30.9.20

Jorge Sousa Braga (Epístola sobre o silêncio)





EPÍSTOLA SOBRE O SILÊNCIO



Nestas ervas
só o silêncio
se pode deitar

Ninguém ama
tanto o silêncio
- raízes

Uma folha de erva
verga-se sob o
peso de uma palavra

Silêncio - de súbito
o som de duas carriças
fazendo amor

Vento por dentro
Um pensamento
levanta voo

Procura a tua
verdadeira voz
no silêncio

Atento
ao eco
do silêncio

Porque se agitam
as ervas só as ervas
o podem dizer


JORGE SOUSA BRAGA
O Novíssimo Testamento e outros poemas
(2012)

[Poema possivel]


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28.9.20

Graciela Perosio (Deserto)




DESIERTO



en el desierto arder
sin coordenadas
sin planos ni planes ni horizontes
entre las inestables curvas de las dunas
en soledad de fénix
arder
sin concesiones

Graciela Perosio




no deserto arder
sem coordenadas
sem planos nem planícies nem horizontes
entre as curvas instáveis das dunas
em solidão de fénix
arder
sem concessões

(Trad. A.M.)

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27.9.20

Gonzalo Rojas (De baixo)





DESDE ABAJO



Entonces nos colgaron de los pies, nos sacaron
la sangre por los ojos,
con un cuchillo
nos fueron marcando en el lomo, yo soy el número
25.033,
nos pidieron
dulcemente,
casi al oído,
que gritáramos
viva no sé quién.

Lo demás
son estas piedras que nos tapan, el viento.


Gonzalo Rojas

[Apología de la luz]




Então penduraram-nos pelos pés, tirando-nos
o sangue pelos olhos,
com uma faca
marcaram-nos no serro, eu sou o número
25.033,
pediram-nos
docemente,
quase ao ouvido,
que gritássemos
viva não sei quem.

O resto
são estas pedras que nos tapam, o vento.


(Trad. A.M.)

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25.9.20

João José Cochofel (Sol)




SOL



É o sol que flameja
ou o teu cabelo
que incendeia o ar?

É a tua boca
que segura nos dentes
o sabor do dia?

É a tua pele
que vem redourar
a fome da vida?


João José Cochofel

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23.9.20

Gonzalo Fragui (O clube dos quarenta)




EL CLUB DE LOS CUARENTA



Llego a los cuarenta
con los mismos miedos
de los diez:
temo a la oscuridad
a los espacios cerrados
y a los ojos negros

Soy sordo de los ojos
no sabría diferenciar
entre un gato que camina
y una manzana verde

Así ando últimamente
entre el ahogo y el vuelo
entre la piel y los olvidos
entre la incertidumbre y el miedo a la certeza

Cada vez deseo menos cosas
aunque las desee con más intensidad

Sólo quiero un templo
de largas columnas
y labios frescos
Amar en todos los idiomas
en todas las razas
en todas las épocas
en todas las geografías

Como verán
a estas alturas del partido
pido poco:
Amar

Gonzalo Fragui




Chego aos quarenta
com os mesmos medos
dos dez anos:
tenho medo do escuro
dos espaços fechados
e de olhos negros

Sou surdo de todo dos olhos
não saberia distinguir
entre uma maçã verde
e um gato a caminhar

Ando assim ultimamente
entre o sufoco e o voo
entre a pele e o esquecimento
entre a certeza e o medo da certeza

Cada vez desejo menos coisas
mas com mais intensidade

Quero só um templo
de longas colunas
e frescos lábios
Amar em todas as línguas
em todas as raças
em todas as épocas
e geografias

Como vêem
nesta altura do campeonato
peço pouco:
Amar


(Trad. A.M.)

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22.9.20

Fabio Morábito (O vento)





El viento, mas
que yo,
se fuma este cigarro
entre mis dedos,
dejándome el placer
de sólo tres o cuatro bocanadas,
y el mar expropia las palabras
que te digo,
porque, acostada, no me oyes.
El sol, el viento y la marea
te ensordecen
y cuando me levanto
para dar dos pasos,
viendo mis huellas que se imprimen
en la arena,
pienso que esas pisadas mienten,
que ya no piso así
desde hace no sé cuándo;
son huellas de otro
que sobrevive en mis pisadas; pues las mías
son mucho menos elocuentes.
Tú, en cambio, que me ves
completo e indivisible,
sabes mejor que nadie cómo soy mortal,
cómo mis huellas en la arena me describen
y cómo se plasma en ellas lo que soy,
sabes mejor que nadie cómo no escucharme.


Fabio Morábito




O vento, mais
do que eu,
fuma este meu cigarro
entre os dedos,
deixando-me o prazer só
de três ou quatro puxadas,
enquanto o mar expropria
as palavras que eu te digo,
pois que, deitada, não me ouves.
O sol, o vento e as ondas
ensurdecem-te,
e quando eu me levanto
para dar dois passos,
vendo as minhas pegadas
marcadas na areia,
penso que elas mentem,
que eu já não piso assim
sei lá desde quando;
são pegadas de outro
que sobrevive no meu pisado,
muito menos eloquente.
Tu, em troca, que me vês
inteiro, indivisível,
sabes melhor que ninguém como eu sou mortal,
como minhas pegadas na areia me descrevem
e como aquilo que eu sou se plasma nelas,
sabes melhor que ninguém como não me escutar.

(Trad. A.M.)



>>  El placard (20p) / A media voz (13p) / Poemas del alma (10p) / Antonio Miranda (8p) / Cervantes (J.C.Abril – A poesia de FM) / Wikipedia

20.9.20

João de Mancelos (Navegando de mastros amputados)





NAVEGANDO DE MASTROS AMPUTADOS



somos navios distantes,
a bordo
do desejo,

as memórias,
gaivotas de passagem
pelo mapa,

e a paixão,
o vento que restou
das suas asas


João de Mancelos

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18.9.20

Gloria Fuertes (Disseram-me)





Disseram-me:
- Ou entras no carro
ou tens de empurrá-lo.

Nem entrei, nem empurrei.

Sentei-me na valeta
e à minha volta,
passado um pouco,
era só borboletas.


Gloria Fuertes

(Trad. A.M.)

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17.9.20

Pedro Sevilla (Pardais à chuva)




GORRIONES EN LA LLUVIA



No sé por qué - aunque sí lo sé -
pero siempre que os veo bajo la lluvia
en las frías aceras del invierno,
con las plumas mojadas
y los ojos radiantes de impaciencia,

me acuerdo de un muchacho lejanísimo
que en un mundo anterior, en otras lluvias,
los zapatos mojados
y el corazón brincándole en el pecho,
se apostaba en la tarde
esperando el instante de unas trenzas,
las migajas de luz de una sonrisa.

Pedro Sevilla




Não sei porquê - ou antes, sei muito bem -
mas sempre que os vejo à chuva,
nas frias calçadas do inverno,
com as penas molhadas
e os olhos radiantes de impaciência,

lembra-me um rapazinho muito longe,
num mundo anterior, em outras chuvas,
com os sapatos alagados
e o coração a saltar-lhe no peito,
que se postava na tarde
à espera do instante de umas tranças,
das migalhas de luz de um sorriso.

(Trad. A.M.)

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15.9.20

João Habitualmente (Apocalipse)





APOCALIPSE



recatai-vos velhas
fugi para a igreja
abanai o sino
fechai bem no quarto
o vosso netinho
o vosso menino
para que não veja
para que não saiba
para que não seja
assim como esses
que são cabeludos
que só têm barba
dizem palavrões
e dão encontrões
nas ruas da baixa
aos senhores sisudos

são uns parvalhões
recatai-vos velhas
trazei um polícia
uma esquadra inteira
ai tanta sujeira
imaginem só
andam-se a drogar
até metem dó
a cambalear

isto está perdido
ó velhas fugi
ide para ali
que aqui está fodido

recatai-vos velhas
tapai as orelhas
guardai o menino
fechai-o no quarto
metei-o na cama
para que não veja
para que não ouça
para que não seja
para que não tenha
para que não venha
perdeu-se o respeito
já não há moral

ó velhas fugi
olhem para ali
beijam-se na rua
fodem ao luar
antes de casar
já nem vão à tropa

só querem dinheiro
todo para estourar
já nem vão às putas
mostrar que são homens

ó senhor prior
já nem vão à missa
não têm missal
isto é um horror
vamos mesmo mal

fechai os olhos
não vejais o netinho
guardai-o no fundo
de um quarto comprido
para que não veja
para que não tenha
para que não seja
para que não venha
recatai-vos velhas
que já nem na praia
se consegue estar
ó virgem maria
ó senhor do céu
essas estrangeiras
deu-lhes para andar
de mamas ao léu
a tremelicar

ó velhas cuidado
assim é que não
inda a procissão
só vai no adro
não deixes que a merda
se ponha a medrar
gritai pelas ruas
falai prós jornais
morra a juventude
fine a desvergonha

chamemos quem ponha
estes animais
c’o a corda rente
ó velhas chamai
o presidente

libertai-vos velhas
vinde para o sol
dançar rock n’ rolI
ide até a lua
c’uma ganza fixe
esticai o dedo
apanhai boleia
fumai muito haxixe
ponde a casa cheia
dos nossos poetas
dos nosso malucos
andai de autocarro
a fugir ao pica

libertai-vos velhas
não pagueis a taxa
acabai com a graxa
aos vossos patrões
cagai no juízo
nas boas maneiras
cagai nas peneiras

ó velhas então?
vinde para aqui
para a confusão
ó velhas vesti
uma mini-saia

deixai que vos caia
esse ar tão mortiço
essa cara chocha
mostrai a coxa
gritai uma asneira
uma malandrice
pelos microfones
das rádios-pirata
ouvi os Police
os RoIling Stones
não vos afogueis
em mais água benta
bebei um bagaço
jogai a dinheiro
ide ao cangalheiro
adiai a morte
ide pelo mundo
por estradas à sorte
vinde para aqui
para o reviralho
e se não quiserdes
ide para o caralho!


João Habitualmente

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13.9.20

Gloria Bosch (Solidariedade)





SOLIDARIDAD



Te escribo en esta mañana de viernes
con la compañía de mis objetos cotidianos.
Hoy aterrizaron en casa dos visitantes nuevas
que inundaron de sorpresa mi rutina.
Miré al techo buscando una respuesta
y me acordé del cielo ampurdanés y de tus ojos
pero solo encontré una mancha amarilla en el techo
y dos gotas inmensas con música de fondo.
Coloqué algunos cubos y me quedé observando
las goteras resbalaban por mi rostro
y sentí que el techo, en un acto solidario,
se desmoronaba despacio, despacio.
En este viernes irrespirable
una llamada tuya bastará para sanarme.


Gloria Bosch

[Veus de dones]




Escrevo-te nesta manhã de sexta
na companhia de meus objectos quotidianos.
Hoje aterraram aqui em casa duas visitas novas,
inundando-me de surpresa a rotina.
Olhei para o tecto em busca de resposta
e lembrei-me do céu dessas partes e de teus olhos,
mas vi só uma mancha amarela e
em música de fundo duas gotas imensas.
Pus uns baldes e fiquei-me a observar
as goteiras a escorrer-me pelo rosto,
sentindo que o tecto, num gesto solidário,
desmoronava-se devagar, devagar.
Nesta sexta irrespirável
uma chamada tua bastaria para curar-me.

(Trad. A.M.)

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12.9.20

Gisela Galimi (Pedra)





PIEDRA



La piedra vive en el lago.
Tranquila vive,
indolora vive.
Agua de pozo el lago
pozo ciego
que no la ve
ni la acuna.
La piedra no es un pez
que pueda desovar en un lago,
necesita la corriente para ser viajera,

necesita un río donde desahogarse.

Un remolino al menos,
de los que ocultan la alegría
del salmo del agua
con intenciones
de flor de arena.


Gisela Galimi

[Marcelo Leites]




A pedra vive no lago,
tranquila,
indolor.
Água de poço o lago,
poço cego
que não a vê
nem a embala.
Não é peixe a pedra,
que possa desovar num lago,
precisa de corrente para viajar,

um rio donde se desafogue.

Um remoinho ao menos,
desses que ocultam a alegria
do salmo da água
com tenções
de flor de areia.


(Trad. A.M.)

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10.9.20

João Guimarães Rosa (Consciência cósmica)





CONSCIÊNCIA CÓSMICA



Já não preciso de rir.
Os dedos longos do medo
largaram minha fronte.
E as vagas do sofrimento me arrastaram
para o centro do redemoinho da grande força,
que agora flui, feroz, dentro e fora de mim…

Já não tenho medo de escalar os cimos
onde o ar limpo e fino pesa para fora,
e nem de deixar escorrer a força dos meus músculos,
e deitar-me na lama, o pensamento opiado…

Deixo que o inevitável dance, ao meu redor,
a dança das espadas de todos os momentos.
E deveria rir, se me restasse o riso,
das tormentas que pouparam as furnas da minha alma,
dos desastres que erraram o alvo do meu corpo…


Guimarães Rosa

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8.9.20

Rocío Acebal Doval (O calado)





O CALADO



De pouco servem já os versos que não escrevi
- de nada, se não fosse porque posso ainda
fingir que não te amei.
Este querer desordenado, o muro
entre meu peito e a palavra, é hoje
o último bastião de mim mesma.


Rocío Acebal Doval

(Trad. A.M.)



>>  RAD (blogue) / Circulo de poesia (3p) / Crisis de papel (recensão/JLGM)

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7.9.20

Sara Mesa (Caem as horas)






Caen las horas como gotas de aceite,
pesadas, lentas, doradas, tibias.
El aire está inflamado de plegarias,
de cánticos oscuros y enigmáticos.
Yo sé que algo sucede.
Debe de ser que es jueves y algo pasa los jueves.
Debe de ser que es lunes y algo pasa los lunes.
Debe de ser que es sábado y algo pasa los sábados.
¿Por qué no quedan huellas de mis pies
en este asfalto ardiente?
Debe de ser que no peso bastante.
Debe de ser que está lejos la arena.
Debe de ser que el tiempo pasa lento
y aún no te he encontrado.

Se suceden las horas como un hondo rosario,
como un rosario en sombras.
Yo debería pensar ahora en otras luces,
nadar con otros peces.
Aquí estoy resguardada.
La lluvia no me moja.
Mis párpados se cierran sin asombro.

El tiempo pasa lento;
no duele, no me toca.


Sara Mesa




Caem as horas como gotas de óleo,
pesadas, lentas, douradas, mornas.
O ambiente está inflamado de orações,
de cânticos enigmáticos.
Algo se passa, eu bem sei.
Há-de ser por ser quinta-feira e algo acontece às quintas.
Ou então é segunda e algo acontece às segundas.
Ou sábado e algo acontece aos sábados.
Porque não me ficam as marcas dos pés neste asfalto ardente?
Deve ser de não pesar o bastante,
deve ser de a areia estar longe,
deve ser de o tempo passar devagar
e eu não te ter ainda encontrado.

Sucedem-se as horas como um longo rosário,
como um rosário sombrio.
Eu devia pensar agora em outras luzes,
nadar com outros peixes.
Aqui eu estou resguardada,
a chuva não me molha,
os olhos cerram-se-me sem espanto.

O tempo passa devagar
- não dói, não me toca,

(Trad. A.M.)

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5.9.20

Giuseppe Ungaretti (Eterno)





ETERNO



Tra un fiore colto e l’altro donato
l’inesprimibile nulla


Giuseppe Ungaretti




Entre uma flor colhida e outra oferecida
o nada indizível

(Trad. A.M.)

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3.9.20

Juan Manuel Bonet (Taberna cubista)




BODEGÓN CUBISTA



Quatro botellas, un periódico de la noche,
unas sombras chinescas, un bote de píldoras
adelgazantes, un ticket de tranvía, el recibo
de la luz, un invitación a la ópera,
el informe de un espía:
sólo faltan, para que este bodegón
pueda adejetivarse de praguense,
la sombra de un cúpula
y un poco de espuma de cerveza.


Juan Manuel Bonet




Quatro garrafas, um jornal vespertino,
algumas sombras chinesas, um frasco de pílulas
de emagrecer, um bilhete de eléctrico, o recibo
da luz, um convite para a ópera,
o relatório de um espião:
falta só, para a taberna se
poder dizer praguense,
a sombra de uma cúpula
e um pouco de espuma de cerveja.

(Trad. A.M.)

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2.9.20

Raúl Nieto de la Torre (Poste de luz)





POSTE DE LUZ



Nada en el mundo me interesa más que ese poste de luz.
No cabe en mi mirada:
debo mover el cuello para ver su punto más alto
como si una montaña se hubiera adelgazado
hasta el límite de madera de ese poste
sin el cual no habría límite: miraría
hacia ninguna parte, solo,
esperando encontrarme a un ciclista, a un paseante,
a un perro en busca de una perra.
Ese poste me libra de esperar.
Como la muerte.
Diréis no puede amarlo
porque no cabe en su mirada de hombre
y diréis la verdad: no lo amo.
Diréis no puede hacerle compañía
porque hablan dos idiomas diferentes
y diréis la verdad: no me hace compañía.
Ese poste me libra de correr.
Su verticalidad es como el horizonte
incrustado en la tierra.
Su color es oscuro.
Y sus cables, que parten, con la curva del tiempo,
hacia otro poste, apenas me distraen
de mi dulce tarea:
estoy empezando a verlo florecer.


Raúl Nieto de la Torre





Nada no mundo me interessa mais
do que esse poste da luz.
Não me cabe no olhar,
tenho de levantar o pescoço para o ver no mais alto
como se uma montanha se estreitasse
até ao limite de madeira desse poste,
sem o qual não haveria limite: olharia
para lado nenhum, sozinho,
esperando encontrar um ciclista, um transeunte,
um cão em busca de uma cadela.
Este poste livra-me de esperar.
Como a morte.
Direis vós, não podes amá-lo,
pois que não cabe no teu olhar,
e é verdade: não o amo.
Direis ainda,
não podes fazer-lhe companhia,
já que falais os dois línguas diferentes,
e é verdade também: companhia não me faz.
Este poste, o que faz, livra-me de correr.
A sua verticalidade é assim como o horizonte, incrustado na terra.
Cor escura,
e seus cabos, que partem, com a curva do tempo,
para o poste vizinho, mal me distraem da minha ocupação pessoal:
estou a começar a vê-lo dar flor.

(Trad. A.M.)

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