30.9.22

Domingos da Mota (Segundo poema de Natal)




SEGUNDO POEMA DE NATAL

 

Pudesse do Natal dizer que é mais
que o corre-corre, que a lufa-lufa,
que a passada célere demais,
que a mole humana que se adensa e arrufa
e satura nos amplos corredores,
nas ruas e nas lojas, nos mercados
(valendo-se da casa de penhores,
como outrora do livro de fiados);
pudesse do Natal dizer que é muito,
muito mais que o bulício que se sente
atraído pelo larvar intuito
da febre consumista, futilmente,
que faz da pretensão de ter e haver
o santo-e-senha contra o próprio ser. 
 

Domingos da Mota



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.

 


28.9.22

Ángel Manuel Gómez Espada (Poética)




POÉTICA 

 

Leer un poema cojonudo, de esos que te desordenan 
las tres o cuatro verdades del día. 
Querer envolverlo, emularlo, rumiarlo. 
y después de muchas vueltas, 
conformarte con lo poco que has dejado escrito.
Y rezar un tanto para que los demás no noten el jodido fraude.


Ángel Manuel Gómez Espada

 

 

Ler um poema do caraças, desses que te desordenam
as três ou quatro verdades do dia.
Querer envolvê-lo, emulá-lo, remoê-lo,
e depois de muitas voltas
conformar-te com o pouco de teu que lhe meteste.
E rezar para que os outros não notem a merda da fraude.


(Trad. A.M.)

.

27.9.22

Ángel González (Cidade zero)




CIUDAD CERO

 

Una revolución.
Luego una guerra.
En aquellos dos años - que eran
la quinta parte de toda mi vida -
yo había experimentado sensaciones distintas.
Imaginé más tarde
lo que es la lucha en calidad de hombre.
Pero como tal niño,
la guerra, para mí, era tan sólo:
suspensión de las clases escolares,
Isabelita en bragas en el sótano,
cementerios de coches, pisos
abandonados, hambre indefinible,
sangre descubierta
en la tierra o las losas de la calle,
un terror que duraba
lo que el frágil rumor de los cristales
después de la explosión,
y el casi incomprensible
dolor de los adultos,
sus lágrimas, su miedo,
su ira sofocada,
que, por algún resquicio,
entraban en mi alma
para desvanecerse luego, pronto,
ante uno de los muchos
prodigios cotidianos: el hallazgo
de una bala aún caliente,
el incendio
de un edificio próximo,
los restos de un saqueo
-papeles y retratos
en medio de la calle…
Todo pasó,
todo es borroso ahora, todo
menos eso que apenas percibía
en aquel tiempo
y que, años más tarde,
resurgió en mi interior, ya para siempre:
este miedo difuso,
esta ira repentina,
estas imprevisibles
y verdaderas ganas de llorar.

Ángel González

[Trianarts]

 

 

Uma revolução,
a seguir uma guerra.
Naqueles dois anos - que eram
um quinto da minha vida toda -
eu tinha experimentado sensações distintas.
Imaginei mais tarde
o que é a luta enquanto homem.
Mas enquanto criança,
a guerra para mim era apenas:
suspensão das aulas,
a Isabelita na cave em cuecas,
cemitérios de carros, andares
abandonados, fome indefinível,
sangue à vista na terra ou nas pedras da calçada,
um terror que durava
o mesmo que o frágil rumor dos vidros
depois da explosão,
e a quase incompreensível 
dor dos adultos,
suas lágrimas, seu medo,
sua ira sufocada,
que por algum resquício 
me entravam na alma
para depois se desvanecerem, rapidamente,
perante um dos muitos 
prodígios quotidianos: o achado
de uma bala ainda quente,
o incêndio de um edifício perto,
os restos de uma pilhagem
 - papéis e retratos no meio da rua...
Tudo passou,
tudo é vago agora,
tudo menos aquilo 
que mal percebia nesse tempo
e que anos mais tarde ressurgiu
no meu peito, agora para sempre:
este medo difuso,
esta ira repentina,
esta imprevisível e verdadeira
vontade de chorar.

(Trad. A.M.)

 .

25.9.22

Fernando Assis Pacheco (Memórias do contencioso-1)



MEMÓRIAS DO CONTENCIOSO 


E sequem-se-me os dedos a cabeça estoire 
e não fique de tudo uma palavra 
se a maldição for tanta que eu te esqueça 

 e não reste sequer o chão e não de quantas ruas e não já reste a cidade
 e seja a memória deste homem um escárnio ocultado por quinze gerações de vindouros 
com seus cães que se deitam aos pés das pessoas 
e parecem adivinhar a linguagem monstruosa das narinas resfolegando 

 se a maldição for tanta e tão perfídia 
que eu te esqueça na morte, que eu te esqueça 


Fernando Assis Pacheco 


23.9.22

Ana Pérez Cañamares (Espécies de autodefesa)




CLASES DE AUTODEFENSA

 

Pelear no estaba escrito
en mi carácter
-ese guión escrito por otros. 

Estas patadas al aire
que llevo dando toda la vida
sólo pretendían desprender
las etiquetas pegadas
a las suelas del zapato. 

Ahora que lo necesito
tengo al menos
aprendido el gesto.
 

Ana Pérez Cañamares

 [Literatura y poesia]

 


Batalhar não estava escrito
em meu carácter
- esse guião escrito por outros.

Estes pontapés no ar
que vou dando desde sempre
eram só para desprender
as etiquetas coladas
nas solas dos sapatos

Agora que o preciso
tenho ao menos
o gesto aprendido.
 

(Trad. A.M.)

.

22.9.22

Alfredo Buxán (Só em sonhos)




SÓ EM SONHOS 

 

Sonhei que dormias ainda a meu lado
e acariciei-te os ombros no ar.
Acordado já de todo, não houve nada.
Só o silêncio espesso de tua ausência.
A cama por fazer.
                            A alma morta.
E nos lábios a areia do deserto.

 

ALFREDO BUXÁN
Las Palabras Perdidas
(Poesía 1989-2008)
Bartleby Editores (2011)

 
(Trad. A.M.)

.

20.9.22

Louise Glück (Imagem de espelho)



MIRROR IMAGE 

 

Tonight I saw myself in the dark window as
the image of my father, whose life
was spent like this,
thinking of death, to the exclusion
of other sensual matters,
so in the end that life
was easy to give up, since
it contained nothing: even
my mother’s voice couldn’t make him
change or turn back
as he believed
that once you can’t love another human being
you have no place in the world.
 

Louise Glück 

 

Hoje vi-me no espelho do vidro da janela
com a imagem de meu pai, que levou
a vida toda assim,
a pensar na morte, 
com exclusão de tudo o mais,
de modo que foi fácil no fim
entregar a vida, pois não tinha
nada dentro; mesmo a voz
de minha mãe não conseguia fazê-lo mudar
ou tirar-lhe a ideia de que
quem não é capaz de amar outra pessoa
não tem lugar neste mundo.
 

(Trad. A.M.)

.

18.9.22

Alfonso Brezmes (A heresia)




A HERESIA

 

Giordano Bruno foi queimado
por afirmar que havia
outros mundos para além
deste planeta finito.

Eu habito outra fogueira
mais espantosa ainda
- ter de te ir buscando
por esses mundos distantes
até poder tirar a limpo
se meus poemas mentiam,
e é verdade que tu não existes.

ALFONSO BREZMES
Vícios Ocultos
(2019)

(Trad. A.M.)

 .

17.9.22

Alejandra Pizarnik (Os do oculto)




LOS DE LO OCULTO 

 

Para que las palabras no basten
es preciso alguna muerte en el corazón.
 

La luz del lenguaje me cubre como una música,
imagen mordida por los perros del desconsuelo,
y el invierno sube por mí
como la enamorada del muro.
 

Cuando espero dejar de esperar,
sucede tu caída dentro de mí.
Ya no soy más que un adentro.
 

Alejandra Pizarnik 

[Life vest under your seat]

 

  

Para as palavras não bastarem
é preciso a morte no coração. 

A luz da linguagem cobre-me como uma música,
imagem mordida pelos cães do desespero,
e o Inverno sobe por mim acima
como a enamorada pelo muro. 

Quando espero deixar de esperar,
cais tu dentro de mim.
Não sou mais já do que um dentro. 

(Trad. A.M.)

.


15.9.22

Bertolt Brecht (Epitáfio para M.)




EPITÁFIO PARA M.

 

Escapei aos tubarões
Abati os tigres
Fui devorado 
Pelos percevejos.

Bertolt Brecht

(Trad. P. Quintela)

.

13.9.22

Aldo Luis Novelli (Escrevivendo)






ESCRIVIVIENDO

 

los temas son siempre los mismos
miro por la ventana
veo un hombre y una mujer
amándose sobre la tierra fértil
la semilla rompiendo la corteza
la simiente humana
creando un milagro extraordinario
hombres y mujeres luchando
contra el viento en el desierto
el amor que se fue
montado en un dragón volador
divisar en el horizonte 
las bardas oxidadas de tiempo
la utopía socialista
latiendo en un puño en alto
darle de comer a la dragona
que está en el fondo de la casa
el solitario placer
de beber bajo las estrellas
escribir en medio de la tempestad
aunque afuera haya un inmenso sol
charlar hasta la madrugada
con los amigos del bar de la esquina
luchar por la revolución
de las ideas y los cuerpos sensibles
jugar al truco y ganarles
a los borrachos que siempre vienen
a buscar un vaso de vino
construir una escalera infinita
para llegar a un cielo inalcanzable
perseguir en el agua sucia
al pez de colores de la felicidad
vibrar con las mujeres
que se desnudan en mis noches
esperar que alguna tarde luminosa
ella abra la puerta
escribir en el aire
poemas que el viento se llevará
buscar flores azules en el desierto
andando el camino que nunca termina
seguir intentando lo imposible
cada nuevo sol de los ojos


los temas son siempre los mismos
cambia la forma de decir
la manera de mirar
de este lector que camina
por el pellejo del mundo
se hace más viejo pero no más sabio


Aldo Luis Novelli

 

 

os temas são sempre os mesmos
olho pela janela
vejo um homem e uma mulher
a amar-se sobre a terra fértil
a semente rasgando a casca
a semente humana
a criar um milagre extraordinário
homens e mulheres lutando
contra o vento no deserto
o amor que se foi
montado num dragão voador
divisar no horizonte
as cercas oxidadas de tempo
a utopia socialista
pulsando num punho erguido
dar de comer à dragona
que está no fundo da casa
o solitário prazer
de beber sob as estrelas
escrever no meio da tempestade
embora lá fora esteja um sol esplêndido
conversar até de madrugada
com os amigos do bar da esquina
lutar pela revolução
das ideias e dos corpos sensíveis
jogar à moeda e ganhar
aos borrachos que vêm sempre
em busca de um copo de vinho
construir uma escada infinita
para chegar a um céu intangível
perseguir na água ludra um peixe
com as cores da felicidade
vibrar com as mulheres
que se desnudam na minha noite
esperar que ela abra a porta
numa certa tarde luminosa
escrever no vento
poemas que o vento arrastará
buscar flores azuis no deserto
fazendo o caminho que nunca termina
continuar sempre a tentar o impossível
cada novo sol dos olhos

os temas são sempre os mesmos
muda é a forma de dizer
o modo de olhar
deste leitor que caminha
pelo carreiro da vida
fazendo-se mais velho, mas não mais sábio


(Trad. A.M.)

.

12.9.22

José María Valverde (Elegia da foto de uma rapariga)




ELEGÍA A LA FOTOGRAFÍA DE UNA MUCHACHA DESCONOCIDA 



Tendrías quince años cuando quedaste inmóvil
aquí, en la cartulina de suavísima niebla.

Te vuelves a mirarnos - con unos ojos negros,
dulces, hondos y frescos como grutas -
desde el escorzo grácil de tu cuerpo.
Dime, ¿de dónde viene tu mirada?
Habla de cosas dulces y pequeñas,
de tu vida, tu casa,
tu piso, bosque umbroso de sueños y recuerdos
–tú eres la cierva blanca en su espesura–
el balcón donde ves pasar las nubes,
los viejos y borrosos retratos de la sala,
las butacas de verde terciopelo gastado,
el piano, negro, mudo, con ecos -como un pozo-
y el bullir y las voces, apagadas
y vagas, de la sombra en los rincones...
(¡Ay tus sueños de niña!
¡Cómo están en el fondo de tus ojos
muriendo dulcemente!
Estrenabas la vida;
aquel día morías y nacías.
Y aquí, en este retrato,
frente al blanco camino,
dejaste tu niñez en la mirada.)
Esa luz que ha quedado contigo prisionera
en tu clara laguna,
es la luz que conservan
las cosas de la abuela puestas en la vitrina.

Ya te habrás olvidado. ¡Qué muerta estás aquí!
¿Dónde estarás ahora?
...Días, calles, olvidos, amores y tristezas,
relojes, calendarios, trajes, cuerpos, ventanas,
tejas, lluvias, tarjetas, zapatos ya gastados,
tranvías, ruedas, nubes, sueños, tardes, mañanas,
inviernos y veranos, rosas secas, revistas,
muertos, libros, silencios, músicas, risas, llantos,
arroyos y caminos, montañas, bosques, mares,
y un montón de minutos iguales como arenas
me separan de ti.
Pero en mi orilla queda tu retrato olvidado.

...Tendrías quince años. Yo, entonces, estaría
paseando mis sueños de niño no sé dónde.
¿Dónde estarás ahora?
Oh muchacha lejana que quizá hubiera amado
de no ser por el tiempo, el tiempo... siempre el tiempo...


José María Valverde

[La ceniza]

 

 

Terias quinze anos quando ficaste parada
aqui, na cartolina de suavíssima névoa.

Viras-te a olhar para nós
– com uns olhos negros, profundos, doces e frescos como grutas –
a partir do perfil grácil de teu corpo.
Diz-me cá, donde vem o teu olhar?
Ele fala de coisas doces e miúdas,
da tua vida, da tua casa, do teu andar,
bosque sombrio de sonhos e de lembranças
- tu és a cerva branca desse bosque -
da varanda onde vês as nuvens a passar,
os velhos e apagados retratos da sala,
os cadeirões de veludo verde já gasto,
o piano, negro, mudo, com eco - como um poço -
e a agitação e as vozes, apagadas
e vagas, da sombra nos cantos…
Ai sonhos teus de menina,
lá no fundo dos teus olhos, morrendo docemente!
A vida a estrear,
naquele dia morrias  e renascias.
E aqui, neste retrato,
em frente ao caminho branco.
deixaste no olhar a tua meninice.
Essa luz que ficou presa contigo
é a mesma que conservam
as coisas da avó guardadas na vitrina.

Já te esqueceste, se calhar. Que morta que estás aqui!
Onde andarás tu agora?
… Dias, ruas, olvidos, amores e tristezas,
relógios, calendários, vestidos, corpos, janelas,
telhas, chuvas, sapatos já gastos,
eléctricos, rodas, nuvens, sonhos, tardes, manhãs,
invernos e verões, rosas secas, revistas,
mortos, livros, silêncios, músicas, risos, prantos,
ribeiros e caminhos, montanhas, bosques, mares,
tudo isso me separa de ti.
Mas junto de mim resta o teu retrato esquecido.

Terias então quinze anos. E eu andaria a passear
os meus sonhos de menino, sei lá por onde.
Onde é que andarás tu agora?
Ó rapariga distante, que eu teria porventura amado,
se não fosse o tempo, o tempo… sempre o tempo!...


(Trad. A.M.)

 .

10.9.22

António Cabral (Canção)




CANÇÃO

 

Ela caminhava toda,
tudo nela caminhava.

Seu corpo de húmida uva
abandonava-se em rios.

Divergência convergente,
uma árvore fluente.

Átrio de rosas, colmeia,
espiga de água seria.

Toda de sim contornada
de não que de sim ardia.


ANTÓNIO CABRAL
Emigração Clandestina
(1977)

.

8.9.22

Yolanda Castaño (Janelas)



VENTANAS

 

Son
una ventana abierta al mundo. 

El racimo de una región. Un cielo diletante.
La mandíbula del horizonte llenándose como un vaso. 

Las nuestras antes estaban
hechas de madera vieja;
responso tonto del bosque,
ajuar poroso y podrido, una
rutina de corteza seca día a día perdiendo centro. 

¿Te acuerdas de cómo se las podía horadar con la uña del dedo meñique?
Mira que te he hablado veces de la conciencia.

 Cáscara del castaño, quillas de nuestro asombro. 

Este es el cristalino de la casa ungido por la transparencia.
Pulguitas de luz repican en los marcos. 

A veces teníamos que poner un tope
improvisado para mantenerlas abiertas.
O no cerraban bien,
y el viento entraba silbante y violador por una grieta
hasta el puro hogar de nuestras casas. 

¿Cómo prescindir de ellas? ¿Cómo estar sin estar? 

Por eso ahora sonreímos felices, satisfechos,
emprendimos reformas e instalamos por fin las radiantes,
las inteligentes nuevas ventanas.
Como pájaros oscilobatientes encajan, reverencian. 

Se abren
para dentro.

 

Yolanda Castaño

  

 

São
uma janela aberta ao mundo.

O cacho de uma região. Um céu diletante.
A mandíbula do horizonte a encher-se como um copo.

As nossas dantes eram feitas de madeira velha;
responso tonto do bosque,
enxoval podre e esburacado, uma
rotina de casca seca a perder miolo dia a dia.

Lembras-te como se podiam furar com a unha do dedo mindinho?

Casca do castanheiro, quilhas do nosso assombro.

Este é o cristalino da casa ungido pela transparência.
Pulguitas de luz repicam nos caixilhos.

Às vezes tínhamos de pôr uma trava
improvisada para as manter abertas.
Ou não fechavam bem,
e o vento entrava a assobiar por uma fresta
até à lareira das nossas casas.

Como prescindir delas? Como estar sem estar?

Por isso agora sorrimos felizes, satisfeitos,
fazemos reformas e pomos enfim as radiantes,
as inteligentes novas janelas.
Como pássaros oscilo-batentes encaixam, reverenciam.

Abrem-se
para dentro.


(Trad. A.M.)

.

7.9.22

Francisca Aguirre (Não vos confundais)



NO OS CONFUNDÁIS 

 

Y cuando ya no quede nada
tendré siempre el recuerdo
de lo que no se cumplió nunca.
Cuando me miren con áspera piedad
yo siempre tendré
lo que la vida no pudo ofrecerme.
Creedme:
Todo lo que pensáis que fue destrozo y pérdida
no ha sido más que conjetura.
Y cuando ya no quede nada
siempre tendré lo que me fue negado.
No os confundáis: con lo que nunca tuve
puedo llenar el mundo palmo a palmo.
Tanto miedo tenéis que no habéis advertido
la riqueza que se oculta en la pérdida.
Desdichados,
poca ganancia es la vuestra
si nunca habéis perdido nada.
Yo sí he perdido:
Yo tengo, como el náufrago,
toda la tierra esperándome.
 

Francisca Aguirre 

[Otra iglesia]

 

 
E quando já não me reste nada
terei sempre a lembrança 
do que nunca se cumpriu.
Quando me olharem com piedade
eu hei-de ter sempre
o que a vida não me pôde dar.
Juro,
tudo quanto pensais que foi derrota e perda
não foi mais que conjectura.
E quando nada mais restar
eu terei sempre aquilo que me negaram.
Não vos confundais, com aquilo que nunca tive
eu posso cobrir o mundo palmo a palmo.
Tanto medo tendes que não sabeis
a riqueza que está por trás da perda.
Ó infelizes,
pouca ganância será a vossa
se nunca perdestes nada.
Eu sim, que perdi,
eu tenho, tal como o náufrago,
a terra toda à minha espera.
 

(Trad. A.M.)

_______________________

- Como por vezes sucede, dou-me conta anos depois que este poema está repetido, pois já fora apresentado aqui
   (Francisca Aguirre, Não vos confundais).
   Contudo, sendo o poema o mesmo e o mesmo, obviamente, o tradutor, na verdade as duas traduções são distintas,      patenteando algumas diferenças relevantes. Ficam ambas como estão, por isso mesmo...

.

5.9.22

Tanussi Cardoso (As mortes)



AS MORTES

 

quando o primeiro amor morreu 
eu disse: morri 

quando meu pai se foi 
coração descontrolado 
eu disse: morri 

quando as irmãs, mortas 
a tia morta 
eu disse: morri 

depois, a avó do Norte 
os amigos da sorte 
os primos perdidos 
o pequinês, o siamês 
morri, morri 

estou vivo
a poesia pulsa
a natureza explode
o amor me beija na boca
um Deus insiste que sim 

sei não
acho que só vou
morrer
depois de mim


Tanussi Cardoso

 .

3.9.22

Raúl Gustavo Aguirre (Também eu estou destroçado)



Yo también estoy destrozado
a pesar de que (dentro de mis limitadas posibilidades) visto correctamente,
me afeito todos los días, excepto los domingos,
visito mensualmente al peluquero y de vez en cuando al dentista,
lustro mis zapatos y desempeño con aplicación ciertos oficios irreales
tales como bibliotecario, profesor y jefe de familia.
Y aunque Rimbaud me pasma y admiro a Gottfried Benn, 
quien dijo que el cerebro es nuestra tarea y nuestra maldición,
y soy capaz como cualquiera de entusiasmarme con la pampa
cuando viajo y exclamar: ¡qué increíble país!,
y no exhibo ninguna actitud filosófica original con respecto
al desgarramiento que significa la existencia,
yo también, mis amigos, yo también, les juro y aseguro,
yo también estoy destrozado. 

Cuándo empezó a romperse todo en mí no sabría decirlo.
Posiblemente fue cuando vi llorar a mi abuelo por falta de trabajo
o cuando vi llorar a mi padre por el mismo motivo,
o cuando un capitán me trató de piojoso
o cuando vi apalear a mis amigos
por la simple razón de soñar en voz alta
o cuando vi una prímula en la hierba
o cuando vi el fantasma de una estrella de mar, seco en una vitrina. 

No sabría decir cuándo empezó a romperse todo en mí,
cuándo fui destruido por una infinita desazón
cuándo se puso amarga la belleza en mi copa
pero lo cierto, amigos,
y a pesar de que bajo determinadas condiciones me
conduzco de un modo bastante razonable,
yo también soy un hombre de los que arrastran sus pedazos
por una tierra sin sentido.
 

Raúl Gustavo Aguirre

[Otra iglesia]

 

 

Eu também estou destroçado,
apesar de (dentro das minhas possibilidades) vestir correctamente,
de fazer a barba todos os dias, menos aos domingos,
de ir ao barbeiro uma vez por mês e ao dentista de vez em quando,
de engraxar os sapatos e exercer certos múnus irreais,
como bibliotecário, professor ou chefe de família.
E embora Rimbaud me assombre e admire também Gottfried Benn,
que disse ser o cérebro nossa tarefa e maldição,
eu sou capaz como outro qualquer de me entusiasmar com a pampa,
em viagem, e exclamar: ‘que país incrível!’,
aliás não tenho qualquer postura filosófica original com respeito
à ruptura que implica a existência,
eu também, meus amigos, também eu, juro-vos e asseguro-vos,
também eu estou destroçado.

Quando é que começou tudo a partir-se em mim, não saberia dizê-lo,
se calhar foi quando vi o meu avô a chorar por falta de trabalho,
ou quando vi chorar o meu pai pelo mesmo motivo,
ou quando um capitão me chamou de piolhoso,
ou quando vi os meus amigos agredidos
pela simples razão de sonharem em voz alta,
ou quando vi uma prímula no meio da erva,
ou o fantasma de uma estrela do mar, seco numa vitrina.

Não saberia dizer quando é que começou tudo a partir-se em mim,
quando se apossou de mim um terrível mal-estar,
quando se tornou amarga a beleza no meu copo,
mas o certo, meus amigos,
apesar de eu me portar bastante bem em certas condições,
o certo é que também eu sou um homem desses
que arrastam os seus bocados
por uma terra sem sentido.


(Trad. A.M.)

.

2.9.22

José Antonio Labordeta (Foram-se todos)




SE HAN MARCHADO 

 

Se han marchado todos
y nadie ha vuelto
para cerrar la puerta.
Esta, vieja y desguazada,
golpea contra el viento
en las noches de asombro
como si nadie la quisiera oír,
como si todos los páramos del tiempo
se encerrasen aquí,
sobre estas galerías de casas agrietadas.
Y lejos,
más allá de las últimas carrascas,
alguien recuerda la cama
donde fue concebido con tristeza.
 

José Antonio Labordeta 
 

 

Foram-se todos,
ninguém voltou atrás 
a fechar a porta.
Esta, velha e desconjuntada,
fica a bater com o vento
em noites de assombro
como se ninguém quisesse ouvi-la,
como se todos os páramos do tempo
se encerrassem aqui,
nestas casas de paredes gretadas.
E ao longe,
para além dos últimos carvalhos,
alguém recorda com tristeza
a cama onde foi concebido.
 

(Trad. A.M.)

 .