.)

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10.10.17

José Rentes de Carvalho (Violação)





A bofetada como que lhe rebenta a cabeça e sente os olhos desencaixar-se, a quentura do sangue a escorrer do nariz, mas queda-se numa aceitação animal, sem vontade própria, incapaz de raciocínio ou sentimento.

E como em estado segundo, assiste, participa, esquecida de ser, ignorante do que faz, do que vê, a modos de sentir seu o corpo e ao mesmo tempo o negar, sofrer-lhe a dor e sair dele.

Num reflexo tinha fechado as pernas, mas logo as voltara a abrir, obediente quando ele, forçando, lhas pegou às mãos ambas como se a quisesse rachar.

Esperava bruteza e foi o que sofreu: o ventre esgarçado, uma sensação de queimadura, o peso, a asfixia da mão que lhe tapava a boca, a outra a apertar-lhe o pescoço.
Coito selvagem, dor que nunca tinha sentido, nem suportado macho com raiva assim.


J. RENTES DE CARVALHO
O Meças
(2016)

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9.10.17

Marcos Tramón (Dez mandamentos)





DIEZ MANDAMIENTOS, SEGÚN LEY PROPIA



No creerás en Dios;
no creerás en nada, salvo en aquella luna oblicua que proyectaba,
 alargada y a un lado, vuestra sombra;
no creerás en las contradicciones: una opinión es un capricho,
la contraria, otro capricho
en un posterior momento;
no perteneces ni pertenecerás a nadie,
tan solo al olor de las calles en tu solitaria adolescencia;
nunca maldecirás contra estas calles, tuyas, que te recogen;
creerás que la mejor compañía será siempre estar solo;
nunca confiarás en un amigo que no tolere
que haya entre ambos largos periodos de silencio;
nunca negarás que tu ciudad y el invierno son los mejores estados de ánimo;
nunca olvidarás el sabor de aquel “hot dog” y el calor de la amistad,
mágica noche, en la Quinta Avenida;
dedicarás tu vida a leer y releer a Schopenhauer, quien, según Borges,
acaso descifró el universo.
Estos diez mandamientos se resumen en uno:
verás tu sombra caminar contigo, al tiempo
que verás en tu camino otros hombres y mujeres,
otras sombras.


Marcos Tramón





Não crerás em Deus;
não crerás em nada, salvo nessa lua que projectava
a vossa sombra;
não crerás nas contradições – uma opinião é um capricho,
a opinião contrária outro capricho
no momento seguinte;
não pertences nem pertencerás a ninguém,
só ao cheiro das ruas da tua solitária adolescência;
não maldirás nunca estas ruas, que são tuas e te recebem;
crerás que a melhor companhia será sempre estar sozinho;
não confiarás nunca em amigo que não tolere
longos silêncios entre ambos;
nunca negarás que o inverno e a tua cidade são os melhores estados de alma;
nunca olvidarás o sabor do ‘hot dog’ e o calor da amizade,
noite mágica, na Quinta Avenida;
dedicarás tua vida a ler e reler Schopenhauer, que, dizia Borges,
se calhar decifrou o universo.
Estes dez mandamentos resumem-se num:
verás tua sombra caminhar contigo, ao tempo
que verás em teu caminho outros homens e mulheres,
outras sombras.
  
(Trad. A.M.)

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8.10.17

César Cantoni (Gente de letras)





GENTE DE LETRAS



Sálvame, Señor, de los poetas,
de los críticos literarios,
de los académicos de la lengua,
de los profesores de Lengua y Literatura,
de los ilustres literatos,
de los escribidores...
Y, sobre todo, de mí mismo,
sálvame, Señor.


César Cantoni

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7.10.17

Daniel Filipe (A invenção do amor)





A INVENÇÃO DO AMOR



Em todas as esquinas da cidade
nas paredes dos bares à porta dos edifícios públicos nas
janelas dos autocarros
mesmo naquele muro arruinado por entre anúncios de apa-
relhos de rádio e detergentes
na vitrine da pequena loja onde não entra ninguém
no átrio da estação de caminhos de ferro que foi o lar da
nossa esperança de fuga
um cartaz denuncia o nosso amor

Em letras enormes do tamanho
do medo da solidão da angústia
um cartaz denuncia que um homem e uma mulher
se encontraram num bar de hotel
numa tarde de chuva
entre zunidos de conversa
e inventaram o amor com carácter de urgência
deixando cair dos ombros o fardo incómodo da monotonia
quotidiana

Um homem e uma mulher que tinham olhos e coração e
fome de ternura
e souberam entender-se sem palavras inúteis
Apenas o silêncio A descoberta A estranheza
de um sorriso natural e inesperado

Não saíram de mãos dadas para a humidade diurna
Despediram-se e cada um tomou um rumo diferente
embora subterraneamente unidos pela invenção conjunta
de um amor subitamente imperativo

Um homem uma mulher um cartaz de denúncia
colado em todas as esquinas da cidade
A rádio já falou A TV anuncia
iminente a captura A polícia de costumes avisada
procura os dois amantes nos becos e avenidas
Onde houver uma flor rubra e essencial
é possível que se escondam tremendo a cada batida na porta
fechada para o mundo

É preciso encontrá-los antes que seja tarde
Antes que o exemplo frutifique Antes
que a invenção do amor se processe em cadeia

Há pesadas sanções para os que auxiliarem os fugitivos
      (...)


Daniel Filipe

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6.10.17

Blanca Varela (Ao despertar)






Al despertar
me sorprendió la imagen que perdí ayer.
El mismo árbol en la mañana
y en la acequia
el pájaro que bebe
todo el oro del día.
Estamos vivos, quién lo duda,
el laurel, el ave, el agua
y yo, que miro y tengo sed.


Blanca Varela





Ao despertar
surpreendeu-me a imagem que ontem perdi.
A mesma árvore na manhã
e na levada
o pássaro que bebe
o oiro do dia.
Estamos vivos, ninguém duvida,
o loureiro, a ave, a água
e eu, que observo e tenho sede.


(Trad. A.M.)

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5.10.17

Octavio Paz (Primavera à vista)





PRIMAVERA A LA VISTA



Pulida claridad de piedra diáfana,
lisa frente de estatua sin memoria:
cielo de invierno, espacio reflejado
en otro más profundo y más vacío.

El mar respira apenas, brilla apenas.
Se ha parado la luz entre los árboles,
ejército dormido. Los despierta
el viento con banderas de follajes.

Nace del mar, asalta la colina,
oleaje sin cuerpo que revienta
contra los eucaliptos amarillos
y se derrama en ecos por el llano.

El día abre los ojos y penetra
en una primavera anticipada.
Todo lo que mis manos tocan, vuela.
Está lleno de pájaros el mundo.


Octavio Paz




Polida claridade de pedra diáfana,
lisa fronte de estátua sem memória:
céu de Inverno, espaço reflectido
em outro mais profundo e mais vazio.

Mal respira o mar, mal brilha,
parou a luz entre as árvores, exército
adormecido. O vento as acorda
com bandeiras de folhagens.

Nasce do mar, assalta a colina,
vaga sem corpo que rebenta
contra os eucaliptos amarelos
e se derrama em ecos pelo plaino.

Abre os olhos o dia e penetra
a Primavera antecipada.
Voa, tudo o que minhas mãos tocam,
está cheio de pássaros o mundo.


(Trad. A.M.)

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4.10.17

José Rentes de Carvalho (O Meças)





Alguém terá de lhe emprestar as palavras, porque as desconhece, mas se lhas tivessem ensinado seria incapaz de dizê-las, estonteado pelo remoinho, a vida a desfilar em ondas de desespero, ocasiões falhadas, sempre ele o que perde, a sofrer envergonhado, o que baixa os olhos e até de si próprio tem de fugir.

Quando pensa no que ficou para trás deveria usar o passado em vez do presente, mas pouco adianta que os verbos se conjuguem, o medo dá-lhe do tempo uma noção onde se funde o que foi e o que é, o que viu acontecer e as vezes que perdeu, horas sofre em que o garoto e o homem quase velho são um, igual neles a dor, enraivecidos ambos na mesma impotência.

Precisado de sossego, corre para ali, sem memória de quando lá foi a primeira vez, nem porquê, entregando-se à força que nele manda como bruxaria ou praga rogada.



J. RENTES DE CARVALHO
O Meças
(2006)

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> Uma crítica: Público (António Guerreiro)
   E 4-entrevistas-4: Observador / Sábado / Diário de Notícias / Expresso
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3.10.17

Nicanor Parra (Nossos maiores)





NUESTROS MAYORES



Eran más instruidos que nosotros
Sabían cómo se debe solicitar una gracia
Golpeándose el pecho desde luego
Con humildad
Con fe
Con esperanza
Poco se gana con escupir para arriba

Recuerdo bien a mi señora madre
Que Dios la tenga en su Santo Reino
Como también a mi abuela Rosario
Dios la tenga en su Santo Reino también
Arrodilladas ante el santísimo
Misericordia Dios mío misericordia

Pero la religión pasó de moda
Antes todos sabíamos ahuyentar al demonio
Hoy no tenemos la menor idea.


Nicanor Parra

[Otra iglesia]



Eram mais instruídos que nós
sabiam como se deve solicitar uma graça
batendo no peito desde logo
com humildade
com fé
com esperança
Pouco se ganha a cuspir para cima

Recordo bem a minha senhora mãe
que Deus a tenha em seu Santo Reino
como também minha avó Rosário
Deus a tenha também em seu Santo Reino
ajoelhadas ante o altíssimo
misericórdia meu Deus misericórdia

Mas a religião passou de moda
dantes todos sabiam afugentar o demónio
hoje não fazemos a mínima ideia

(Trad. A.M.)

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2.10.17

Mirta Rosenberg (Matéria etérea)





ETÉREA MATERIA



Los hijos son por lejos mi mayor revolución.

Dos veces orbité completa
como grávido planeta
alrededor del sol. Escribí nombres nuevos
en un renglón celeste, con inquietud,
alboroto, sedición.

Brindé por ellos con otras mujeres,
con whisky y con cerveza,
en el planeta donde brindamos las mujeres
por las cosas que crecen, y a pesar de ellas.

Feliz y desdichada, hice de mi revolución
una conquista, y una herida abierta
de aquellas veces que orbité completa.

La mantengo fresca para que entre en mí
cierto irreconocible aire familiar
que ahora mis hijos exhalan
con la mayor naturalidad.


Mirta Rosenberg




Os filhos são de longe a minha maior revolução.

Duas vezes orbitei completa
como grávido planeta
em volta do sol. Escrevi nomes novos
num caderno celeste, com inquietação,
alvoroço, sedição.

Brindei por eles com outras mulheres,
com uísque e cerveja,
no planeta onde brindam as mulheres
pelas coisas que crescem e apesar delas.

Feliz e desditosa, fiz-me da revolução
uma conquista e uma ferida aberta
daquelas vezes da órbita completa.

Mantenho-a fresca para em mim entrar
certo irreconhecível ar familiar
que agora meus filhos exalam
com a maior naturalidade.

(Trad. A.M.)


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1.10.17

José Agostinho Baptista (Distância)





DISTÂNCIA



A ausência é um arco de gelo suspenso
sobre as espáduas.
Os ossos cedem ao claro domínio dos
glaciares.
Desapareceram todos os perfumes,
todas as dálias.
Vivo como vivem os teus peixes cegos:
frio e nu ao fundo da noite,
caminhando  pelas bermas.


José Agostinho Baptista


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