30.11.19

Francisco Sá de Miranda (De passarem aves)




DE PASSAREM AVES



Das aves passam as sombras,
um momento, no chão, perto de mim.
No tardo Verso que as trouxe e as demora,
por que beirais não sei
onde se abrigam piando
como ao passar chilreiam.

Um momento só. Rápidas voam!
E a vida em que regressam de outras terras
não é tão rápida: fiquei olhando
as sombras não, mas a memória delas,
das sombras não, mas de passarem aves.


Sá de Miranda

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29.11.19

Ana Pérez Cañamares (Meu pai)





MI PADRE LUCÍA JUNTO AL OMÓPLATO
una esquirla de metralla.
Apenas un niño cuando los aviones
atacaron al ganado que cuidaba
y que nunca sirvió de suministro
para los soldados republicanos.

De pequeña yo jugaba con ella
la desplazaba unos milímetros
con mi dedo omnipotente.
Y al tocarla escuchaba los aviones
veía a los terneros reventados
-el terror en sus ojos suplicantes-
y un niño al que la muerte
marca con su hierro.

Mi padre cargaba en sus espaldas
una guerra que no terminó nunca.


Ana Pérez Cañamares




Meu pai tinha num ombro
uma lasca de metralha.
Era quase uma criança quando os aviões
atacaram o gado que ele guardava
e que não era para abastecer
os soldados republicanos.

Eu brincava com ela em pequena
e mexia-a alguns milímetros
com meu dedo omnipotente.
E ao tocar-lhe escutava os aviões,
via os bezerros rebentados
-com o terror nos olhos suplicantes-
e um menino marcado
pela morte com seu ferro.

Essa guerra que meu pai trazia às costas
não terminou nunca.

(Trad. A.M.)

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27.11.19

Amalia Bautista (A mulher do soldado)






LA MUJER DEL SOLDADO



Le recibí llorando de alegría.
Regresaba tan sucio y tan hambriento
que a cualquiera le habría dado asco.
Sucio de sangre propia y extranjera
el uniforme; hambrienta la mirada
de un cuerpo de mujer que le esperase.
Besé el barro y la sangre de su boca
y lamí las heridas como un perro.
Le amaba. No podía darme asco.
No me importó siquiera que rompiese
con un brusco deleite aquellas medias
de seda que agotaron mis ahorros.
No sería capaz de preguntarle
si tuvo miedo y si pensó en la huida.
Le tenía de nuevo. Había vuelto.
Y todo lo demás no era importante.

Amalia Bautista





Recebi-o a chorar de alegria.
Regressava tão sujo e tão faminto
que dava nojo a qualquer um.
Sujo na farda, de sangue próprio
e alheio; faminto nos olhos
de um corpo de mulher à espera.
Beijei-lhe a lama e o sangue da boca
e lambi-lhe as feridas como um cão.
Amava-o, não podia fazer-me nojo.
Nem sequer me importou que rasgasse
com brusco deleite as meias de seda
que me esturraram as economias.
Não conseguia perguntar-lhe
se teve medo e pensou em fugir.
De novo o tinha. Regressado.
O resto não importava.

(Trad. A.M.)


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25.11.19

Daniel Faria (As manhãs)





AS MANHÃS



Das manhãs
apenas levarei a tua voz
Despovoada

Sem promessas
sem barcos
E sem casas

Não levarei o orvalho das ameias
Não levarei o pulso das ramadas

Da tua voz
levarei os sítios das mimosas
Apenas os sítios das mimosas

As pedras
As nuvens
O teu canto

Levarei manhãs
E madrugadas


Daniel Faria

[Acontecimentos]

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24.11.19

Aurora Luque (Eau de parfum)





EAU DE PARFUM



De la infancia, el olor    
del musgo en las acequias, del barro, de las moras         
y la extrema violencia de aprenderse.    
              
Del mar, la última nota 
de la última ola desplegada
antes de regresar y convencernos           
de que no habrá sirenas.                           

De la noche, las leves veladuras               
de un perfume italiano 
todavía de moda.                          

De tu cuerpo, el aroma               
de libro de aventuras
vuelto a leer; pero también de adelfas  
desoladas y ardiendo.                  

Huele a vida quemada.                

Aurora Luque



Da infância, o cheiro
do musgo nas levadas, da lama, das amoras
e a violência extrema de aprender.

Do mar, a última nota
da última onda desdobrada
antes da volta, teimando
que sereias não existem.

Da noite, a ligeira fragrância
de um perfume italiano
sempre na moda.

De teu corpo, o aroma
de livro de aventuras
em nova leitura; mas também de
loendros desolados, a arder.

Cheira a vida queimada.

(Trad. A.M.)



>>  A media voz (25p) / Cervantes (anto+perfil+biblio)

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22.11.19

Alfredo Buxán (Cada dia)





CADA DIA



É estranho chegar aos sessenta
para entender - mais ou menos - o mistério
da vida.
Ao contrário do esperado,
a escuridão vai-se esfumando
como a doce névoa da infância.
É mais fácil distinguir a beleza
que mora no desvão das horas.
Cada sorriso cobra seu valor
de repente, cada palavra seu eco
revelador na alma.
Estar vivo
basta. Não há já ameaças
nem batalhas para perder o tempo,
apenas o simples pulsar da vida
que se ajusta a nós como os passos
ao caminho, como a mão ao toque
da pele mais próxima ou mais amada.
Apenas um destino humilde que se cumpre.


ALFREDO BUXÁN
La transparencia
Cadernos de Néboa-3
(2012)

(Trad. A.M.)

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20.11.19

A.M.Pires Cabral (Outono-III)





OUTONO-III



Indiferente a tanta luz,
tantos e tão mutuamente desmentidos
farrapos de cor a adejar pelas encostas,
tanto tráfego de cestos e tesouras,
tantos risos, ordens, recriminações,
tanto cheiro a mosto, estevas e suor

– o rio segue vagaroso o seu destino.

Que não é, como se sabe, perder tempo
a namorar as margens.


A.M.PIRES CABRAL
Gaveta do Fundo
(2013)

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19.11.19

Alejandra Pizarnik (Cuidado com as palavras)





Cuidado con las palabras
(dijo)
tienen filo
te cortarán la lengua
cuidado
no despertar a las palabras
acuéstate en las arenas negras
y que el mar te entierre
y que los cuervos se suiciden en tus ojos cerrados
cuídate
no tientes a los ángeles de las vocales
no atraigas frases
poemas
versos
no tienes nada que decir
nada que defender
sueña sueña que no estás aquí
que ya te has ido
que todo ha terminado
´

Alejandra Pizarnik

[Marcelo Leites]




Cuidado com as palavras
(disse)
são afiadas
e cortam-te a língua
cuidado
não acordes as palavras
deita-te na areia
e o mar que te sepulte
e os corvos se suicidem nos teus olhos fechados
cautela
não tentes os anjos das vogais
não atraías frases
poemas
versos
não tens nada para dizer
nada para defender
sonha sonha que não estás aqui
que já te foste
que tudo acabou

(Trad. A.M.)

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17.11.19

Kirmen Uribe (Maio)





MAYO



Mira, ha entrado mayo,
ha extendido su párpado azul sobre el puerto.
Ven, hace tiempo que no sé de ti,
se te ve tembloroso, como esos gatitos que ahogamos siendo niños.
Ven, y hablaremos de las cosas de siempre,
del valor que tiene ser amable,
de la necesidad de arreglárselas con las dudas,
de cómo llenar los huecos que tenemos dentro.
Ven, siente en tu rostro la mañana,
cuando estamos tristes, todo nos parece oscuro;
cuando estamos fuertes, el mundo se desmigaja.
Cada uno de nosotros guarda algo desconocido de las vidas ajenas,
sea un secreto, un error o un gesto.
Ven y pondremos verdes a los vencedores,
saltaremos desde el puente riéndonos de nosotros mismos.
Contemplaremos en silencio las grúas del puerto,
porque estar juntos en silencio es
la mejor prueba de la amistad.
Vente conmigo, quiero cambiar de país,
dejar este cuerpo mío a un lado
y meterme contigo en una concha,
con nuestra pequeñez, como los bígaros.
Ven, te espero,
continuaremos la historia interrumpida hace un año,
como si no tuvieran un círculo más
los abedules blancos de la rivera.


Kirmen Uribe



Olha, entrou Maio,
estendendo sobre o porto sua pálpebra azul.
Anda, há que tempos não sei de ti,
a tremer, como esses gatitos que afogamos em pequenos.
Anda, falaremos do costume,
do valor de ser amável,
da necessidade de nos governarmos com as dúvidas,
de como encher os vazios que temos por dentro.
Anda, sente a manhã em teu rosto,
quando estamos tristes, tudo nos parece escuro;
quando estamos fortes, o mundo parece que se esmigalha.
Cada qual guarda algo desconhecido das vidas alheias,
seja um segredo, um gesto, um erro.
Anda, coroaremos de louros os vencedores,
saltaremos de cima da ponte rindo de nós mesmos.
Contemplaremos em silêncio as gruas do porto,
porque estarmos juntos em silêncio
é a melhor prova da amizade.
Anda comigo, quero trocar de país,
deixar de lado este corpo meu,
meter-me contigo numa concha,
assim pequenos, como os búzios.
Anda, que eu espero-te,
continuaremos a conversa de há um ano,
como se não tivessem no tronco mais um círculo
as bétulas brancas da ribeira.

(Trad. A.M.)




>>  Kirmen Uribe (sítio/ 5p) / Wikipedia
.

15.11.19

Valter Hugo Mãe (Brincadeiras)




BRINCADEIRAS




brincávamos a cair nos braços
um do outro como faziam as actrizes
nos filmes com marlon brando e
suspirávamos sem saber habituar o
coração à dor

o amor um pelo outro como se a desgraça
nos servisse bem o peito todo em movimento
a vida podia durar um dia

doíam-me os braços e tu caías uma e outra vez
distante eu era um lugar abandonado
querias culpar-me por ser triste de outro modo
lento convicto culpado fui o primeiro a dizer que
amar é afeiçoar o corpo ao perigo

a minha mãe avisava valter tem cuidado
não brinques assim vais partir uma perna
vais partir a cabeça vais partir o coração
estava certa foi tudo verdade


Valter Hugo Mãe

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13.11.19

Alfonso Brezmes (Eu, sem mim)





YO, SIN MÍ



Todo lo que tacho habla por mí.
Lo que escribo me subraya, grita,
es lo que yo quiero que se vea,
mas mi verdad es lo que no digo,
mi negativo fiel, lo que otro dice
siempre por mí mejor que yo.
Yo soy entonces el poema
que el silencio escribe en mi lugar.

Alfonso Brezmes





Tudo o que apago fala por mim.
Aquilo que escrevo sublinha-me, grita,
é aquilo que eu quero se veja,
mas minha verdade é o que eu não digo,
meu negativo fiel, o que outro diz
por mim sempre melhor do que eu.
Eu sou então o poema
que o silêncio escreve em vez de mim.

(Trad. A.M.)


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12.11.19

Vicente Gallego (Maneiras de escutar um blues)




MANERAS DE ESCUTAR UN BLUES



Es hermosa esta noche de verano,
aunque no más hermosa
que cualquier otra noche de verano.
Es hermosa esta noche en que estoy solo,
y fumo, y he dejado
en penumbra la casa mientras suena
un dulce y triste blues,
un blues tan triste y dulce como otros.

Nada en mí, ni en la noche, ni en la música,
se diría especial, y sin embargo
existe algo muy hondo en esas cosas
que parecen sencillas:
una extraña grandeza que no acaba
de ser exaltación, tragedia, paz,
pero que es todo eso, y es también
un sentir claramente
que para que esto ocurra ha sido necesario
apurar estos años, acumular recuerdos,
haber ganado
y haber perdido tantas cosas.
Para que este piano suene así,
para temblar así con esta música,
ha sido necesario
ir llenándola poco a poco
de belleza y de daño, ir llenándola
con nuestra propia vida, para que se parezca
a nuestra propia vida, y suene así:
tan insignificante
y tan grande, tan triste, tan hermosa.


Vicente Gallego

[Life vest under your seat]





Bela, esta noite de Verão,
mas não mais bela
que outra qualquer noite de Verão.
Bela esta noite em que estou sozinho,
a fumar, e pus a casa
em penumbra, enquanto toca
um blues doce e triste,
um blues tão triste e doce como outros.

Nada se diria especial, em mim, na noite
ou na música, e contudo
há algo profundo nestas coisas
que parecem simples,
uma estranha grandeza que não chega
a ser exaltação, tragédia, paz,
mas é tudo isso, e é também
um sentir claramente
que para isto acontecer foi necessário
apurar estes anos todos, acumular lembranças,
ganhar
e perder tantas coisas.
Para este piano soar assim,
para estremecer assim com esta música,
foi preciso
ir enchendo-a pouco a pouco
de beleza e sofrimento, enchendo-a
da nossa vida, para se parecer
com a nossa própria vida, e soar assim,
tão insignificante
e tão grande, tão triste, tão bela.

(Trad. A.M.)

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10.11.19

8.11.19

Vanesa Pérez-Sauquillo (Escuto os latidos)





Escucho los ladridos, distintamente,
pero nada sé de ese perro que arde
ni del dibujo de su huella por la tierra abrasada.

Reconozco a los que lo han mirado
frente a frente. Escucho sus historias.
He pasado varias veces la mano
ante sus ojos blancos desde entonces
y he sentido una llama calentarme los dedos.

Pero yo sólo escucho los ladridos.
Incluso cuando salen de mi boca.

Nada sé de poesía.


Vanesa Pérez-Sauquillo




Escuto os latidos, distintamente,
mas nada sei desse cachorro que arde
nem do desenho do seu rasto na terra abrasada.

Reconheço aqueles que o olharam
frente a frente. Ouço as suas histórias.
Passei várias vezes a mão
nos seus olhos brancos desde então
e senti uma chama que me aquecia os dedos.

Mas eu só escuto os latidos.
Mesmo quando me saem da boca.

Nada sei de poesia.

(Trad. A.M.)

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7.11.19

Valeria Pariso (Dorme, dorida minha)





(21)

Dorme, dorida minha.

É justiça poética
se não há esquecimento.



VALERIA PARISO
Del otro lado de la noche
(2015)

(Trad. A.M.)

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5.11.19

António Cabral (Sob este céu de chumbo)




SOB ESTE CÉU DE CHUMBO



Seis graus abaixo de zero
em Trás-os-Montes.
Muito gostava de ver um poeta formalista,
sob este céu de chumbo
a escrever o seu versinho.


ANTÓNIO CABRAL
Emigração Clandestina
(1977)

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4.11.19

Uberto Stabile (Exigências da idade)





EXIGENCIAS DE LA EDAD


Dicen que lo último que se pierde es la esperanza,
 pero si ya has perdido el sentido del humor,
 ¿de qué te sirve la esperanza?
 Te doblo la edad
 duermo la mitad de horas que tu
 fumo tres veces más
 gano cada día la paciencia que tu pierdes a diario,
 y aún piensas que somos almas gemelas.
 Después del amor siempre llega el sueño
 y mientras tu roncas yo devoro cigarrillos,
 tu ansiedad tiene un límite
 la mía un final.
 Cuando pierdas el sueño
descubrirás que el amor es siempre
 otra cosa,
 lo que para ti es un mito
 para mi es sólo una leyenda.
 Es la edad la que no perdona
 no admite créditos, devoluciones ni transferencias,
 podemos compartir una vida
 pero de la muerte nos tendremos que reír a solas.


Uberto Stabile




Dizem que a última coisa a perder-se é a esperança,
mas se tiveres perdido o sentido de humor,
de que te serve a esperança?
Tenho o dobro da idade
durmo metade de ti
fumo o triplo
ganho dia a dia a paciência que tu perdes,
e ainda dizes que somos almas gémeas.
Após o amor vem sempre o sono
e enquanto tu roncas eu devoro cigarros,
a tua ansiedade tem um limite
a minha tem um termo.
Quando perderes o sono
verás que o amor é sempre outra coisa,
o que é para ti um mito
para mim é só uma lenda.
É a idade que não perdoa
não admite créditos, devoluções, nem transferências,
podemos partilhar a vida
mas da morte temos de nos rir a sós.


(Trad. A.M.)

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2.11.19

Tom Maver (Voltei a casa hoje)





Hoy volví a mi casa
como si fuera el sitio
más lejano del mundo.

Por las calles de todos los días
por primera vez y para siempre
no sabía a dónde iba a parar
ni qué dejaba atrás.

Estaba cruzando el desierto
de las cosas, que de tan conocidas
se vuelven invisibles o infinitas
a la mirada del recién llegado.

Fue el viaje más largo de mi vida
y no puedo decir con certeza a dónde llegué
ni quién era el extraño que entraba conmigo.


Tom Maver




Voltei a casa hoje
como se fosse o lugar
mais distante do mundo.

Pelas ruas de todos os dias
pela vez primeira
não sabia para onde ia
nem o que deixava para trás.

Atravessava o deserto
das coisas, que se tornam
de tão conhecidas invisíveis ou infinitas
aos olhos de quem chega.

Foi a viagem mais longa da minha vida
e não posso dizer com certeza
onde é que cheguei nem quem era
o estranho que entrava comigo.

(Trad. A.M.)


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1.11.19

João de Mancelos (Alguns outros)





ALGUNS OUTROS, PENSANDO EM AL BERTO



alguns lambem as feridas,
outros amam a céu aberto.

alguns vão, de braço dado com o vento,
outros vivem nos quartos alugados
da esperança.

alguns adormecem, em línguas de fogo,
outros dançam à noite
com estranhas. `

alguns escrevem para lembrar ítaca,
outros esqueceram o mapa de si.
alguns ficam.

os melhores partem.
batendo em corações de lata,
e bebendo a noite em cada beijo.


João de Mancelos

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