29.11.20

Adília Lopes (Não gosto tanto de livros)

 



NÃO GOSTO TANTO DE LIVROS

  

Não gosto tanto
de livros
como Mallarmé
parece que gostava
eu não sou um livro
e quando me dizem
gosto muito de seus livros
gostava de poder dizer
como o poeta Cesariny
olha
eu gostava
é que tu gostasses de mim
os livros não são feitos
de carne e osso
e quando tenho
vontade de chorar
abrir um livro
não me chega
preciso de um abraço
mas graças a Deus
o mundo não é um livro
e o acaso não existe
no entanto gosto muito
de livros
e acredito na Ressurreição
dos livros
e acredito que no Céu
haja bibliotecas
e se possa ler e escrever. 

Adília Lopes

 .

27.11.20

Ángel Manuel Gómez Espada (Há vinte anos)

 


Hace veinte años el futuro era metalúrgico.
Desde luego, no era esta ciudad,
estas calles amarillas que fotografío,
estos cafés de debate y mercadillo.
Ni esta casa donde habito,
patrocinada por las repúblicas independientes de Ikea;
ni mi madre en una silla de ruedas,
viuda y con dos piernas como columnas jónicas;
ni mi hermano en el paro,
cosido a una incertidumbre
patrocinada por el Banco Santander;
ni los amigos tan lejos,
en los extrarradios de Europa.
Por supuesto, no entraba dentro de los planes
de aquel futuro siderúrgico y profiláctico
este trabajo que me abochorna y aletarga,
que se come mis memorias de domingo;
ni esta mascarilla que me proporciona
el oxígeno suficiente para seguir ejerciendo
el difícil arte del sueño;
ni una hermosa ahijada en Lyon
que enciende cualquier primavera
y que crece durante llamadas telefónicas.
Algunas certidumbres sí que estaban:
Lisboa, París, Roma, Pekín
y el dulce reencuentro con la nieve,
siempre bienvenida.
Pero de alguna manera tú sí estabas.
Comenzabas a mostrarte en aquella nebulosa,
a convertirte en lo que acabaste siendo:
esa melodía a la que uno siempre regresa,
como regresamos a Mozart o a Pessoa,
y que nos obliga a sentirnos cómodos
y en armonía con la vida,
por muy cenicienta que se nos presente,
agazapada entre nieblas y dudas.
Porque la vida es Luciano cantando Nessun Dorma
y no lo que asoma por los telediarios.
Es tu pure, o Principessa, Nella tua freda stanza,
y no caídas en las bolsas europeas,
cadáveres en Siria o Palestina,
matanzas en Boston o en Connecticut.
La vida es tu mano mostrándome el futuro,
semilla y certidumbre.

Ángel Manuel Gómez Espada

[Caja de tormentas]

 


Há vinte anos o futuro era metalúrgico.
Desde logo, não era esta cidade,
estas ruas amarelas que fotografo,
estes cafés de debate e de feira.
Nem esta casa onde moro,
patrocinada pelas repúblicas independentes da Ikea;
nem minha mãe numa cadeira de rodas,
viúva e com duas pernas como duas colunas jónicas;
nem meu irmão no desemprego,
abraçado a uma incerteza
patrocinada pelo Banco Santander;
nem os amigos tão longe,
na periferia da Europa.
Claro, não estava nos planos
daquele futuro siderúrgico e profilático
este trabalho que me aflige de calor e de sono
e que me come as lembranças de domingo;
nem esta máscara que me proporciona
o oxigénio bastante para continuar exercendo
a difícil arte do sonho;
nem uma bela afilhada em Lyon
que acende qualquer primavera
e que cresce durante as chamadas telefónicas.
Algumas certezas, sim, existiam:
Lisboa, Paris, Roma, Pequim
e o doce reencontro com a neve, sempre bem-vinda.
Mas de algum modo existias tu,
começavas a mostrar-te naquela nebulosa,
a converter-te no que acabaste por ser:
aquela melodia a que sempre se regressa,
como se regressa a Mozart e a Pessoa,
e que nos faz sentir-nos cómodos, de bem com a vida,
por muito cinzenta que se nos depare,
agachada entre névoas e dúvidas.
Porque a vida é Luciano cantando Nessun dorma
e não aquilo que se vê nos telejornais;
é tu pure, O principessa, Nella tua freda stanza,
e não as quedas nas bolsas europeias,
cadáveres na Síria ou na Palestina,
matanças em Boston ou no Connecticut.
A via é a tua mão a mostrar-me o futuro,
semente e certeza.


(Trad. A.M.)


>>  Hector Castilla (vários pp+info) / Monolito (entrevista) /  Enrique Falcó (vários pp+perfil) / Rua dos Anjos Pretos (blogue)

.

26.11.20

Rubén Darío (Tu és meu)

 


TÚ ERES MÍO, TÚ ERES MÍA



Niña hermosa que me humillas
con tus ojos grandes, bellos:
son para ellos, son para ellos
estas suaves redondillas.

Son dos soles, son dos llamas,
son la luz del claro día;
con su fuego, niña mía,
los corazones inflamas.

Y autores contemporáneos
dicen que hay ojos que prenden
ciertos chispazos que encienden
pistolas que rompen cráneos.

Rubén Darío

 

 

Nina formosa que me humilhas
com teus olhos grandes e belos:
são para eles, são para eles,
estas suaves redondilhas.

São dois sóis, duas chamas,
são a luz do claro dia;
com seu fogo, nina linda,
muitos corações inflamas.

E autores contemporâneos
dizem que há olhos que prendem,
certas faíscas que acendem,
pistolas que partem crâneos.


(Trad. A.M.)


>>  A media voz (35p) / A media voz 2 (60p)

.

24.11.20

Luís Miguel Nava (Basalto)


 


BASALTO

 

Agora que se o mar ainda
rebenta é por acção da memória, arrancam-me
basalto ao coração ondas fortíssimas.

Ainda o vejo às vezes por aí, olhamo-nos
então como se à boca
nos viesse o sabor do nosso próprio coração,
mas pouco há a dizer acerca disso.


Luís Miguel Nava

 .

22.11.20

Belén Reyes (A morte é ilegal)

 


LA MUERTE ES ILEGAL

 

La muerte es ilegal
Y nadie dice nada
Ni una denuncia, un grito
Ni un poema pancarta
Ni un juez que lo investigue
La vida es una estafa.
Nacemos sin permiso
Y crecemos sin ganas
Si soñamos nos duermen
Si sentimos nos talan
Somos sauces llorones
Arrastrando las lagrimas

Morirse es un delito
Nacer es una estafa
Y todos calladitos
Tragándonos el alma
Envejecer sin ruido
Sin molestar palmarla
A escondidas, solitos
Que los hijos trabajan
Que no pidan permisos
que aquí nunca se aparca
y el parking  vale caro

Solo soy una carga
quiero morirme ya
este fin de semana
cuando libran los hijos
no molestar, sin drama
irme de aquí, vergüenza
de enfermar, dar la lata
no salpicar dolor,
que me laven sin ganas
el culo dos extraños
mientras hablan del barsa.

La muerte es ilegal
Y nadie dice nada


Belén Reyes

 

 

A morte é ilegal
E ninguém diz nada

Nem uma denúncia, um grito
Nem um poema ou cartaz
Nem umjuiz que investigue
A vida é uma cilada.
Nascemos sem licença
E crescemos sem vontade
Se sonhamos adormecem-nos
Se sentimos nos calcam
Somos salgueiros chorões
A arrastar as lágrimas

Morrer é um delito
Nascer uma cilada
E todos caladinhos
A engolirmos a alma
Envelhecer sem barulho
Bater a bota, não incomodar
Sozinhos, escondidos
Que os filhos trabalham
Que não peçam dispensa
que aqui não se aparca
e o parque custa caro

Sou apenas um carrego
quero morrer aqui já
este fim de semana
na folga dos filhos
sem drama, não incomodar
ir-me daqui, vergonha
de adoecer, de chatear
não esparrinhar a dor
que lavem sem vontade
o cu dos estranhos
enquanto discutem a bola.

A morte é ilegal
E ninguém diz nada


(Trad. A.M.)

.

21.11.20

Joaquín Antonio Peñalosa (Embora seja noite)

 


AUNQUE ES DE NOCHE

 

No es mía la noche
de vasos rojos y de besos rojos.

 Ni siquiera la noche que amortaja
conciencia y ojos en el camposanto del sueño.

 Mía es la noche del suero
que eterniza la gota y el quejido

 La noche del asfalto del trailer
que soporta con café y con aspirinas.

 La noche de las redes que acechan
los jardines flotantes de los peces.

 La noche de los relâmpagos
que aluzan entre abismos
el paso de la mula y del indio.

La noche de vendimia de mujeres,
a elegir esclavas a precios razonables. 

Mía la noche con olor laboral de obrero;
si la fábrica para, para el universo,
¿y el obrero, qué? 

La noche rodante del metro
donde los sin-techo cabecean,
el mismo tabaco, la misma ruta.

Mía la noche de los barrotes,
prohibida la entrada a la luna y la justicia.
Tantos son los expertos de la noche,
tan pocos los centinelas del alba.


Joaquín Antonio Peñalosa

 

 

Não é minha a noite
de copos e beijos vermelhos.

Nem mesmo a noite que amortalha
olhos e consciência no cemitério do sonho.

Minha é a noite do soro
que eterniza a gota e o queixume.

A noite do asfalto do trailer
que vai com café e com aspirinas.

A noite das redes que envolvem
os jardins flutuantes dos peixes.

A noite dos relâmpagos
que alumiam por entre abismos
os passos da mula e do índio.

A noite de vindima das mulheres,
escolhendo escravas a bom preço.

Minha a noite com cheiro de operário;
parando a fábrica, pára o mundo todo,
e o operário, depois?

A noite circulante do metro,
onde cabeceiam os sem-abrigo,
o mesmo tabaco, a mesma rota.

Minha a noite dos barrotes,
entrada proibida na lua e na justiça.
Tantos são os especialistas da noite
e tão poucas as sentinelas da aurora.


(Trad. A.M.)

.

19.11.20

Jorge Sousa Braga (Dióspiros)



DIÓSPIROS




Há frutos que é preciso
acariciar
com os dedos com
a língua

e só depois
muito depois

se deixam morder


Jorge Sousa Braga

[Acontecimentos]

___________________

Dióspiros:
Francisco Duarte Mangas / A.M.Pires Cabral

 .

17.11.20

Manuel Rico (Madrid, 11 Março)

 


MADRID: 11 DE MARZO

 

Marzo desnivelado por las cifras
del desaliento. Marzo de muerte,
triste marzo de trenes y extrarradios marchitos,
marzo de sueños rotos y niños deshabitados,
de pronombres sin nombre, de apellidos
quebrados y relojes sin hora, marzo de los teléfonos
enmudecidos.
Mi ciudad asolada. Mis tierras y mis trenes,
asolados, mis ojos y mis manos
y mis brazos,
asolados. Muerte sembrada bajo la luz
de un Madrid lateral
hecho de andenes periféricos, de seres menesterosos,
de mujeres crecidas en la sombra diaria
del tiempo inabarcable del trabajo,
de hombres cultivados
en el silencio anónimo de las factorías,
de humildes bachilleres y de párvulos,
de viejos azorados por noticias de muerte,
de bares conmovidos por la niebla y la sangre,
de juguetes sin niño,
de huérfanos sin ira,
de vacías acequias,
de fogatas sin lumbre.

Madrid de hospitales, de lutos y de marzo.
Capital de la niebla y del dolor. Ciudad de los estanques
del silencio.
Madrid desbaratado y mío. Madrid nuestro.
Como los muertos, nuestro.
Dueño de un mes de marzo
descolorido y turbio, pero nuestro.
Entre muertos y lágrimas,
es más nuestra y cercana la ciudad. También más triste.


Manuel Rico

 

 

 

Março desnivelado pelas cifras
do desalento. Março de morte,
triste Março de comboios e murchos arrabaldes,
Março de sonhos desfeitos e ninos desabitados,
de pronomes sem nome, de apelidos
quebrados e relógios sem hora, Março dos telefones
emudecidos.
Minha cidade assolada. Minhas terras e comboios,
assolados, meus olhos e minhas mãos
e meus braços,
assolados. Morte semeada
sob a  luz de um Madrid marginal
de plataformas periféricas,
de seres carecidos,
de mulheres crescidas na sombra diária
do tempo de trabalho,
de homens cultivados
no silêncio anónimo das fábricas,
de humildes bacharéis e arraia-miúda,
de velhos assustados por notícias de morte,
de bares comovidos pela névoa e sangue,
de brinquedos sem criança,
de órfãos sem ira,
de vazias levadas,
de fogueiras sem lume.

Madrid de hospitais, de lutos e de Março.
Capital da dor e da névoa. Cidade dos poços
do silêncio.
Madrid desbaratado e meu, Madrid nosso.
Como os mortos, nosso.
Dono de um mês de Março
descolorido e turvo, mas nosso.
Entre mortos e lágrimas,
é mais nossa e mais íntima a cidade.
Mais triste também.


(Trad. A.M.)

.

16.11.20

Fernando Beltrán (O que sabem os cães)

 


Qué saben los perros que no sabemos nosotros.
Qué conocen, qué intuyen, qué nos quieren decir.
Esos ojos tan tristes.
Por qué nos miran fijo y tan adentro
como si al tiempo de querernos tanto
existiera algo nuestro
que no acabaran nunca de entender.
Por qué entonces su entrega,
su llanto inconsolable cuando nos ven marchar.
Por qué después, al regresar, tan sólo a ellos
les confiamos los pasos que a nadie más decimos,
si esos ojos tan tristes lo irán contando todo por ahí.
Por qué nos aman tanto
si saben de nosotros tantas cosas
que es mejor no saber.
Por qué se dejan siempre poner nombre.
Por qué temen al trueno.
Por qué no son cobardes si se mueren de pánico.
Por qué ladran a veces en mitad de la noche.
Por qué amanecen luego
tan contentos, aguardando en la puerta,
con incansables ganas de vivir.
Por qué saben que el juego
es la única tregua que nos queda.
Por qué son como niños, o eso al menos pensamos,
como si no fuera posible compaginar ternura 
y madurez.
Qué bondad descubrieron en nosotros
que no fuimos capaces
de dar a los demás.
Por qué mueren un día y nadie entiende
el inmenso dolor del que ya sabe
que al perderles también pierde
lo mejor de sí mismo.
Ese trozo de ser que nuestros perros,
cuando nos miran fijo,
de algún modo descubren,
aunque también que hay algo de nosotros
que no acabaron nunca de entender. 

Fernando Beltrán

 

  

O que sabem os cães, que nós não sabemos?
O que conhecem, o que intuem, o que nos querem dizer?
Aqueles olhos tão tristes,
porque nos miram fitamente e tão dentro,
como se com querer-nos tanto
houvesse algo em nós que não conseguem entender?
Porquê então sua entrega,
seu pranto inconsolável quando nos vêem partir?
E porque é que depois, ao voltar, a eles só confiamos
os passos que a mais ninguém dizemos,
se aqueles olhos tão tristes vão espalhar tudo por aí?
Porque nos amam tanto,
sabendo de nós tanta coisa 
que era melhor não saber?
Porque consentem os nomes que lhes pomos,
e têm medo do trovão?
Porque não são cobardes, morrendo de pânico,
e ladram às vezes a meio da noite?
Porque amanhecem depois tão contentes 
e esperam à porta
com uma ânsia danada de viver?
Porque sabem que a festa
é a única trégua que nos resta.
Porque são como crianças, ou assim nós pensamos,
como se não pudessem compaginar-se ternura
e maturidade.
Que bondade nos descobriram
que nós não fomos capazes 
de dar aos outros?
Porque morrem um dia e não se entende 
a imensa dor de quem sabe
que ao perdê-los perde também 
o melhor de si mesmo?
Aquela parte de nós que os cães,
ao mirar-nos fitamente,
de algum modo descobrem,
mas também que há algo de nós
que não conseguem nunca entender.

 
(Trad. A.M.)

 .

14.11.20

Manoel de Barros (No descomeço era o verbo)

 


No descomeço era o verbo.
Só depois é que veio o delírio do verbo.
O delírio do verbo estava no começo, lá
onde a criança diz: Eu escuto a cor dos
passarinhos.
A criança não sabe que o verbo escutar não
funciona para cor, mas para som.
Então se a criança muda a função de um
verbo, ele delira.
E pois.
Em poesia que é voz de poeta, que é a voz
de fazer nascimentos —
O verbo tem que pegar delírio.

Manoel de Barros

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12.11.20

Joan Margarit (Idade no vermelho)



EDAD ROJA

  

Tanto tiempo has tardado en aprender
que llegas tarde al gran amor:
Que nunca habrás vivido una edad de oro.
Las rosas de Ronsard
nunca serán perfume en tu mirada,
ningún otoño habrá de deshojar,
en los brazos de nadie, lentos pétalos.
Con el olvido tapas los espejos
igual que acostumbraban en las casas
donde había un difunto.
No vuelven las mujeres con las cuales
cambiabas años de tu soledad
por un fugaz momento de ternura.
Tan ardiente es la vida en el otoño,
que en las horas de angustia no podrás
amar ni a la mujer que ya has perdido.
 

Joan Margarit

 

 

Tanto tempo levaste a aprender,
que chegas tarde ao grande amor:
Que nunca viveste uma idade de ouro.
As rosas de Ronsard
nunca serão perfume em teu olhar,
nenhum Outono desfolhará
lentas pétalas nos braços de alguém.
Tapas os espelhos com o olvido
tal como faziam nas casas
onde havia defunto.
Não voltam as mulheres com quem
trocavas teus anos de solidão
por um momento fugaz de ternura.
Tão ardente é a vida no Outono
que não poderás amar nas horas de angústia
nem sequer a mulher que perdeste. 

(Trad. A.M.)

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11.11.20

Javier Salvago (Retrato)

 


RETRATO

 

 Habla poco, y a muy pocos
se atreve a llamar amigos,
pasa de largo si hay bulla,
no visita a sus vecinos, 

cruza la calle fumando,
siempre dentro de sí mismo,
viendo el mundo desde fuera
igual que quien lee un libro, 

atrapado —sin salida—
en su propio laberinto,
pero ni sordo ni ciego
ni indiferente ni frío: 

un solitario que vive
con una mujer y un niño.

 
Javier Salvago

 



Fala pouco, e a muito poucos
se atreve a chamar amigos,
passa ao largo se há barulho,
não visita sequer os vizinhos,

atravessa a rua a fumar,
sempre ensimesmado,
vendo o mundo de fora
tal como quem lê um livro.

apanhado - sem saída -
no seu próprio labirinto,
mas nem surdo nem cego
nem indiferente nem frio:

um solitário que vive
com uma mulher e um miúdo.

 
(Trad. A.M.)


> Outra versão: Do Trapézio (L.P.)

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9.11.20

A.M.Pires Cabral (Diospireiro)



DIOSPIREIRO

 

Eis o que o Outono fez:
pegou em brasas frias
que arredondou e reacendeu
e depois dispôs ao calha no diospireiro,
ao mesmo tempo que
removia as folhas com a volúpia lenta
de quem despe um corpo que é preciso amar.

Resultado: uma árvore às avessas
mas uma árvore que amamos por ser às avessas
— tão árvore e tão às avessas.

Só o Outono seria capaz
de tamanha e tão doida e sonora fantasia.

(Que o Inverno, resmungando, logo apagará.)


A.M.Pires Cabral

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7.11.20

Javier Lasheras (Ternura)



TERNURA




Dame la mano, vuelve a la cama
haz de estas sábanas polvo estelar
y con savia y saliva mójalo todo.

Márcame la piel con tu aliento
no abandones, no seas invisible
y devórame hasta el ocaso.

Maldita sea, dame la mano
o nos crecerán muñones
donde debiera anidar ternura.


Javier Lasheras

[Apología de la luz]

 

 

Dá-me a tua mão, volta para a cama,
faz dos lençóis pó de estrelas,
inunda tudo de seiva e saliva.

Marca-me a pele com teu hálito,
não fujas, nem te faças invisível,
devora-me até ao ocaso.

Maldita, dá-me a tua mão
ou hão-de nascer-nos cotos
onde devia aninhar-se a ternura.


(Trad. A.M.)

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6.11.20

Javier Egea (Quando disseste basta)

 


Cuando dijiste ¡basta! era diciembre
y sólo tú templabas el vacío.

Pensé que nada estaba,
que se perdió contigo la llave de la vida.

Después miré a la calle
y era la misma puerta para todos:
la vida no existía.

Desde el mismo cerrojo
la herrumbre del expolio nos miraba.


Javier Egea

 

 

Quando disseste ‘basta!’ era Dezembro
e só tu temperavas o vazio.

Pensei que nada mais havia,
que se perdera contigo a chave da vida.

Depois olhei para a rua
e era a mesma porta para todos:
a vida não existia.

Do próprio ferrolho
a ferrugem da discórdia olhava para nós.


(Trad. A.M.)

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4.11.20

António Barahona (Remember)



REMEMBER 

 

Abri o rádio de pilhas pirilampos 
a música da feira de Paço d'Arcos
mudámos entre duas cervejas com
açorda de marisco atrás da camioneta
os móveis empilhados torre de Pisa
que havia no escritório do meu pai
na estrada marginal às gargalhadas
A casa era muito dividida
com perspectivas dúbias com djinns
que corriam atrás dos cães
pilhas de pirilampos empilhados
os móveis quase a cair para
o mar iluminado pelos teus dentes
onde nascia o Sol quando te beijava

 

António Barahona

[Arquivo de cabeceira]

 .

2.11.20

Belén Reyes (A Gloria Fuertes)

 



A GLORIA FUERTES



Gloria Fuertes que estás en los cielos
con el Dios del anciano del parque,
con el Dios que tejiste en tus versos…
con el dios que te hizo payaso
Gloria Fuertes que estás en los cielos…

Gloria Fuertes que estás en los niños
en los hombres y mujeres del pueblo.
Gloria Fuertes que un mes de noviembre
te escapaste sin boli y cuaderno.
Gloria Fuertes que estás donde Philips
donde Chelo, Asunción y otros muertos
Gloria Fuertes que ya sabes todo
lo que pasa después del silencio.

Gloria Fuertes que estás en mi vida
te has llevado un buen trozo del pecho.
Gloria Fuertes que estás donde sea,
no me basta la voz del recuerdo…
Yo te quiero en tu casa y tus cosas
con un whisky, un pitillo y un verso.


Belén Reyes

 

 

 

Gloria Fuertes que estás no céu
com o Deus do velhinho do parque
com o Deus que teceste em teus versos…
com o deus que fez de ti palhaço
Gloria Fuertes que estás no céu…

Gloria Fuertes que estás nas crianças
nos homens e mulheres do povo
Gloria Fuertes que num mês de Novembro
te escapaste sem caderno nem lápis.
Gloria Fuertes que estás onde está Philips
mais Chelo, Asunción e outros mortos
Gloria Fuertes que já sabes tudo
o que vem depois do silêncio.

Gloria Fuertes que me acompanhas em vida
levaste-me um bocado do peito.
Gloria Fuertes que estás onde estejas,
não me basta a voz da lembrança…
Quero-te em casa, com tuas coisas,
um uísque, um cigarro e um verso.


(Trad. A.M.)


>>  Poesi.as (36p) / Belen Reyes (blogue)

.


1.11.20

Jaime Sabines (Se eu tivesse de morrer)

 


Si hubiera de morir dentro de unos instantes, escribiría estas sabias palabras: árbol del pan y de la miel, ruibarbo, cocacola, zonite, cruz gamada. Y me echaría a llorar. 

Uno puede llorar hasta con la palabra «excusado» si tiene ganas de llorar.

 Y esto es lo que hoy me pasa. Estoy dispuesto a perder hasta las uñas, a sacarme los ojos y exprimirlos como limones sobre la taza de café. («Te convido a una taza de café con cascaritas de ojo, corazón mío»).

 Antes de que caiga sobre mi lengua el hielo del silencio, antes de que se raje mi garganta y mi corazón se desplome como una bolsa de cuero, quiero decirte, vida mía, lo agradecido que estoy, por este hígado estupendo que me dejó comer todas tus rosas, el día que entré a tu jardín oculto sin que nadie me viera.

 Lo recuerdo. Me llené el corazón de diamantes —que son estrellas caídas y envejecidas en el polvo de la tierra— y lo anduve sonando como una sonaja mientras reía. No tengo otro rencor que el que tengo, y eso porque pude nacer antes y no lo hiciste.

 No pongas el amor en mis manos como un pájaro muerto.

 

JAIME SABINES
Diario semanario y poemas en prosa
(1961)

[Poesi.as]

 

 

Se eu tivesse de morrer agora mesmo, escrevia estas palavras sábias: árvore do pão e do mel, ruibarbo, coca-cola, zonite, cruz gamada. E punha-me a chorar. 

Uma pessoa pode chorar até com a palavra "escusado", se tiver vontade de chorar. 

E é o que hoje me acontece a mim. Estou disposto a ficar até sem as unhas, a arrancar os olhos e espremê-los como limões na chávena de café. ('Convido-te, coração, para uma chávena de café com raspas de olho'). 

Antes que me caia na língua o gelo do silêncio, antes que me rache a garganta e o coração se desfaça como uma saca de couro, queria dizer-te, vida minha, como estou agradecido por este fígado estupendo, que me deixou comer as tuas rosas todas, no dia em que entrei sem ninguém me ver no teu jardim oculto. 

Lembro-me. Atulhei o coração de diamantes - que são estrelas caídas e envelhecidas no pó da terra – e andei por aí a tocá-lo e a divertir-me. Não tenho de rancor mais do que o que tenho, isto porque pude nascer antes, mas tu não.

 Não me ponhas o amor nas mãos como um pássaro morto.

 (Trad. A.M.)

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