29.12.06
INDICE DE AUTORES (2005-6)
ACQUARONI, Rosana
AGUIAR, Cristóvão
AGUSTINI, Delmira
ALBERTY, Rafael
ALEGRIA, Claribel
ALEXANDRE, António Franco
ALMEIDA, José António
ALONSO, Dámaso
ANDRADE, Carlos Drummond
ANDRADE, Eugénio
ANDRADE, Mário
ANDRESEN, Sophia de Mello Breyner
BANDEIRA, Manuel
BAPTISTA, José Agostinho
BAUTISTA, Amalia
BELO, Ruy
BENEDETTI, Mário
BERTO, Al
BORGES, Jorge Luís
BOTTO, António
BRITO, Casimiro
CADILHE, Gonçalo
CAMÕES, Luís
CARNEIRO, Mário Sá
CELAYA, Gabriel
CERNUDA, Luís
CHAR, René
EDSON, Russel
ELUARD, Paul
FERREIRA, David Mourão
FIGUEIREDO, Tomaz
HÉLDER, Herberto
HERCULANO, Alexandre
HORTA, Maria Teresa
JÚDICE, Nuno
KAVAFIS, Konstandinos
LEIRIA, Mário-Henrique
LIMA, Ângelo
LISPECTOR, Clarice
LOPES, Fernão
MARTINS, Albano
MEIRELES, Cecília
MONTEIRO, Adolfo Casais
MORAES, Vinicius
MORIN, E.
NEGREIROS, José Almada
NEMÉSIO, Vitorino
NERUDA, Pablo
OLIVEIRA, Mário Rui
O’NEILL, Alexandre
PACHECO, Fernando Assis
PEDREIRA, Maria do Rosário
PIRES, Graça
PRADO, Adélia
PRÉVERT, Jacques
QUINTANA, Mário
RIBEIRO, Aquilino
RIBEIRO, Bernardim
ROSA, António Ramos
SABINES, Jaime
SAFO
SALINAS, Pedro
SENA, Jorge
TAVARES, Gonçalo M.
TORGA, Miguel
VASCONCELOS, Mário Cesariny
VERDE, Cesário
VICENTE, Gil
YOURCENAR, Marguerite
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28.12.06
Aquilino Ribeiro (Danado, aquele Malhadinhas)
Danado aquele Malhadinhas de Barrelas, homem sobre o meanho, reles de figura, voz tão untuosa e tal ar de sisudez que nem o próprio Demo o julgaria capaz de, por um nonada, crivar à naifa o abdómen dum cristão.
Desciam-lhe umas farripas ralas, em guisa de suíças, à borda das orelhas pequeninas e carnudas como cascas de noz; trajava jaleca curta de montanhaque; sapato de tromba erguida; faixa preta de seis voltas a aparar as volutas dobradas da corrente de muita prata—e, Aveiro vai, Aveiro vem, no ofício de almocreve, os olhos sempre frios mas sem malícia, apenas as mandíbulas de dogue a atraiçoar o bom-serás, as suas façanhas deixaram eco por toda aquela corda de povos que anos e anos recorreu.
Na velhice, o negócio tilintado através de gerações, as andanças de recoveiro, o ver e aturar mundo, tinham-no provido de lábia muito pitoresca, levemente impregnada dum egoísmo pândego e glorioso.
Nas tardes de feira, sentado da banda de fora do Guilhermino, ou num dos poiais de pedra, donde já tivessem erguido as belfurinhas, alegre do verdeal, desbocava-se a desfiar a sua crónica perante escrivães da vila e manatas, e eu tinha a impressão de ouvir a gesta bárbara e forte dum Portugal que morreu.
- AQUILINO RIBEIRO, O Malhadinhas, início.
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Claribel Alegria (Estranho hóspede)
EXTRAÑO HUÉSPED
Es extraño este huésped
este amor
cuanto más me despoja
más me colma.
Claribel Alegria
Estranho este hóspede
este amor
quanto mais me tira
mais me enche.
(Trad. A. M.)
Fontes: A media voz / Portal de poesia
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25.12.06
Edgar Morin (E o mito?)
Eu diria sobre o amor o que digo em geral sobre o mito.
A partir do momento em que um mito é reconhecido como tal, ele deixa de o ser.
Chegámos a este ponto da consciência em que nos damos conta de que os mitos são mitos.
Mas apercebemo-nos ao mesmo tempo de que não podemos privar-nos de mitos.
Não se pode viver sem mitos; e incluirei entre os ‘mitos’a crença no amor, que é um dos mais nobres e mais fortes e talvez o único mito a que nos deveríamos agarrar.
A partir do momento em que um mito é reconhecido como tal, ele deixa de o ser.
Chegámos a este ponto da consciência em que nos damos conta de que os mitos são mitos.
Mas apercebemo-nos ao mesmo tempo de que não podemos privar-nos de mitos.
Não se pode viver sem mitos; e incluirei entre os ‘mitos’a crença no amor, que é um dos mais nobres e mais fortes e talvez o único mito a que nos deveríamos agarrar.
- E. MORIN, Amor, poesia e sabedoria, Lisboa (Piaget), 1999, p. 31.
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22.12.06
Albano Martins (Quatro perguntas)
QUATRO PERGUNTAS, SEGUIDAS DE UM EPÍLOGO, AO ESCULTOR JOSÉ RODRIGUES
1.
Tens na ponta do lápis uma chave
para abrir o poema.
Por onde é que ela o abre?
2.
Se um besouro de asas
translúcidas entrasse
agora no poema
– tu deixavas?
3.
Sabes como se esculpe um poema
fechado a sete chaves?
4.
E se uma pomba
roçasse o ângulo
raso do poema
– prendê-la-ias?
Tu que esculpes
com mãos de água o corpo
e a sombra dos dias.
ALBANO MARTINS
Entre a Cicuta e o Mosto
(1992)
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Fernando Assis Pacheco (Nausicaa)
NAUSICAA
1
Emoção imprópria para cardíacos chego à beira da Ria arrumo o carro
a ver as damas que tricotam no café do Guedes e —
quem descubro inclinada para a varanda? dou um doce! Nausicaa!
Nausicaa estrelicada nuns jeans made in Oporto
a vera filha de Alcínoo que me espera
me fala assim que eu entro «ôi» (em brasilês)
deixando-me interdito que até sou homem com o epigastro reforçado
para as piores surpresas da vida — Nausicaa
chupando um eroticão dum sorvete!
2
Aliso a barba tusso baixo vou a dizer não sei que iambo
porém já ela paga
a despesa ao balcão que entre mil reconhecera o triste
naufragado de mim e pois é à la carte
intimidades mansas em palácio?
carícias numa otomana e eu com o desejo bruto?
estas coisas não deviam escrever-se ligeiramente
3
Intertexto luso-americano: certa miss Tavares de Newark NJ «despe-me» quando
abandono o local imaginando ela que estamos no Rainbow Room e a orquestra
ataca aqueles slows basto marmelativos mas eu (e só um hotentote não perceberia) não
sei nesta altura do cozinhado poético como conciliar tradição e Realpolitik; sendo
conhecido que a minha educação foi maneirista
4
Nausicaa! e quero-a mesmo? desfazer-lhe a trança
enrolada presa em caracol a um pente castanho?
dizer-lhe quanto sonhei com os seus peitos sobre o mar?
negras noites de tempestade e eu insone?
porra para as deidades de segunda
negras noites e a proa retesada?
5
Vem no guião que a bela ao surpreender-me
no areal das Quintas do Norte para o Torrão do Lameiro
dias atrás chonava eu nuzinho em pêlo o que acontece
teve uma pena do carago, ai, e logo ali jurou
amar (devia de estar lindo salvo do gigante de um só olho
ondas de sete e oito metros
puta vingança)
ou só dementres agora sim nos víamos? 2.400 anos depois
ela de jeans com uma vulgar T-shirt atada à cintura
eu no meu camisolão de lã doméstica
CT aceso óculos Rayban o jornal dobrado
és mesmo tu? achei-te? que pretendes
nas Murtosas das Itacas? pára já!
folguemos sobre os lírios dessas dunas!
6
Digo porém que não: sou um senhor magoado
pelos trabalhos e os dias
e o mais simples verso
tem grandes manchas cicatriciais
embora não se note
7
Nausicaa limpa a boca as damas entrefalam
de Newark a miss astuta finge ler
o seu James Claveil oriental
posso dar-vos boleia até Ovar
e o galicismo cai: que de soluços
nas dobras da camisa! e que de grossas
palpitações no seio! a liricalha
lusa à mercê de um tal pedante!
bye-bye honey; a carriola pisca a luz do óleo;
foi bonito e
foi helénico e foi
aquilo que se conta um dia aos netos
8
De ti Nausicaa aparto a minha vara
de carne sensível
e não no areal me viste, era uma sombra
e pois que nesta vivo é força que ela viva
a minha simples musa de estamenha
o cego, o filho de Ana, o bom do Lope
companheiros certos sabiam-na toda
Fernando Assis Pacheco
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21.12.06
Konstandinos Kavafis (À espera dos bárbaros)
À ESPERA DOS BÁRBAROS
Porque esperamos, reunidos na praça?
Hoje devem chegar os bárbaros.
Porque reina a indolência no Senado?
Que fazem os senadores, sentados sem legislar?
É porque hoje vão chegar os bárbaros.
Que hão-de fazer os senadores?
Quando chegarem, os bárbaros farão as leis.
Porque se levantou o Imperador tão de madrugada
e que faz sentado à porta da cidade,
no seu trono, solene, levando a coroa?
É porque hoje vão chegar os bárbaros.
E o imperador prepara-se para receber o chefe.
Preparou até um pergaminho para lhe oferecer, onde pôs
muitos títulos e nomes honoríficos.
Porque é que os nossos cônsules, e também os pretores,
hoje saem com togas vermelhas bordadas?
Porquê essas pulseiras com tantos ametistas
e esses anéis com esmeraldas resplandecentes?
Porque empunham hoje bastões tão preciosos
tão trabalhados a prata e ouro?
Hoje vão chegar os bárbaros,
e estas coisas deslumbram os bárbaros.
Porque não vêm, como sempre, os ilustres oradores
a fazer-nos seus discursos, dizendo o que têm para nos dizer?
Hoje vão chegar os bárbaros;
e, a eles, aborrece-os os discursos e a retórica.
E que vem a ser esta repentina inquietação, esta desordem?
(Que caras tão sérias tem hoje o povo.)
Porque é que as ruas e as praças vão ficando vazias
e regressam todos, tão pensativos, a suas casas?
É porque anoiteceu e os bárbaros não vieram.
E da fronteira chegou gente
dizendo que os bárbaros já não vêm.
E agora que será de nós sem bárbaros?
De certo modo, essa gente era uma solução.
Konstandinos Kavafis
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Fontes: Sítio oficial / Poemas / Biografia / Cem poemas / Análise+Poemas / Wikipedia
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16.12.06
Fernão Lopes (Amador de mulheres)
(Amador de mulheres, e achegador a elas…)
(D. Fernando) mancebo valente, ledo, e namorado, amador de mulheres, e achegador a elas. Havia bem composto corpo e de razoada altura, fremoso em parecer e muito vistoso (…).
E era tão amavioso de todos que com ele viviam, que não chorava menos por um seu escudeiro, como se fosse seu filho.
De nenhum a que bem quisesse podia crer mal que lhe dele fosse dito, mas amava ele e todas suas cousas muito de vontade.
Era cavalgante, e torneador, grande justador, e lançador atavolado.
Era muito braceiro, que não achava homem que o mais fosse; cortava muito com uma espada, e remessava bem a cavalo.
- FERNÃO LOPES, Cron. D. Fernando, prólogo, Livraria Civilização, p.3 (com actualização ortográfica).
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Casimiro de Brito (O interrogatório de Rosa Luxemburgo)
OBJECTOS DE CULTO & PERSONAL
O interrogatório de Rosa Luxemburgo
O interrogatório
De Rosa Luxemburgo
Durou apenas algumas horas. Ela sabia
Tão bem como os seus carcereiros
Que palavras ali já não existiam. Caída
Na batalha
Contra o nervo vital do Estado; banhada
Em sangue
E quase sem sentidos,
Rosa,
Frágil camarada,
Pediu aos caçadores seus assassinos
Agulha e linha. E, silenciosamente,
Com uma pistola apontada à têmpora,
Coseu a bainha da saia que se encontrava
Descosida. Pouco depois
O cadáver
Foi lançado à água.
Casimiro de Brito
Fontes: As Tormentas / Poesias-e-prosas / Palavras d'Ouro / Sítio of. (bio+antologia+ crítica+entrevistas+linques)
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11.12.06
Cristóvão de Aguiar (Serviu-lhe de emenda)
Numa dessas ocasiões de tentação demoníaca, esteve o porquinho vermelho, ainda mal desmamado, à beira de ficar todo rebentado por dentro, tamanho foi o estoiro de encontro à calçada do curral.
O fidalgo havia deixado a lavagem quase toda na pia.
Mal lhe tocara.
Vavô Evaristo, que já não gostava nada da raça dos porcos, perdeu o resto do tino ao vê-lo mirrar-se de dia para dia de comedouro cheio.
Não se contendo mais, pegou no marrão e atirou-o com quanta força tinha (e era muita!) contra o empedrado da pocilga.
Valeu ao bicho a alcatifa de estrume que o amparou em tão feia queda.
Dormiu a sono solto durante horas acrescentadas, até parecia já defunto.
Ao vir porém a si, a primeira coisa que fez foi dirigir-se à pia: meteu o focinho com o arganel e sorveu a lavagem empapada em gorgolejos insofridos e não deixou um suor no fundo lambido do comedouro.
Serviu-lhe de emenda.
- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, O fruto e o sonho, 1.ª parte, cap. V, in medio, da trilogia Raiz Comovida.
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Eugénio de Andrade (Há dias)
HÁ DIAS
Há dias em que julgamos
que todo o lixo do mundo
nos cai em cima
depois ao chegarmos à varanda avistamos
as crianças correndo no molhe
enquanto cantam
não lhes sei o nome
uma ou outra parece-se comigo
quero eu dizer :
com o que fui
quando cheguei a ser luminosa
presença da graça
ou da alegria
um sorriso abre-se então
num verão antigo
e dura
dura ainda.
EUGÉNIO DE ANDRADE
Lugares do lume
Consultar: Instituto Camões (Perfil: Carlos Mendes de Sousa)
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8.12.06
Jorge de Sena (Os paraísos artificiais)
OS PARAÍSOS ARTIFICIAIS
Na minha terra, não há terra, há ruas;
mesmo as colinas são de prédios altos
com renda muito mais alta.
Na minha terra, não há árvores nem flores.
As flores, tão escassas, dos jardins mudam ao mês,
e a Câmara tem máquinas especialíssimas para desenraizar as árvores.
O cântico das aves — não há cânticos,
mas só canários de 3.º andar e papagaios de 5.º
E a música do vento é frio nos pardieiros.
Na minha terra, porém, não há pardieiros,
que são todos na Pérsia ou na China,
ou em países inefáveis.
A minha terra não é inefável.
A vida na minha terra é que é inefável.
Inefável é o que não pode ser dito.
Jorge de Sena
4.12.06
Edgar Morin (O que é o amor?)
Então o que é o Amor?
É o auge da união da loucura e da sabedoria. Como esclarecer isto?
É evidente que é o problema que afrontamos na nossa vida e não existe nenhuma chave para encontrar uma solução exterior ou superior.
O amor traz, precisamente, esta contradição fundamental, esta co-presença da loucura e da sabedoria.
- EDGAR MORIN, Amor, poesia e sabedoria, Lisboa (Piaget), 1999, pp. 30-1.
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Coitado do Jorge (29)
(Sábio, esse… popular)
Mal de amor raro se perde
é como a nódoa da amora
só com outra amora verde
a nódoa se vai embora
(Popular)
[Corte-na-aldeia]
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Amalia Bautista (Meus melhores desejos)
MIS MEJORES DESEOS
Que la vida te sea llevadera.
Que la culpa no ahogue la esperanza.
Que no te rindas nunca.
Que el camino que tomes sea siempre elegido
entre dos por lo menos.
Que te importe la vida tanto como tú a ella.
Que no te atrape el vicio
de prolongar las despedidas.
Que el peso de la tierra sea leve
sobre tus pobres huesos.
Que tu recuerdo ponga lágrimas en los ojos
de quien nunca te dijo que te amaba.
Amalia Bautista
Que a vida te seja suportável.
Que a culpa não afogue a esperança.
Que não te rendas nunca.
Que o caminho que segues seja sempre escolhido
entre dois pelo menos.
Que te importe a vida tanto como tu a ela.
Que não te agarre o vício
de prolongar as despedidas.
Que o peso da terra seja leve
sobre os teus pobres ossos.
Que a tua recordação traga lágrimas aos olhos
de quem nunca te disse que te amava.
(Trad. at)
[Um-buraco-na-sombra]
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30.11.06
Fernando Assis Pacheco (Peso de Outono)
PESO DE OUTONO
Eu vi o Outono desprender suas folhas,
cair no regaço de mulheres muito loucas.
Cem duzentas pessoas num café cheio de fumo
na cidade de Heidelberg pronta para a neve
saboreavam tepidamente a sua ignorância.
Eu vi as amantes ensandecerem
com esse peso de Outono. Perderem as forças
com o Outono masculino e sangrento.
Os gritos a meio da noite
das amantes a meio da loucura voavam
como facas para o meu peito.
Alguns poetas li-os melhor no Outono,
certos amores só poderia tê-los,
como tive, nos dias ébrios da vindima.
Fernando Assis Pacheco
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25.11.06
Um verso (24)
Um verso de Marguerite Yourcenar
(que a sabia toda):
“Somos sempre indulgentes com aqueles que vamos deixar”.
[Canal-de-poesia]
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Jaime Sabines (Qué costumbre...)
¡Qué costumbre tan salvaje esta de enterrar a los muertos!, ¡de matarlos, de aniquilarlos, de borrarlos de la tierra! Es tratarlos alevosamente, es negarles la posibilidad de revivir.
Yo siempre estoy esperando a que los muertos se levanten, que rompan el ataúd y digan alegremente: ¿por qué lloras?
Por eso me sobrecoge el entierro. Aseguran las tapas de la cajan, la introducen, le ponen lajas encima, y luego tierra, tras, tras, tras, paletada tras paletada, terrones, polvo, piedras, apisonando, amacizando, ahí te quedas, de aquí ya no sales.
Me dan risa, luego, las coronas, las flores, el llanto, los besos derramados. Es una burla: ¿para qué lo enterraron?, ¿por qué no lo dejaron fuera hasta secarse, hasta que nos hablaran sus huesos de su muerte? ¿O por qué no quemarlo, o darlo a los animales, o tirarlos a un río?
Había de tener una casa de reposo para los muertos, ventilada, limpia, con música y con agua corriente. Lo menos dos o tres, cada día, se levantarían a vivir.
JAIME SABINES
Yuria
(1967)
Que costume mais selvagem este de enterrar os mortos! De os matar, de os aniquilar, de apagá-los da terra! É tratá-los com aleive, é negar-lhes a possibilidade de reviverem.
Eu estou sempre à espera que os mortos se levantem, que rompam o ataúde e digam alegremente: porque é que choras?
Por isso me espanta o enterro. Aferrolham o caixão, enfiam-no na terra, põem-lhe pedras por cima e depois terra, trás, trás, trás, pázada sobre pázada, terrões, pó, pedras, calcando, amaciando, fica-te para aí, daqui é que já não sais.
Dá-me o riso, depois, com as coroas, as flores, o pranto, os beijos derramados. É uma burla: Para que o enterraram? Porque não o deixaram de fora até secar, até os ossos nos falarem da sua morte? Ou porque não queimá-lo, ou dá-lo aos animais, ou atirá-lo ao rio?
Havia de haver uma casa de repouso para os mortos, ventilada, limpa, com música e água corrente. Pelo menos dois ou três, em cada dia, erguer-se-iam para viver.
(Trad. A.M.)
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24.11.06
Cristóvão de Aguiar (Não me apeteceu cear nesse dia)
A sua presença explodida de vida num lugar de ausência fazia-me crescer uma onda de calor que marinhava da ponta dos pés à raiz dos cabelos, num arrepio de não sei quê sublinhado pela demora líquida e conivente do seu verde olhar pousado no peitoril do meu.
Só à noite, à fogueira da imaginação, é que sabia recapitular os pormenores do diálogo que não existira e ver com nitidez os contornos do sorriso apenas adivinhado mas raso de promessas e afectos futuros se reinventado no conchego da memória.
Num domingo, à hora das Trindades da tarde, dei-lhe tremendo o primeiro beijo.
Subia das terras um cheiro bom a trigo maduro.
No céu, aguardavam os carneirinhos rosados das nuvens a sua vez de beber no enorme gamelão do mar.
Mesmo rente à linha que cose o horizonte.
Espantado, corri para casa.
Estendi-me sobre a cama de ferro.
E foi aí que o sabor daquele beijo medroso se me tornou real.
Abriu-se numa corola de desejo.
E foi pouco e pouco alastrando-se por sobre a terra púbere do meu corpo.
Para pasmo de minha Mãe, que me lia de cima a baixo, não me apeteceu cear naquele dia.
- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, O fruto e o sonho, 1.ª parte, cap. II, fecho, da trilogia Raiz Comovida.
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22.11.06
Alexandre O'Neill (Portugal)
País - 1 (Jorge de Sena)
País -2 (A. O'Neill)
País - 3 (Jorge de Sena)
País - 4 (A. O'Neill)
PORTUGAL
Ó Portugal, se fosses só três sílabas,
linda vista para o mar,
Minho verde, Algarve de cal,
jerico rapando o espinhaço da terra,
surdo e miudinho,
moinho a braços com um vento
testarudo, mas embolado e, afinal, amigo,
se fosses só o sal, o sol, o sul,
o ladino pardal,
o manso boi coloquial,
a rechinante sardinha,
a desancada varina,
o plumitivo ladrilhado de lindos adjectivos,
a muda queixa amendoada
duns olhos pestanítidos,
se fosses só a cegarrega do estio, dos estilos,
o ferrugento cão asmático das praias,
o grilo engaiolado, a grila no lábio,
o calendário na parede, o emblema na lapela,
ó Portugal, se fosses só três sílabas
de plástico, que era mais barato!
Doceiras de Amarante, barristas de Barcelos,
rendeiras de Viana, toureiros da Golegã,
não há "papo-de-anjo" que seja o meu derriço,
galo que cante a cores na minha prateleira,
alvura arrendada para o meu devaneio,
bandarilha que possa enfeitar-me o cachaço.
Portugal: questão que eu tenho comigo mesmo,
golpe até ao osso, fome sem entretém,
perdigueiro marrado e sem narizes, sem perdizes,
rocim engraxado,
feira cabisbaixa,
meu remorso,
meu remorso de todos nós...
ALEXANDRE O’NEILL
Feira Cabisbaixa
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Mario Benedetti (Milonga de los perdones)
(Visita a Mario B., en su casa, en Montevideo...
graças a Milka)
MILONGA DE LOS PERDONES
Milonga de los perdones
y de los perdonavidas
aunque incluya a los que a veces
nos dejaron con heridas
milonga de no quedarse
abrazado a los rencores
aunque en uno que otro caso
se puede odiar sin pudores
milonga reloj de arena
que organiza tu memoria
hasta que un día te marque
la vejez obligatoria
milonga de un escondrijo
donde nadie te delate
y puedas cantar la nueva
milonga del disparate
milonguera que te ayude
a salir del laberinto
con un pufiado de suerte
y un litro de vino tinto
la milonga disponible
puede servirnos de guía
si le agregamos paciencia
y algo de melancolia
milonga de la tristeza
viene con pálidos ecos
hay miradas como llanto
pero hay ojos que están secos
mujer que alguien robaría
con ayuda o sin ayuda
el que la cruza en la calle
con los ojos la desnuda
milonga del millonario
no importa lo que nos cobres
yo prefiero conformarme
con el perdón de los pobres
Mario Benedetti
Antes, aqui: Desde los afectos (Sinopse) / Nuevo canal interoceánico / Coração, couraça
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17.11.06
Carlos Drummond de Andrade (No meio do caminho)
(Na terra dele também...
Rio de Janeiro / E no escritório)
NO MEIO DO CAMINHO
No meio do caminho tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
tinha uma pedra
no meio do caminho tinha uma pedra.
Nunca me esquecerei desse acontecimento
na vida de minhas retinas tão fatigadas.
Nunca me esquecerei que no meio do caminho
tinha uma pedra
tinha uma pedra no meio do caminho
no meio do caminho tinha uma pedra
Carlos Drummond de Andrade
14.11.06
António Botto (Anda, vem)
Anda vem..., porque te negas,
Carne morena, toda perfume?
Porque te calas,
Porque esmoreces,
Boca vermelha, rosa de lume?
Se a luz do dia
Te cobre de pejo,
Esperemos a noite presos num beijo.
Dá-me o infinito gozo
De contigo adormecer
Devagarinho, sentindo
O aroma e o calor
Da tua carne, meu amor!
E ouve, mancebo alado:
Entrega-te, sê contente!
Nem todo o prazer
Tem vileza ou tem pecado!
Anda, vem!... Dá-me o teu corpo
Em troca dos meus desejos...
Tenho saudades da vida!
Tenho sede dos teus beijos!
António Botto
Mário Quintana (Os poemas)
(Na terra dele, também...
Porto Alegre)
OS POEMAS
Os poemas são pássaros que chegam
não se sabe de onde e pousam
no livro que lês.
Quando fechas o livro, eles alçam voo
como de um alçapão.
Eles não têm pouso
nem porto
alimentam-se um instante em cada par de mãos
e partem.
E olhas, então, essas tuas mãos vazias,
no maravilhoso espanto de saberes
que o alimento deles já estava em ti...
Mário Quintana
[Jornal de Poesia]
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12.11.06
Mário Cesariny (Poema)
POEMA
Tu estás em mim como eu estive no berço
como a árvore sob a crosta
como o navio no fundo do mar
Mário Cesariny
8.11.06
Coitado do Jorge (27)
(Sábio, esse Jaime...)
Para saber de amor, para aprenderle,
haber estado solo es necesario...
Jaime Gil de Biedma
Fonte: Corte-na-Aldeia
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Sophia de Mello Breyner Andresen (A conquista de Cacela)
3.11.06
Jorge de Sena (Portugal)
País - 1 (Jorge de Sena)
País - 2 (A. O'Neill)
País - 3 (Jorge de Sena)
PORTUGAL
Esta é a ditosa pátria minha amada.
Não.Nem é ditosa, porque o não merece.
Nem minha amada, porque é só madrasta.
Nem pátria minha, porque eu não mereço
a pouca sorte de nascido nela.
Nada me prende ou liga a uma baixeza tanta
quanto esse arroto de passadas glórias.
Amigos meus mais caros tenho nela,
saudosamente nela, mas amigos são
por serem meus amigos, e mais nada.
Torpe dejecto de romano império;
babugem de invasões; salsugem porca
de esgoto atlântico; irrisória face
de lama, de cobiça, e de vileza,
de mesquinhez, de fátua ignorância;
terra de escravos, cu pró ar ouvindo
ranger no nevoeiro a nau do Encoberto;
terra de funcionários e de prostitutas,
devotos todos do milagre, castos
nas horas vagas de doença oculta;
terra de heróis a peso de ouro e sangue,
e santos com balcão de secos e molhados
no fundo da virtude; terra triste
à luz do sol calada, arrebicada, pulha,
cheia de afáveis para os estrangeiros
que deixam moedas e transportam pulgas,
oh pulgas lusitanas, pela Europa;
terra de monumentos em que o povo
assina a merda o seu anonimato;
terra-museu em que se vive ainda,
com porcos pela rua, em casas celtiberas;
terra de poetas tão sentimentais
que o cheiro de um sovaco os põe em transe;
terra de pedras esburgadas, secas
como esses sentimentos de oito séculos
de roubos e patrões, barões ou condes;
ó terra de ninguém, ninguém, ninguém:
eu te pertenço. És cabra, és badalhoca,
és mais que cachorra pelo cio,
és peste e fome e guerra e dor de coração.
Eu te pertenço mas seres minha, não.
Jorge de Sena
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30.10.06
Cristóvão de Aguiar (A alegria que me alaga o íntimo)
A alegria que agora me alaga o íntimo por não ter ainda nesse tempo pousado a morte no limiar de ladrilho de nossa casa!
Pouco ou nenhum sentido se deitava a estas súbitas reinvenções de uma ternura serôdia.
As palavras eram apenas pedaços de pão ou pedras esquinadas que eu atirava, rasantes e zunindo, aos gargalos das galinhas sem culpa que debicavam contra as paredes revestidas de coucelos.
Ficavam desmaiadas até lhes mergulhar o pescoço bambo na selha de água para virem a si.
Não usavam ainda as palavras a máscara e os disfarces do entrudo da sintaxe.
Possuíam o chão de terra estrumado e conjugavam-se na alegria fundamental do verbo crescer — saboroso mistério de silenciosa seiva subindo, subindo.
Eram a casa terreira juncada de caruma e rescendendo a resina e a maresia.
Nelas se instalava o forno do pão, inchado de labaredas, que o esborralhadouro embandeirado na ponta com trapos escorrendo percorria como um falo florescente.
Não poderia nelas, palavras, caber a morte, esse substantivo subentendido de coisa nenhuma.
- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, O fruto e o sonho, 1.ª parte, cap. II, abertura, da trilogia Raiz Comovida.
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29.10.06
Mario Benedetti (Coração couraça)
CORAÇÃO COURAÇA
Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque vieste recolher a tua imagem
e és melhor do que qualquer imagem tua
porque és linda do corpo até à alma
porque és boa da alma até mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça
porque és minha
porque não és minha
porque te vejo e morro
e pior que morro
se não te vejo amor
se não te vejo
porque tu existes sempre onde quer
mas existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que amar-te amor
tenho que amar-te
ainda que esta ferida doa por duas
ainda que te busque e não te encontre
e ainda que
a noite passe e eu te tenha
e não.
Mario Benedetti
(Trad. A. M.)
[A-media-voz ]
27.10.06
Edgar Morin (Estamos condenados ao paradoxo)
Estamos condenados ao paradoxo de conservar em nós, simultaneamente, a consciência da vacuidade do nosso mundo e a da plenitude que nos pode trazer a vida, quando quiser ou puder.
Se a sabedoria nos pede para nos desprendermos do mundo da vida, será ela verdadeiramente sábia?
Se aspiramos à plenitude do amor, seremos nós verdadeiramente loucos?
- E. MORIN, Amor, poesia e sabedoria, Prólogo, Lisboa (Piaget), 1999, p. 11.
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Vinicius de Moraes (A brusca poesia...)
A BRUSCA POESIA DA MULHER AMADA
Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente...
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor – oh, a mulher amada é como a fonte!
A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito?
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente?
Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados...
Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias
Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.
Rio de Janeiro, 1938
Vinicius de Moraes
Fonte: Vinicius (tudo, ou quase, sobre...)
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22.10.06
Fernando Assis Pacheco (Volta à amada em uma semana)
VOLTA À AMADA EM UMA SEMANA
No primeiro dia eu disse para mim mesmo
que o amor era a casa da minha vida.
No segundo dia as maravilhas
do amor quase me cegavam.
Guardei o terceiro dia para meditação.
Precisava reentrar em mim.
No quarto dia senti-me sábio,
cheio de janelas e fragrâncias.
Ó quinto dia, gritei, nunca tu viesses,
dominador, devorador!
Mas no sexto dia eu era um oceano
banhando esse país rumorejante
aonde, com a guitarra ao ombro,
aportei no sétimo dia.
Fernando Assis Pacheco
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21.10.06
Coitado do Jorge (25)
SMS
Eu pergunto apenas:
- Quando é que se vai derramar sobre mim?
Depois é que consulto o dicionário:
Derramar – verter, espalhar, entornar, disseminar,
produzir abundantemente, prodigalizar…
- Estamos entendidos?
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Alexandre O'Neill (O país relativo)
País - 1 (Jorge de Sena)
País - 2 (A. O'Neill)
O PAÍS RELATIVO
País por conhecer, por escrever, por ler...
País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.
País que me pede livros andejantes
com o dedo, hirto, a correr as estantes.
País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano.
País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
-Não, não é para mim este país!
mas quem é que bàquestica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?
Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.
País do cibinho mastigado
devagarinho.
País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.
O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de aletria.
Moroso país da surda cólera,
de repente que se quer feliz.
Já sabemos, país, que és um homenzinho...
País tunante que diz que passa a vida
a meter entre parêntesis a cedilha.
A damisela passeia
no país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.
País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?
País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonço
do gesto e do chavão.
E ainda há quem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!
Corre boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.
País desconfiado a reolhar para cima
dum ombro que com razão duvida.
Este país que viaja a meu lado,
vai transido mas transistorizado.
Nhurro país que nunca se desdiz.
Cedilhado o cê, país, não te revejas
na cedilha, que a palavra urge.
Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania,
sem perder tempo nem caligrafia.
Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,
que parece comprida.
A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.
País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.
Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!
País das troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.
De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...
Embezerra, país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.
Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!
Um país maluco de andorinhas
tesourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!
Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.
Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...
No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrácia e o jeito alvar.
Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste para mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!
ALEXANDRE O’NEILL
Feira Cabisbaixa
(1965)
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18.10.06
Mário Rui de Oliveira (Logo atrás de ti)
LOGO ATRÁS DE TI
Esta dor não passa quando adormeço
chora ao pé de mim
irremediável
alguém nos toca no ombro e
damos por nós mais sozinhos
o meu lugar na morte
é junto da janela
logo atrás de ti
Mário Rui de Oliveira
Mais poemas: O lugar das palavras / As tormentas
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17.10.06
16.10.06
Pablo Neruda (Poema 20 - Podia escrever os versos mais tristes)
POEMA 20
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Escribir, por ejemplo: «La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos».
El viento de la noche gira en el cielo y canta.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.
En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.
Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.
Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.
Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.
Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.
Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.
Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.
La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.
Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.
De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.
Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.
Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
Mi alma no se contenta con haberla perdido.
Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.
PABLO NERUDA
Veinte poemas de amor y una canción desesperada
(1924)
11.10.06
Um verso (21)
Um verso de Al Berto
(quem te manda a ti, sapateiro?...):
“Cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado”.
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Coitado do Jorge (24)
Cena 1005 - Take 1
Cá estou eu no vale, roído de saudades, sempre a lembrar-me de uma certa pessoa. Que não posso dizer quem é...
O problema é que trouxe várias fotos novas dessa tal pessoa e fico o tempo todo a olhar para elas, enfeitiçado.
Não é bem por a pessoa ser bonita, fresca e perfumada.
É mais porque fui eu que tirei as fotos, sou o autor, ou o criador do objecto que admiro.
Não só da representação, mas também do objecto mesmo, que é que julga? Porque é o facto de eu adorar a tal pessoa (eu não devia dizer, cada vez mais, é isso que não me entra) que faz com que ela seja (ela me pareça) bonita, fresca e perfumada.
É que até do perfume gosto, já viu a minha desgraça?
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Cristóvão de Aguiar (Trazido no langor)
Trazido no langor das conversas estendidas e ripadas no linhal dos serões, compridos e esbanjados de tempo — as noites espreguiçadas do Inverno ilhéu — o mundo mormacento da nossa freguesia ia entrando sorrateiro no quartinho do relógio.
Alcandorado no seu canto, o relógio condutava as horas sem nenhuma pressa de empurrar a noite velha para o colo da madrugada, na fundura da garganta dos galos ainda. Das bocas encieiradas e tontas de sono, iam florindo as palavras em canteiros de terra fofa. E no atalho térreo da conversa ia rastejando o sonho primordial — a América. Subia a ladeirinha que desemboca na foz do desejo, continuava sempre trepando, orelha guicha, agulhando as sílabas da aventura enroscada no íntimo, até se esparramar, na sua líquida expansão, na superfície global das palavras alagadas em imaginadas travessias atlânticas.
O mundo dos mortos e dos ausentes também vinha sentar-se no sobrado da conversa. E para ali ficava na sua amarelenta rigidez absorvendo o licor das palavras carregadas de um travo de amargor e impregnadas de um cheiro errante de alecrim dos mortos.
- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, Vindima de fogo, cap. XI, abertura, da trilogia Raiz Comovida.
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8.10.06
Carlos Drummond de Andrade (O seu santo nome)
O SEU SANTO NOME
Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.
Carlos Drummond de Andrade
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