PETER PAUL RUBENS, ‘A
QUEDA DOS CONDENADOS’
[c.1620, óleo s/tela. 286 X
224cm]
(Para
José Miguel Braga)
Olho o quadro e espero. Olho de novo o quadro
E volto a esperar. Por mais que olhe, por muito
Que espere, o quadro nunca está onde espero
Que esteja. Sem que se movimente, o quadro movimenta-se
Num impulso subtil sob os meus olhos, a minha
Expectativa, a minha ansiedade, o meu modo de querer
Corroborar razões e disso estar aflito. Volto
A olhar e o quadro estremece. Não está, de novo,
No mesmo lugar onde o vi, onde o vejo agora.
Nunca está no lugar que ocupa, embora ocupe
Um vultuoso lugar de estremecimento. Não, não
Compreendo, isto é quase uma batalha, uma adversidade
Que me contradiz e supera. O quadro não pára de
estremecer
E eu estremeço com ele. Por isso, sempre que o olho
O quadro não está no lugar onde o vejo,
Está mais perto de mim e porventura mais longe do meu olhar,
O quadro está num infinito de que nada sei,
De que nada se sabe. Aqui e ali, estremece para me perturbar.
Foi Peter Paul Rubens que, cerca de 1620, o pintou,
Diz-se que sobre um esboço feito em giz preto
E vermelho e uma tinta cinza, desenhado por um
Um assistente da oficina. Agora o quadro está na antiga
Pinacoteca de Munique, mas é como se estivesse
Em todo o lado, como se cada uma das suas abrangências
Se impusesse a todos os olhares, os pios e os ímpios, os que
querem
Entender como se tende a massa humana na crispação
De nunca sabermos do que nos adverte a arte
Quando nos deparamos com ela e com ela somos
Confrontados. Olho o quadro e espero. Olho de novo
O quadro e volto a esperar. Espero e espero sem que saiba
Por que tudo estremece à minha volta, por que estremece
Cada uma das figuras que o quadro representa, cada um
Dos corpos que o arcanjo Miguel, sob um raio de luz,
Precipita no abismo, num caudal contínuo. Olho o quadro.
Uma e outra vez olho o quadro e espero. Tento contar
O número de corpos que caem no vórtice, sem resultado.
Se um desaparece no tumulto, logo um outro corpo o substitui
Como se fosse sem fim a cegarrega do infortúnio
E a nenhum apelo pudesse a esperança alcandorar-se.
Este é um voo que a coação impele, uma queda a que nenhum
De nós será alheio, nenhum de nós deixará de interrogar
Se sobre a sua desolação o encontrar, sobre as suas
Derrogações, sobre as escarpas que tiver na vida.
Olhando o quadro nota-se que tem uma profundidade
Que ganha altura, que tem um ímpeto inexorável
Que entontece o coração, os corpos caem e somos nós a cair,
Somos nós a sofrer a expiação da espada do arcanjo,
Da crueldade divina, que tanto afirma amar-nos.
O quadro estremece, estremece sempre que o olho,
E não sei se sou eu que estremeço, se é o mundo
Que estremece por ele e por mim. Nunca está onde julgo
Que está, e é belo, e é terrífico, e enche-me de afrontas e de
dúvidas,
Como se eu estivesse nele, como se também eu caísse
Para a cloaca do inferno, sujeito ao alvedrio de um anjo
Sumptuoso mas tirânico, sob o livre arbítrio de um deus déspota
E falaz. Aceito que Rubens tivesse finalizado este quadro,
Dotando-o do rigor do seu talento. Aceito que tenha
permitido
Que a exaustão pudesse ver-se, talvez como exemplo, talvez
como
Reconhecimento de quanta fragilidade recai sobre os nossos
ombros
Se somos sumariamente julgados no juízo que de nós é feito
Sem que as nossas razões sejam pesadas, contadas as nossas
palavras
Inocentes. Aceito que ao tempo tudo indicasse
Que fosse o extravio a solução para a deriva,
Entre o bulício da reforma e da contra-reforma,
Com tantos assassinatos em presença, tantas mortes,
Tantas intrépidas traições, tanto dolo sobre a humanidade.
Aceito que Rubens elevasse a beleza ao desconcerto,
A este modo de ficarmos alucinados por tanta apoteose,
Tanto discernimento plástico sobre a tela, tanta excelência
A mostrar o que se não pode ou deve ver na derrisão
A que cada um de nós está exposto, como se mais nada
Houvesse, como se amanhã nada existisse. Mas fica-me
No olhar uma tontura, olho o quadro e espero, olho de
novo
O quadro e volto a esperar. Dele chega uma luz
Que me faz estremecer, quanto mais
O olho mais o estremecimento me invade,
Mais a escuridão se aproxima, mais a queda é extensa,
Demorada, encantatória, sedutora, entorpecente para quem
Espera ter a alma tão limpa como as mãos, o espírito
Tão nítido como um fogo que se vê ao longe,
Uma casa e a sua luz no topo de uma montanha muito escura.
Olho o quadro e sinto-me estremecer, e comigo, quem sabe
Se por mim, o quadro estremece também, esplendoroso e frágil,
A fazer de mim não mais que um farrapo sem préstimo,
Um ente que veio ao mundo com menos serventia do que uma alfaia
Agrícola ou a vela de um navio. Presumo que estes
corpos
Foram todos tirados do natural, como há época começou a
ser hábito,
Mas penso que estes corpos são mais do que parecem
Ser sobre esta tela, estão a cair, a rebolar pela escarpa
Sob o contínuo escrutínio do arcanjo Miguel
Mas parecem luminosamente corajosos, ditosos sobre o acaso
Que lhes foi destinado, bem-aventurados sobre a queda,
Magníficos e mortais no desvelo que nos mostram, na coragem
Que se lhes adivinha, a carregar o castigo que lhes foi imposto
Sem que alguém queira indagar sobre a dor que os sitia,
O perdão que alguma benevolência poderia ter-lhes dado,
alguma misericórdia, alguma graça possível.
Creio que estes corpos serão a primazia da sua humanidade,
Com os seus erros e as suas bondades, a sua fortuna e a sua
desventura,
O maligno e o benigno a que tudo se reduz, aqui uma
virtude,
Um defeito ali, já que é na perfeição que a imperfeição existe,
À imagem e semelhança de tudo o que criamos. A alta
pintura
Faz-se pela graça repartida entre os mortais
e há-de essa graça
Entender-se por sapiência, por letras gregas, latinas e
hebraicas,
Pela muita ou pouca experiência que se tem, pela força do
sangue
De quem vive, de quem olha, de quem espera e estremece
No quadro, olhando o quadro, olhando o mundo. A dor é
poderosa,
A mortandade ilimitada, a criação magnânima. Ignoro se
Deus também poderá ter sido tirado do natural da sua
intratável
Natureza, se o uso das línguas o pode descrever, se o sangue
Terá alguma vez oportunidade de responder ao que sujeita o
homem,
Se também espera, se também olha, se também estremece,
Se também faz parte da queda, tal como a queda faz parte deste
quadro.
Ignoro se Deus sabe ou não sabe perdoar e redimir,
Se a ideia que nos fez ter da astúcia que tem mais não é
Do que a reprodução exacta da sombras que o identificam,
Do que se diz ter gerado, do que nos proibiu sabendo que isso era
bom.
Deus está omisso neste quadro, mas sem dúvida que está lá,
Está lá, como sempre, embuçado, inimputável, ausente, a desferir
Os seus golpes ominosos, as suas proezas execráveis. Assim
condena
A quem ofende, sem que sequer estremeça pela sua própria criação,
Sem que olhe, de novo, sem que espere. E o mais é o
infortúnio
Dos que olham e olham, e esperam e esperam, incrédulos
Da beleza deste quadro e da crueldade divina que nele se adivinha.
Olho o quadro e espero. Olho de novo o quadro
E volto a esperar. Olho o quadro e estremeço: Olho
Aqueles corpos indefesos que rolam pela escarpa,
Aquelas almas – e por uma vez fico a saber que amanhã
Não nos iremos encontrar no paraíso.
Amadeu Baptista