20.10.20

Amadeu Baptista (A queda dos condenados)

 


PETER PAUL RUBENS, ‘A QUEDA DOS CONDENADOS’
               [c.1620, óleo s/tela. 286 X 224cm]

 

​​                              (Para José Miguel Braga)

 

 

Olho o quadro e espero. Olho de novo o quadro

E volto a esperar. Por mais que olhe, por muito

Que espere, o quadro nunca está onde espero

Que esteja. Sem que se movimente, o quadro movimenta-se

Num impulso subtil sob os meus olhos, a minha 

Expectativa, a minha ansiedade, o meu modo de querer

Corroborar razões e disso estar aflito. Volto

A olhar e o quadro estremece. Não está, de novo,

No mesmo lugar onde o vi, onde o vejo agora.

Nunca está no lugar que ocupa, embora ocupe

Um vultuoso lugar de estremecimento. Não, não

Compreendo, isto é quase uma batalha, uma adversidade

Que me contradiz e supera. O quadro não pára de estremecer

E eu estremeço com ele. Por isso, sempre que o olho 

O quadro não está no lugar onde o vejo,

Está mais perto de mim e porventura mais longe do meu olhar, 

O quadro está num infinito de que nada sei,

De que nada se sabe. Aqui e ali, estremece para me perturbar.

Foi Peter Paul Rubens que, cerca de 1620, o pintou,

Diz-se que sobre um esboço feito em giz preto

E vermelho e uma tinta cinza, desenhado por um 

Um assistente da oficina. Agora o quadro está na antiga 

Pinacoteca de Munique, mas é como se estivesse 

Em todo o lado, como se cada uma das suas abrangências 

Se impusesse a todos os olhares, os pios e os ímpios, os que querem

Entender como se tende a massa humana na crispação

De nunca sabermos do que nos adverte a arte 

Quando nos deparamos com ela e com ela somos 

Confrontados. Olho o quadro e espero. Olho de novo 

O quadro e volto a esperar. Espero e espero sem que saiba

Por que tudo estremece à minha volta, por que estremece

Cada uma das figuras que o quadro representa, cada um

Dos corpos que o arcanjo Miguel, sob um raio de luz,

Precipita no abismo, num caudal contínuo. Olho o quadro. 

Uma e outra vez olho o quadro e espero. Tento contar 

O número de corpos que caem no vórtice, sem resultado.

Se um desaparece no tumulto, logo um outro corpo o substitui

Como se fosse sem fim a cegarrega do infortúnio

E a nenhum apelo pudesse a esperança alcandorar-se.

Este é um voo que a coação impele, uma queda a que nenhum 

De nós será alheio, nenhum de nós deixará de interrogar

Se sobre a sua desolação o encontrar, sobre as suas

Derrogações, sobre as escarpas que tiver na vida. 

Olhando o quadro nota-se que tem uma profundidade 

Que ganha altura, que tem um ímpeto inexorável

Que entontece o coração, os corpos caem e somos nós a cair,

Somos nós a sofrer a expiação da espada do arcanjo, 

Da crueldade divina, que tanto afirma amar-nos. 

O quadro estremece, estremece sempre que o olho,

E não sei se sou eu que estremeço, se é o mundo

Que estremece por ele e por mim. Nunca está onde julgo

Que está, e é belo, e é terrífico, e enche-me de afrontas e de dúvidas,

Como se eu estivesse nele, como se também eu caísse

Para a cloaca do inferno, sujeito ao alvedrio de um anjo

Sumptuoso mas tirânico, sob o livre arbítrio de um deus déspota

E falaz. Aceito que Rubens tivesse finalizado este quadro,

Dotando-o do rigor do seu talento. Aceito que tenha permitido 

Que a exaustão pudesse ver-se, talvez como exemplo, talvez como 

Reconhecimento de quanta fragilidade recai sobre os nossos ombros 

Se somos sumariamente julgados no juízo que de nós é feito 

Sem que as nossas razões sejam pesadas, contadas as nossas palavras 

Inocentes. Aceito que ao tempo tudo indicasse

Que fosse o extravio a solução para a deriva,

Entre o bulício da reforma e da contra-reforma, 

Com tantos assassinatos em presença, tantas mortes, 

Tantas intrépidas traições, tanto dolo sobre a humanidade.

Aceito que Rubens elevasse a beleza ao desconcerto,

A este modo de ficarmos alucinados por tanta apoteose,

Tanto discernimento plástico sobre a tela, tanta excelência

A mostrar o que se não pode ou deve ver na derrisão

A que cada um de nós está exposto, como se mais nada 

Houvesse, como se amanhã nada existisse. Mas fica-me 

No olhar uma tontura, olho o quadro e espero, olho de novo 

O quadro e volto a esperar. Dele chega uma luz

Que me faz estremecer, quanto mais 

O olho mais o estremecimento me invade,

Mais a escuridão se aproxima, mais a queda é extensa,

Demorada, encantatória, sedutora, entorpecente para quem

Espera ter a alma tão limpa como as mãos, o espírito

Tão nítido como um fogo que se vê ao longe,

Uma casa e a sua luz no topo de uma montanha muito escura. 

Olho o quadro e sinto-me estremecer, e comigo, quem sabe

Se por mim, o quadro estremece também, esplendoroso e frágil,

A fazer de mim não mais que um farrapo sem préstimo,

Um ente que veio ao mundo com menos serventia do que uma alfaia

Agrícola ou a vela de um navio. Presumo que estes corpos 

Foram todos tirados do natural, como há época começou a ser hábito,

Mas penso que estes corpos são mais do que parecem 

Ser sobre esta tela, estão a cair, a rebolar pela escarpa 

Sob o contínuo escrutínio do arcanjo Miguel

Mas parecem luminosamente corajosos, ditosos sobre o acaso

Que lhes foi destinado, bem-aventurados sobre a queda,

Magníficos e mortais no desvelo que nos mostram, na coragem

Que se lhes adivinha, a carregar o castigo que lhes foi imposto

Sem que alguém queira indagar sobre a dor que os sitia,

O perdão que alguma benevolência poderia ter-lhes dado,

   alguma misericórdia, alguma graça possível.

Creio que estes corpos serão a primazia da sua humanidade,

Com os seus erros e as suas bondades, a sua fortuna e a sua desventura,

O maligno e o benigno a que tudo se reduz, aqui uma virtude, 

Um defeito ali, já que é na perfeição que a imperfeição existe,

À imagem e semelhança de tudo o que criamos. A alta pintura 

Faz-se pela graça repartida entre os mortais e há-de essa graça 

Entender-se por sapiência, por letras gregas, latinas e hebraicas, 

Pela muita ou pouca experiência que se tem, pela força do sangue 

De quem vive, de quem olha, de quem espera e estremece 

No quadro, olhando o quadro, olhando o mundo. A dor é poderosa, 

A mortandade ilimitada, a criação magnânima. Ignoro se

Deus também poderá ter sido tirado do natural da sua intratável 

Natureza, se o uso das línguas o pode descrever, se o sangue 

Terá alguma vez oportunidade de responder ao que sujeita o homem, 

Se também espera, se também olha, se também estremece, 

Se também faz parte da queda, tal como a queda faz parte deste quadro.

Ignoro se Deus sabe ou não sabe perdoar e redimir, 

Se a ideia que nos fez ter da astúcia que tem mais não é

Do que a reprodução exacta da sombras que o identificam,

Do que se diz ter gerado, do que nos proibiu sabendo que isso era bom.

Deus está omisso neste quadro, mas sem dúvida que está lá, 

Está lá, como sempre, embuçado, inimputável, ausente, a desferir

Os seus golpes ominosos, as suas proezas execráveis. Assim condena 

A quem ofende, sem que sequer estremeça pela sua própria criação,

Sem que olhe, de novo, sem que espere. E o mais é o infortúnio 

Dos que olham e olham, e esperam e esperam, incrédulos 

Da beleza deste quadro e da crueldade divina que nele se adivinha.

Olho o quadro e espero. Olho de novo o quadro

E volto a esperar. Olho o quadro e estremeço: Olho

Aqueles corpos indefesos que rolam pela escarpa,

Aquelas almas – e por uma vez fico a saber que amanhã 

Não nos iremos encontrar no paraíso.

  

 

Amadeu Baptista

 .