30.10.22

Eugenio Montale (Vós, palavras)




Voi, mie parole, tradite in vano il morso
secreto, il vento nel cuore soffia.
La più vera ragione è di chi tace.


Eugenio Montale

 

 

Vós, palavras, traís em vão
a mordedura secreta, e o vento sopra
dentro do peito.
A razão verdadeira é de quem cala.


(Trad. A.M.)

 .



28.10.22

Eloy Sánchez Rosillo (A queda)




LA CAÍDA 

 

No sé bien qué ha pasado, 
ni cómo ha sucedido.
Hay hechos que acontecen
sin porqué, o por motivos 
que no son descifrables.
Caminaba tranquilo
bajo el sol de la tarde
y de repente he oído,
dentro de mí, como unos 
golpes sordos, el ruido
de algo que se caía
y rodaba a un abismo.
Perplejo, me he asomado
a mi interior. Y he visto
un inquietante hueco
muy hondo, y he podido
atisbar con esfuerzo
–cuando al cabo se hizo
penetrable a mis ojos
lo oscuro– un impreciso
bulto desvencijado
en el fondo tristísimo
de ese pozo. ¿Qué era?
No sabría decirlo.
¿Era un ave, era el alma?
Un confuso amasijo
de sangre y alas rotas.
Asustado, he salido
de mí mismo al instante
y he vuelto a mi camino
en esta tarde rara
del mundo. Me dirijo
despacio no sé adónde.
Anochece. Hace frío. 

ELOY SÁNCHEZ ROSILLO
Oír la luz
Tusquets Editores
(2008) 

[Apología de la luz] 

 

Não sei bem o que se passou,
nem como aconteceu,
há coisas que acontecem sem razão
precisa, ou por motivos indecifráveis.
Caminhava sossegado
ao sol da tarde
e de repente ouvi, dentro de mim,
assim como uma pancada surda,
ruído de alguma coisa caindo
e rolando para um abismo.
Perplexo, assomei ao meu
próprio íntimo. E vi um buraco
muito fundo, divisando a custo
- quando os olhos se habituaram
ao escuro - um vulto impreciso
desamarrado no fundo tristíssimo
desse poço. Era o quê?
Não saberia dizer, uma ave, a alma?
Uma misturada confusa
de sangue e de asas quebradas.
Assustado, saí de mim próprio
nesse mesmo instante
e tornei ao meu caminho
nesta tarde estranha
do mundo. Dirijo-me devagar
não sei para onde.
Anoitece, está frio.
 

(Trad. A.M.)

 .

27.10.22

Eduardo Dalter (Lua)



Luna, grave
luna, encima

de los tejados
ya húmedos;

y las calles solas,
solas,

donde se va
esfumando

la estela
de tu aliento

a cada paso.


Eduardo Dalter

 

Lua, grave
lua, por cima

dos telhados,
já molhados;

 e as ruas sós,
sozinhas,

onde se vai
esfumando

o rasto
do teu bafo

a cada passo.


(Trad. A.M.)

.         

25.10.22

Eugénio de Andrade (Elas são as mães)




Elas são as mães:
rompem do inferno, furam a treva,
arrastando
os seus mantos na poeira das estrelas.

Animais sonâmbulos,
dormem nos rios, na raiz do pão.

Na vulva sombria
é onde fazem o lume:
ali têm casa.
Em segredo, escondem
o latir lancinante dos seus cães.

Nos olhos, o relâmpago
negro do frio.

Longamente bebem
o silencio
nas próprias mãos.

O olhar
desafia as aves:
o seu voo é mais fundo.

Sobre si se debruçam
a escutar
os passos do crepúsculo.

Despem-se ao espelho
para entrarem
nas águas da sombra.

É quando dançam
que todos os caminhos
levam ao mar.

São elas que fabricam o mel,
o aroma do luar,
o branco da rosa.

Quando o galo canta
Desprendem-se
para serem orvalho.

 

Eugénio de Andrade

[Escritas]

.

23.10.22

David Mayor (Animal ferido)




ANIMAL HERIDO

 

No me meto demasiado con el pasado,
lo que me jode es el futuro.
Y luego Patti Smith se reía.
Tú lo escuchas y lo apuntas.
El tiempo como una habitación
vista con ojos extranjeros.
Aquí sentado mientras combinas elementos
del pasado y el futuro para hacer algo
que no es tan bueno como ninguno de los dos.
Un lugar que sea un no lugar,
donde el centro no está marcado por tantas decisiones,
agotado por el veneno que recuerda insistente todo lo que falta:
la muerte, que ya no es sólo una palabra,
y junto a ella la libertad clara de lo que hemos vivido;
la tenue sonrisa de un rostro que se pierde hecho memoria,
los años que son pájaro nocturno, vuelo sustancial
entre los que acompañan y los que han desaparecido.
Un dolor invencible. El intento de introducir
orden en la experiencia del miedo.
La inevitable esperanza y el inevitable desencanto.
La propia verdad como propia incertidumbre.

David Mayor

 

 

Não me meto muito com o passado,
o que me lixa é o futuro
- e a seguir Patti Smith ria-se.
Tu escuta-lo e tomas nota.
O tempo como uma casa
vista com olhos estranhos.
Aqui sentado enquanto combinas elementos
do passado e do futuro para fazer algo
que não é tão bom como qualquer dos dois.
Um lugar que seja um não lugar,
onde o centro não está marcado por tantas decisões,
esgotado pelo veneno que recorda,
insistente, tudo aquilo que falta:
A morte, que não é já só uma palavra,
e junto dela a liberdade clara do que vivemos;
o sorriso ténue de um rosto que se perde na memória,
os anos que são pássaro nocturno, voo substancial
entre os que acompanham e os que desapareceram.
Uma dor invencível, a tentativa de pôr
ordem na experiência do medo,
a inevitável esperança e o desencanto inevitável.
A própria verdade como própria incerteza.


(Trad. A.M.)

 .

22.10.22

Cristina Peri Rossi (Uma combinação de palavras)



(XXII)

 
 
El poema es, sí, una combinación de palabras,
pero su armonía no depende
—sólo—
de la 
naturaleza del sonido y de los timbres
ni del espacio vacío que desplaza,
depende, también,
de la nostalgia de infinito que despierte
y de la clase de revelación que sugiera.

 

Cristina Peri Rossi

[Marcelo Leites]

 

 

O poema é, sim, uma combinação de palavras,
mas a sua harmonia não depende
- apenas -
da natureza do som e dos timbres
nem do espaço vazio que desloca,
depende, também,
da saudade de infinito que despertar,
da espécie de revelação que sugerir.


(Trad. A.M.)

.

20.10.22

Domingos da Mota (Poética)




POÉTICA

 

O verso deve ser duro
como fio de navalha
um relâmpago no escuro
uma faúlha na palha 

o verso deve ter lume
mas sem fogo-de-artifício
o verso que acera o gume
o verso que apura o vício 


Domingos da Mota

[Triplo V]

 .

18.10.22

Claudio Bertoni (Sopa)




SOPA

 

accedí
naturalmente
y no .quedó claro
si yo le traería o no
un plato de sopa o si ella
bajaría a servírselo a la cocina
y cuando volví a preguntárselo me
dijo que porque no traía mi plato y
comíamos juntos en su pieza y cuando
se lo traje le dije que yo me había servido
mi sopa antes de que ella me pidiera que comiéramos juntos
y no era cierto


Claudio Bertoni

 

 

acedi
naturalmente
mas não ficou claro
se eu lhe levaria ou não
um prato de sopa ou se ela
desceria a servi-lo na cozinha
e quando eu voltei a perguntar ela
disse porque não levava eu o meu prato
para comermos juntos no andar dela e quando
eu depois o levei então disse que já tinha comido
a minha sopa antes de ela dizer para comermos juntos
e não era verdade


(Trad. A.M.)

.

17.10.22

Julia Gutiérrez (Umas, matou-as o insulto)




(53) 

A unas, las mató el insulto
y el desprecio, culpables
de no saber cocinar un puchero. 

Otras, asesinadas a cuchillo,
quemadas con ácido, vendidas como vacas.
A unas, las ejecutaron por valientes,
a otras, las mató el silencio y el miedo. 

Muchas, muertas en vida
por ese amor que le contaron,
otras por religión, por sexo,
por falta de recursos, por celos, 

por no estar solas, por vergüenza,
por la indiferencia de los demás,
todas, por muerte institucional
y por esos que decían quererlas. 

«Porque era mía»
«¡por mis cojones!»
palabras lápida, luto, estigma y duelo. 

Círculo de violencia que nadie rompe.
Todos son muy poco hombres.
Todas son mujeres cero.


Julia Gutiérrez



A umas, matou-as o insulto
e o desprezo, culpadas
de não saberem fazer um cozido.

Outras, assassinadas à faca,
queimadas com ácido, vendidas como gado.
A umas, executaram por valentes,
a outras, matou-as o silêncio e o medo.

Muitas, mortas em vida
por esse amor que lhes contaram,
outras pela crença, por sexo,
por falta de meios, por ciúme,

Por não estarem sós, por vergonha,
pela indiferença do próximo,
todas, por morte institucional
e por quem dizia amá-las.

‘Porque era minha’
‘pelos meus tomates!’
palavras lápide, luto, estigma e pesar.

Círculo de violência que ninguém quebra.
Todos são bem pouco homens,
todas são mulheres zero.


(Trad. A.M.)



>>  Julia Gutierrez (blogue) / Emma Gunst (vários p) / Repoelas (bio/3p)

.

15.10.22

Artur Cruzeiro Seixas (Era um pássaro)




Era um pássaro alto como um mapa 
e que devorava o azul 
como nós devoramos o nosso amor.  

Era a sombra de uma mão sozinha 
num espaço impossivelmente vasto 
perdido na sua própria extensão.  

Era a chegada de uma muito longa viagem 
diante de uma porta de sal 
dentro de um pequeno diamante.  

Era um arranha-céus 
regressado do fundo do mar. 

Era um mar em forma de serpente 
dentro da sombra de um lírio. 
Era a areia e o vento 
como escravos 
atados por dentro ao azul do luar.
 

Artur do Cruzeiro Seixas

.

13.10.22

César Cantoni (Notas para una arte poética)




NOTAS PARA UNA POSIBLE ARTE POÉTICA



La palabra es
ambigua.

El ser,
contradictorio.

Lo real,
insondable.

La verdad,
esquiva.

Toda interpretación,
dudosa.


César Cantoni

.

12.10.22

Cecília Casanova (Autocrítica)




AUTOCRÍTICA

 

Mi poesia
Es sin efectos especiales
En blanco y negro
Como una vieja película.


Cecilia Casanova

 


Minha poesia
não tem efeitos especiais
e é a preto e branco
como um filme antigo.


(Trad. A.M.)

 .


10.10.22

Armindo Rodrigues (Elegia por antecipação)




ELEGIA POR ANTECIPAÇÃO À MINHA MORTE TRANQUILA

 

Vem, morte, quando vieres.
Onde as leis são vis, ou tontas,
não és tu que me amedrontas.
Troquei por penas prazeres.
Troquei por confiança afrontas.
Tenho sempre as contas prontas.
Vem, morte, quando quiseres.


Armindo Rodrigues

 .

8.10.22

Batania (A minha cidade)




MI CIUDAD 

 

Extraña ciudad la mía,
aquí se dice que habitan
tres millones de personas,
pero miro en la calle el trabajo en el súper el bar
en el banco en el bus en el metro en el cine el estadio
y acabo pensando
que en realidad no habita más que
una
sola
persona
tres millones de veces.
 

Batania 

[Emma Gunst

 

Estranha cidade a minha,
aqui se diz que habitam
três milhões de pessoas,
mas olho na rua no trabalho no super no bar
no banco no estádio no cinema no metro
e acabo pensando
que na realidade não vive mais do que
uma

pessoa
três milhões de vezes. 

(Trad. A.M.)

 .

7.10.22

Begoña Abad (Pergunto-me)




Me pregunto
a quién le faltará
todo lo que a mí me sobra.
 

Begoña Abad 

 

Pergunto-me
a quem faltará 
tudo aquilo
que a mim me sobra.
 

(Trad. A.M.)

 .

5.10.22

Cristovam Pavia (Requiem)




REQUIEM

 

                                                     (ao menino morto, eu próprio)

A tarde declina com uma luz ténue.
Estou grave e calmo.
E não preciso de ninguém
Nem a luz da tarde me comove: entendo-a.
Até as imagens me são inúteis porque contemplo tudo.

Os ventos rodam, rodam, gemem e cantam
E voltam. São os mesmos.
Como os conheço desde a infância!
E a terra húmida das tapadas da quinta...
O estrume da égua morta quando eu tinha seis anos
Gira transparente nesta brisa fria...
(Na noite gotas de orvalho sumiam-se sob as folhas das ervas)
Oh, não há solidão, nas neblinas de inverno
Pela erma planície...
E foi engano julgar-te morto e tão só nas tapadas em silêncio...

Agora sei que vives mais
Porque começo a sentir a tua presença, grande como o silêncio...
Já me não vem a vaga tristeza do teu chamamento longínquo
Já me confundo contigo.

Cristovam Pavia

[Um reino maravilhoso]

 .

3.10.22

Antonio Porchia (Un poco de ingenuidad)




Un poco de ingenuidad 
nunca se aparta de mí. 
Y es ella la que me protege


Antonio Porchia

.

2.10.22

Antonio Fernández Lera (Com as mãos vazias)




(51) 

Com as mãos vazias
entrelaçamos tempos 

Acendemos fogueiras
para ver o fogo 

Quando vem a chuva
observamos devagar 

sua luz nos vidros
e nas pedras? 

O que buscamos?
O que somos?
 

ANTONIO FERNÁNDEZ LERA
Poemas lentos 
(2012-18) 

(Trad. A. M.)

 .