Trazido no langor das conversas estendidas e ripadas no linhal dos serões, compridos e esbanjados de tempo — as noites espreguiçadas do Inverno ilhéu — o mundo mormacento da nossa freguesia ia entrando sorrateiro no quartinho do relógio.
Alcandorado no seu canto, o relógio condutava as horas sem nenhuma pressa de empurrar a noite velha para o colo da madrugada, na fundura da garganta dos galos ainda. Das bocas encieiradas e tontas de sono, iam florindo as palavras em canteiros de terra fofa. E no atalho térreo da conversa ia rastejando o sonho primordial — a América. Subia a ladeirinha que desemboca na foz do desejo, continuava sempre trepando, orelha guicha, agulhando as sílabas da aventura enroscada no íntimo, até se esparramar, na sua líquida expansão, na superfície global das palavras alagadas em imaginadas travessias atlânticas.
O mundo dos mortos e dos ausentes também vinha sentar-se no sobrado da conversa. E para ali ficava na sua amarelenta rigidez absorvendo o licor das palavras carregadas de um travo de amargor e impregnadas de um cheiro errante de alecrim dos mortos.
- CRISTÓVÃO DE AGUIAR,
Vindima de fogo, cap. XI, abertura, da trilogia
Raiz Comovida.
.