FOSTE-TE
Foste-te
quando eu mais precisava dos teus braços.
Porque me abandonaste precisamente então?
Porquê naquele momento decisivo?
Sei
que ninguém escolhe o quando de sua morte,
e que ninguém conhece os modos e lugares de morrer.
Mas tu... Tu devias ter feito um esforço!
Ter sobrevivido,
em vez de te entregares varado ao primeiro golpe,
à primeira carga.
Porque é que te foste, avô? Bem compreendo
que não me hás-de escutar,
que teus olhos, tua boca, tua palavra,
já não existem,
que apenas uma lembrança te constrói
boiando nos abismos da minha mente.
Assim é. Assim, mas apesar disso...
aí te vão meus versos, as estrofes
que dão vida ao poema congregadas
com palavras por meus dedos,
embalando um coração que não te olvida.
Porque te foste, avô, quando eu mais precisava,
quando mais requeria teu conselho,
teu ânimo firme, teu impulso generoso?
Passam os anos,
os dias como folhas vão caindo
de um outono lentíssimo... para me levar até ti.
Pois eu não sei esquecer-te,
porque não sei o que é o esquecimento.
Ah, se tu pudesses escutar! Ah, se pudesses!
(Mas escutas-me porventura. É tudo tão complexo...)
A Morte te fez em pedaços,
te arrancou os ouvidos pela raiz
- és agora como um deus, distante e surdo.
Por isso, quase rezando,
palavras que se enlaçam e desagregam,
hoje a ti, meu pai, ofereço este poema,
nascido da brasa que a tua lembrança acende,
de todo o amor que tu me deste,
do tão só que eu ando, dos silêncios
que me foram dia a dia coroando
com seu ramo de dor, de dúvida, de esperança.
Víctor Botas
(Trad. A.M.)
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