30.10.21

Antonio Gamoneda (Hoje, domingo)






HOY, DOMINGO

 

La nieve cruje como pan caliente
y la luz es limpia como la mirada de algunos seres humanos,
y yo pienso en el pan y en las miradas
mientras camino sobre la nieve.

Hoy es domingo y me parece
que la mañana no está únicamente sobre la tierra
sino que ha entrado suavemente en mi vida.

Yo veo el río como acero oscuro
bajar entre la nieve.
Veo el espino: llamear el rojo,
agrio fruto de enero.
Y el robledal, sobre tierra quemada,
resistir en silencio.

Hoy, domingo, la tierra es semejante
a la belleza y la necesidad
de lo que yo más amo.

Antonio Gamoneda

 

 

A neve estala como pão quente
e a luz é limpa assim como o olhar de certos seres humanos,
e eu penso no pão e nesses olhares
enquanto caminho sobre a neve.

É domingo, hoje, e eu sinto
que a manhã não está apenas sobre a terra,
mas entrou suavemente na minha vida.


Vejo o rio, como escuro aço,
descendo por entre a neve.
Vejo o espinheiro, flamando o vermelho,
fruto acre de Janeiro.
E o carvalhal, sobre terra queimada,
resistindo em silêncio.


Hoje, domingo, a terra é semelhante
ao belo e ao necessário
daquilo que eu mais amo.

(Trad. A.M.)

.

29.10.21

Antonio Fernández Lera (Sem palavras)



(37)

 Sem palavras
o mundo não seria mundo.

 Seria melhor?
 

ANTONIO FERNÁNDEZ LERA
Poemas lentos 
(2012-18) 

(Trad. A. M.)

.

27.10.21

Mark Strand (Sete poemas)




SEVEN POEMS (For Antonia)

 

 1
At the edge
of the body’s night
ten moons are rising. 

2
A scar remembers the wound.
The wound remembers the pain.
Once more you are crying. 

3
When we walk in the sun
our shadows are like barges of silence.

 4
My body lies down
and I hear my own
voice lying next to me.

 5
The rock is pleasure
and it opens
and we enter it
as we enter ourselves
each night. 

6
When I talk to the window
I say everything
is everything 

7
I have a key
so I open the door and walk in.
It is dark and I walk in.
It is darker and I walk in.
 

Mark Strand

[Otra iglesia]

 

 

 1
Na beira
do corpo da noite
dez luas nascendo. 

2
Uma cicatriz lembra a ferida,
a ferida lembra a dor.
E lá estás tu a chorar outra vez. 

3
Ao caminharmos sob o sol
são como barcas de silêncio
as sombras. 

4
Meu corpo está deitado
e eu oiço a minha voz
deitada a meu lado.

 5
A rocha é prazer
e abre-se
e nós entramos nela
como entramos todas as noites
em nós mesmos.

 6
Quando eu falo para a janela
eu digo que tudo
é tudo.

7
Tenho a chave
abro a porta e entro,
está escuro e eu entro,
mais escuro e eu entro.


 
(Trad. A.M.)

.


25.10.21

Antonio Deltoro (Domingo)



DOMINGO

 

Me siento solo como un dedo al que le faltara mano.
El domingo es un híbrido, un animal
con pies de sábado y cabeza de lunes,
tierra de nadie que respira aburrimiento, comidas familiares.
Es un juego de cartas donde no se arriesga,
música con sordina, sobremesa.
El domingo es anacrónico, corre despacio por miedo al despeñadero,
al infarto del lunes, al infierno:
en el domingo los audaces se juegan más que la semana.
El domingo es un día por decreto oficial, un falso día.
El domingo amanece tarde y anochece temprano,
es un crepúsculo precoz, entre paredes,
pesado.

Antonio Deltoro

 

Sinto-me só como um dedo a que faltasse a mão.
O domingo é um híbrido, um animal
com pés de sábado e cabeça de segunda,
terra de ninguém que respira tédio, comidas familiares.
É um jogo de cartas onde não se arrisca,
música em surdina, pausa.
O domingo é anacrónico, corre devagar, por medo do abismo,
do infarto de segunda, do inferno.:
ao domingo os audazes jogam mais do que a semana.
O domingo é um dia por decreto, um falso dia.
O domingo amanhece tarde e anoitece cedo,
é um crepúsculo precoce, entre paredes,
pesado.


(Trad. A.M.)


24.10.21

Antonio Colinas (Signos na pedra)




SIGNOS EN LA PIEDRA

 

Sigue la senda de las piedras musgosas,
la que conduce a la gran roca,
a la raíz del ara, a la raíz del tiempo.
Mira la nieve humilde de la cima
tutelar.
Posa en ella tus ojos.
Luego pósalos en el ara.
Posa también tus manos:
que se aquieten tus manos como palomas,
que echen raíces
en el silencio helado de la piedra.
Verás en ella señales muy leves,
signos dictados por el firmamento,
los símbolos de un tiempo infinito
revelación del alma que no muera.
No podrás ir más allá.
No debes ir más allá.

Antonio Colinas

 

 

Segue o caminho das pedras com musgo,
o que leva à grande rocha,
à raiz da ara, à raiz do tempo.
Olha para a neve humilde, do cume
tutelar.
Põe os teus olhos nela,
depois põe-nos na ara.
Põe as mãos também,
que sosseguem como pombas,
que deitem raízes 
no silêncio gelado da pedra.
Verás nela sinais muito ligeiros,
signos ditados pelo céu, 
símbolos de um tempo infinito,
revelação da alma que não morra.
Não podes ir mais além,
não deves ir mais além.

(Trad. A.M.)

.

22.10.21

Cristovam Pavia (Ao meu cão 'Fixe')




AO MEU CÃO 'FIXE'

 

Agora os crepúsculos são frios
e a brisa traz a humidade das folhas mortas...
Tu, meu cão, cerras os olhos e dormes...
Vem aí Dezembro...
Tenho saudades do teu silêncio,
do teu focinho macio e quente,
do teu olhar,
meu amigo!
Oh! meu cão, para ti ainda sou o teu dono menino
e és o único que me acompanha nos passeios mágicos...
Depressa lá estarei contigo. Dezembro aproxima-se...
Agora os crepúsculos são frios...


Cristovam Pavia

 .

20.10.21

Ángel Campos Pámpano (Siquer este refúgio-VI)



SIQUIERA ESTE REFUGIO (VI)


               

Hay un camino fugaz en cada página, una palabra inaugural, un acorde medido, casi inaudible, que subraya el ritmo de los días y se adentra en ti y te sostiene. Y hay otras palabras -escribió Cesariny- que nos suben ilegibles a la boca, palabras imposibles de escribir, palabras maternales, soledad deshecha.

Ángel Campos Pámpano

 

 

Há um caminho fugaz em cada página, uma palavra inaugural, um acorde medido, quase inaudível, que sublinha o ritmo dos dias e penetra em ti e te mantém. E há outras palavras – disse Cesariny – que nos sobem ilegíveis à boca, palavras impossíveis de escrever, palavras maternais, solidão desfeita.


(Trad. A.M.)

.

19.10.21

Ángel Manuel Gómez Espada (Visita inesperada)




VISITA INESPERADA



No vengas, Inspiración, esta mañana
golpeando a mi puerta. No quiero
verte derribando mis templos.
Debo terminar lo que estoy haciendo:
lavarme los dientes, poner café,
estudiar un rato mis oposiciones,
reordenar un poco las esquinas
de mi vida, llenas de mugre,
de recuerdos tiernos, pero inútiles.
No vengas a despertarme temprano,
no digas toma, escribe, aquí tienes
tu mejor poema. Si te acercas ahora
por mi cuarto, te echaré por la ventana.
Hoy no tengo cuerpo para la poesía.

Y, sin embargo, en este antepenúltimo verso
comienzo, inquieto, a escuchar tu risa.

Mira que llegas a ser puta, amiga mía.

Ángel Manuel Gómez Espada

 

 

Não venhas, Inspiração, bater-me à porta
esta manhã. Não te quero ver 
a derrubar-me os templos.
Tenho de acabar o que estou a fazer,
lavar os dentes, pôr café,
estudar para o exame,
reordenar um pouco as esquinas
da minha vida, cheias de surro,
de ternas lembranças, mas inúteis.
Não venhas acordar-me cedo, 
não digas toma, escreve, aqui tens
o teu melhor poema
. Se me entras agora
no quarto, atiro-te pela janela.
Hoje não estou virado para poesia.

E, todavia, neste antepenúltimo verso,
começo, inquieto, a escutar o teu riso.

Ah, que puta que te fazes, minha amiga.

(Trad. A.M.)

 .


17.10.21

Ângelo de Lima (Para-me de repente o pensamento)




PARA-ME DE REPENTE O PENSAMENTO

 

Para-me de repente o pensamento
como que de repente refreado
na douda correria em que levado
Ia em busca da paz, do esquecimento... 

Pára surpreso, escrutador, atento,
como pára um cavalo alucinado
ante um abismo súbito rasgado...
Pára e fica e demora-se um momento. 

Pára e fica na douda correria...
Pára à beira do abismo e se demora
e mergulha na noite escura e fria 

um olhar de aço que essa noite explora...
Mas a espora da dor seu flanco estria
e ele galga e prossegue sob a espora.


Ângelo de Lima

 .

15.10.21

Angel Guinda (Talvez)




TAL VEZ…

 

Tal vez
la vida verdadera sea esto.
Estar solo
sentado bajo un tejo frente al mar;
y, al fondo, la montaña.
Ver pasar los veleros, los albatros,
las nubes con todo su cielo encima.
Traducir los silencios interiores
al compás de un cansado corazón.
Confiar
que atraque el barco de lo impredecible
o llegue alguien con una señal.
Y esperar,
esperar.


Ángel Guinda

[Sureando]

 

 

Talvez
a verdadeira vida seja isto.
Estar sozinho,
sentado em frente ao mar,
e ao fundo a montanha.
Ver passar os barcos, os albatrozes,
as nuvens com o céu todo por cima.
Traduzir os silêncios interiores
ao compasso de um cansado coração.
Confiar que arribe o barco do impredizível
ou chegue alguém com um sinal.
E esperar,
esperar.


(Trad. A.M.)

.

14.10.21

Angel González (Nada agora já)




YA NADA AHORA  

 

Largo es el arte; la vida en cambio corta
 como un cuchillo
  Pero nada ya ahora 

-ni siquiera la muerte, por su parte
 inmensa- 

podrá evitarlo:
 exento, libre, 

como la niebla que al romper el día
 los hondos valles del invierno exhalan, 

creciente en un espacio sin fronteras,

este amor ya sin mí te amará siempre.

Ángel González

 

 

Longa a arte; curta em troca a vida
como um punhal
Mas nada agora já

 – nem mesmo a morte, por seu lado
imensa – 

poderá evitar:
isento, livre, 

como a névoa que exalam
ao romper do dia
os fundos vales do Inverno,

 crescente num espaço sem fronteiras, 

este amor já sem mim há-de amar-te sempre.

  

(Trad. A.M.)

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12.10.21

António Ramos Rosa (Sem dizer fogo)




Sem dizer fogo – vou para ele.
Sem enunciar as pedras, sei que as piso
– duramente, são pedras e não são ervas.

O vento é fresco: sei que é vento,
mas sabe-me a fresco ao mesmo tempo que a vento.
Tudo o que eu sei, já lá está,
mas não estão os meus passos e os meus braços.

Por isso caminho, caminho porque há um intervalo
entre tudo e eu, e nesse intervalo,
caminho e descubro o meu caminho.

Mas entre mim e os meus passos
há um intervalo também:
então invento os meus passos
 e o meu próprio caminho.
E com as palavras de vento e de pedra,
invento o vento e as pedras,
caminho um caminho de palavras.

Caminho um caminho de palavras
(porque me deram o sol)
e por esse caminho me ligo ao sol
e pelo sol me ligo a mim.

E porque a noite não tem limites
alargo o dia e faço-me dia
e faço-me sol porque o sol existe.

Mas a noite existe
e a palavra sabe-o.


António Ramos Rosa

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10.10.21

Ana Pérez Cañamares (Isto era a crise)



ESTO ERA LA CRISIS

 

Esto era la crisis:
buscar una sonrisa
no con alegría
sino con desesperación.

Guardarla en el pecho
como un mendrugo de pan.


Ana Pérez Cañamares

[El alma disponible]

 

Isto era a crise,
buscar um sorriso
não com alegria
mas com desespero.

Guardá-lo no peito
como uma côdea de pão.

(Trad. A.M.)

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9.10.21

Amalia Bautista (Icaro)




ICARO


Se derriten al sol
las alas que les pongo a los recuerdos:
a unos, para que vuelen hasta mí:
a otros, a ver si emigran para siempre.

 
Amalia Bautista

 

Derretem com o sol
as asas que ponho às lembranças,
umas, para que voem até mim,
outras, a ver se emigram para sempre.

(Trad. A. M.)

 .


7.10.21

Alexandre O'Neill (Caixadóclos)




CAIXADÓCLOS

 

– Pátriazinha iletrada, que sabes tu de mim?
Que és o esticalarica que se vê.

– Público em geral, acaso o meu nome…
Vai mas é vender banha de cobra!

– Lisboa, meu berço, tu que me conheces…
– Este é dos que fala sozinho na rua…

– Campdòrique, então, não dizes nada?
Ai tão silvatávares que ele vem hoje!

– Rua do Jasmim, anda, diz que sim!
– É o do terceiro, nunca tem dinheiro…

– Ó Gaspar Simões, conte-lhes Você…
– Dos dois ou três nomes que o surrealismo…

– Ah, agora sim, fazem-me justiça!

– Olha o caixadòclos todo satisfeito
‘   a ler as notícias…

Alexandre O’Neill

 .

5.10.21

Alfredo Buxán (Reunião de família)




REUNIÃO DE FAMÍLIA  

 

Quantas coisas queridas, para além do cansaço,
fui encontrar no meu quarto esta tarde de Inverno.
Cinzeiros repletos, livros por todo o lado
e um grupo de poetas em mangas de camisa.
Felizes de estarem já para lá da morte.
Vejo de cenho franzido Miguel de Unamuno,
as mãos de Machado que se apoiam a tremer
sobre a mesa do fundo, a barba de três dias
e o seu meio sorriso dos últimos tempos.
O olhar incendido de Juan Ramón Jiménez.
E Cernuda muito severo a mirar as unhas.
Pessoa medita cabisbaixo ao pé da janela,
ou talvez, sem o verem, vai até à Baixa.
A doce Rosalía está como em sua casa.
Juan de la Cruz fala-nos do mistério
e nós todos guardamos sossegado silêncio.
A vida passa depressa, tu escreve o mais que puderes
- diz-me Vallejo, do seu charco de culpa -
aqui tens tudo, a luz acesa,
o casaco de lã, o rasto dos dias.
Sacos e sacos do tempo que te foge sempre.
Aqui tens tudo, um monte de lembranças
e sono pouco. A noite pela frente.
O que todos nós tivemos aqui há muitos anos.
 

ALFREDO BUXÁN
Las Palabras Perdidas
(Poesía 1989-2008)
Bartleby Editores (2011)

 (Trad. A.M.)

 .

4.10.21

Alfonso Brezmes (Baixa produtividade)




BAIXA PRODUTIVIDADE

 

Cúmplices destas olheiras
e do meu sorriso
estúpido no escritório
a lua
e tu.


ALFONSO BREZMES
La Noche Tatuada
(2013)

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2.10.21

António Barahona (Memória de José Luís)




MEMÓRIA DE JOSÉ LUÍS PAREDES DA BEIRA



Tiravas o retrato, no Rossio, ao espelho,
a crianças, no meio d'amestrados pombos:
davam plo nome e vinham pousar-te nos ombros,
ou no pulso da tua mão cheia de milho.

Eram teus olhos dum azul tão claro
que neles se avistava os pombos a voar
num céu primaveral: tinhas o dom de dar,
amigo tão discreto, puro e raro.

Que foi feito de ti? Esta cidade alui:
incauta, vai matando a sua arquitectura
e os actores rituais nos últimos redutos.

Onde nascia o Sol, agora o Sol se esvai;
e onde havia Ócio, agora há só Usura;
e onde havias tu, agora há pombos mortos.


António Barahona

[Hospedaria Camões]

 .