29.11.18

Mário de Carvalho (Onde é que eu ia?)




(Onde é que eu ia?)


Agora há uma passagem muito rápida em que se contam uns pormenores relevantes que me convém despachar antes de rematar a primeira parte do livro.

Daqui a bocado preciso de dirigir uma pequena interpelação ao Joel Strosse, e, até lá, não convém que fique nada por elucidar.

Se não fosse abusar, até usava alíneas e limitava-me a substantivos.

Mas como costumo ficar incomodado das habilidades modernaças, armadas ao pingarelho, com que a minha concisão poderia confundir-se, forço-me, por disciplina, a debitar texto, embora escasso.

Onde é que eu ia?


MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)

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27.11.18

Ida Vitale (Aclimatação)




ACLIMATACIÓN


Primero te retraes,
te agostas,
pierdes alma en lo seco,
en lo que no comprendes,
intentas llegar al agua de la vida,
alumbrar una membrana mínima,
una hoja pequeña.
No soñar flores.
El aire te sofoca.
Sientes la arena
reinar en la mañana,
morir lo verde,
subir árido oro.

Pero, aún sin ella saberlo,
desde algún borde
una voz compadece, te moja
breve, dichosamente,
como cuando rozas
una rama de pino baja
ya concluida la lluvia.


Ida Vitale




Primeiro retrais-te,
murchas,
perdes alma no seco,
que não entendes,
tentas chegar à água da vida,
alumiar uma folha pequena,
uma membrana mínima.
Não sonhar flores.
Sufoca-te o ar.
Sentes a areia
reinar na manhã,
o verde morrer,
subir árido ouro.

Mas, mesmo sem ela saber,
de uma beira qualquer,
uma voz se compadece, molha-te
breve, ditosamente,
como se roçasses
num ramo de pinheiro baixo,
depois de a chuva passar.


(Trad. A.M.)

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25.11.18

Hugo Vera Miranda (Deus)





DIOS



Cada día que pasa pienso que Dios es un ser
absolutamente superficial,
algo que en definitiva
no tiene nada que ver conmigo.
Un ser lleno de arrogancia hermética,
drogado todo el tiempo
con ojos azules fijos al infinito.
Sordo, ciego y pueril, arrogante a más no poder,
y a su vez infantil, una mierda de tipo.
No tiene conciencia clara de su obra,
de la cagada que ha hecho.
Solitario en su cumbre, viejo, tonto, sin bañarse,
balbuceando incoherencias.
Se arrastra de un lugar a otro, maldiciendo su suerte,
le tocó ser el primero y sabe que nunca se lo perdonaremos.
Aúlla por las constelaciones estelares
pidiendo clemencia, quedándose dormido,
emborrachándose. Solo. Completamente.
Pordiosero del espacio. Siempre solo,
como una puta a las siete de la mañana.


Hugo Vera Miranda




Cada dia que passa penso que Deus é um ser
absolutamente superficial,
algo que definitivamente
não tem nada a ver comigo.
Um ser cheio de arrogância hermética,
drogado o tempo todo,
de olhos azuis fitos no infinito.
Surdo, cego e pueril, arrogante a mais não poder,
um bocado infantil, um tipo de merda.
Sem consciência clara da sua obra,
da cagada que fez.
Solitário em seu trono, sem tomar banho,
velho, tonto, a balbuciar incoerências.
Arrasta-se de um lugar a outro, maldizendo a sua sorte,
calhou-lhe ser o primeiro e sabe que nunca lho perdoaremos.
Uiva pelas constelações de estrelas
a pedir clemência, emborrachando-se
e adormecendo. Só, completamente só,
mendigo do espaço. Sempre sozinho.
Como uma puta às sete da manhã.


(Trad. A.M.)


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23.11.18

Antonio Cicero (Balanço)





BALANÇO


A infância não foi uma manhã de sol:
demorou vários séculos; e era pífia,
em geral, a companhia. Foi melhor,
em parte, a adolescência, pela delícia
do pressentimento da felicidade
na malícia, na molícia, na poesia,
no orgasmo; e pelos livros e amizades.
Um dia, apaixonado, encarei a minha
morte: e eis que ela não sustentou o olhar
e se esvaiu. Desde então é a morte alheia
que me abate. Tarde aprendi a gozar
a juventude, e já me ronda a suspeita
de que jamais serei plenamente adulto:
antes de sê-lo, serei velho. Que ao menos
os deuses façam felizes e maduros
Marcelo e um ou dois dos meus futuros versos.



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21.11.18

Hugo Mujica (Desnudez)





DESNUDEZ


ni la ruina de un muro
sobre el que apoyar las palmas, sobre el
que descansar la gente

nada, salvo polvo que el viento alza,

viento
borrando ruinas
una sábana blanca
ondea en el viento

ceremonia de nada,
gesto de nadie,

nadie, nada o las huellas más tenues
o tal vez un llamado

el viento
la desnudez en la que viene y huye:

la huella, que borrando traza.

Hugo Mujica




nem a ruína de um muro
em que apoiar as mãos ou
repousar as pessoas

nada, só pó erguido pelo vento,

vento
apagando ruínas
um lençol branco
ondeando ao vento

cerimónia de nada,
gesto de ninguém,

ninguém, nada ou as marcas mais ténues
um apelo talvez

o vento, a nudez
em que chega e foge:

a marca, que apagando traça.

(Trad. A.M.)


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19.11.18

Homero Aridjis (A forma da tua ausência)





LA FORMA DE TU AUSENCIA


Ni un momento
he dejado de ver en este cuerpo
la forma de tu ausencia,
como una esfera que ya no te contiene.
Pero dos cosas constantes te revelan,
te tienen de cuerpo entero en el instante,
y son la cama y la mesa de madera,
hechas a la medida del amor
y del hambre

Homero Aridjis




Nem por um momento
deixei de ver neste corpo
a forma da tua ausência,
assim como uma esfera que não te contém.
Mas há duas coisas sempre que te revelam
e te põem no instante em corpo inteiro,
são a cama e a mesa de madeira,
ambas feitas à medida
do amor e da fome.

(Trad. A.M.)

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17.11.18

Mário de Carvalho (Não seria má ideia)




(Não seria má ideia)


Não consegui captar nada do que Jorge disse, mas acho que adivinhei pelas respostas.

Feitas as despedidas, mais um troçozito da ária do Papageno e o ‘controleiro’ voltou para a cama: ‘Quem era?’, bradou de lá a tia. ‘Nada de especial. Malta do Partido’, vozeirou Vitorino Nunes, já a fechar os olhos.

Ainda bem que ele não telefonou logo a seguir.

Eu lá teria que dar conta da diligência e isto ia parecer um romance de fio telefónico.


Não seria má ideia, para outra ocasião, mas, agora, a cadeia telefónica viria introduzir cadências repetitivas, tediosas e impedientes de eu contar o que estou ansioso por: a decidida e mui apessoada chegada de Eduarda Galvão à revista Reflex, nessa manhã.



MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)


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15.11.18

Videira (CA-3)





VIDEIRA



É o sangue da terra
que sobe no outono
às folhas da vide


(A.M.)

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13.11.18

Gonzalo Fragui (As mulheres e a guerra)





LAS MUJERES Y LA GUERRA



Lo máximo que se puede pedir
a una mujer hermosa
es una mirada

Lo demás se toma por asalto.


Gonzalo Fragui





O mais que se pode pedir
a uma mulher bela
é um olhar

O resto toma-se de assalto.

(Trad. A.M.)

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11.11.18

Gonzalo Rojas (Os dias vão tão depressa)




LOS DÍAS VAN TAN RÁPIDOS


Los días van tan rápidos en la corriente oscura
que toda salvación se me reduce apenas a respirar profundo
para que el aire dure en mis pulmones
una semana más, los días van tan rápidos
al invisible océano que ya no tengo sangre donde nadar seguro
y me voy convirtiendo en un pescado más, con mis espinas.

Vuelvo a mi origen, voy hacia mi origen, no me espera
nadie allá, voy corriendo a la materna hondura
donde termina el hueso, me voy a mi semilla,
porque está escrito que esto se cumpla en las estrellas
y en el pobre gusano que soy, con mis semanas
y los meses gozosos que espero todavía.

Uno está aquí y no sabe que ya no está, dan ganas de reírse
de haber entrado en este juego delirante,
pero el espejo cruel te lo descifra un día
y palideces y haces como que no lo crees,
como que no lo escuchas, mi hermano,
 y es tu propio sollozo allá en el fondo.

Si eres mujer te pones la máscara más bella
para engañarte, si eres varón pones más duro
el esqueleto, pero por dentro es otra cosa,
y no hay nada, no hay nadie, sino tú mismo en esto:
así es que lo mejor es ver claro el peligro.

Estemos preparados. Quedémonos desnudos
con lo que somos, pero quememos, no pudramos
lo que somos. Ardamos. Respiremos
sin miedo. Despertemos a la gran realidad
de estar naciendo ahora, y en la última hora.

GONZALO ROJAS
 Contra la muerte
(1964)





Tão velozes vão os dias na corrente escura
que a minha salvação reduz-se a respirar fundo
para o ar me durar nos pulmões
mais uma semana, vão os dias tão velozes
para o oceano invisível que eu já não tenho
sangue para nadar com segurança
e vou-me transformando em mais um peixe, com as espinhas.

Volto à origem, vou direito à minha origem,
ninguém me espera lá, vou correndo para o fundo materno
onde o osso termina, vou para a minha semente,
porque está escrito que isso se cumpra
nas estrelas e no pobre de mim, com minhas semanas
e os meses gozosos que espero ainda.

Aqui estamos e não sabemos que já não estamos,
dá vontade de rir entrar neste jogo delirante,
mas decifra-to o espelho cruel
e então empalideces, parece que não crês,
não escutas, meu irmão,
e é o teu próprio soluço lá no fundo.

Sendo mulher pões a máscara mais bela
para te enganar, sendo varão fazes o esqueleto
mais rijo, mas lá por dentro é outra coisa,
não há nada, nem ninguém, apenas tu mesmo,
por isso o melhor é ver o perigo, claramente.

Estejamos preparados. Fiquemos a nu
com o que somos, mas queimemos, não apodreçamos
o que somos. Ardamos. Respiremos sem medo.
Despertemos para o facto
de estarmos nascendo agora, e na última hora.

(Trad. A.M.)


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9.11.18

Alexandre O'Neill (Poema)




POEMA


Entre mim e o silêncio
vai a mesma distância
que vai de mim a mim mesmo
Entretanto,
vou construindo sistemas explicativos
do que fica entre mim e o silêncio

Alexandre O’Neill



[Colóquio-Letras, 198 (2018), 55]

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7.11.18

Francisca Aguirre (Testemunha de excepção)





TESTIGO DE EXCEPCIÓN


Un mar, un mar es lo que necesito.
 Un mar y no otra cosa, no otra cosa.
 Lo demás es pequeño, insuficiente, pobre.
 Un mar, un mar es lo que necesito.
 No una montaña, un río, un cielo.
 No. Nada, nada,
 únicamente un mar.
 Tampoco quiero flores, manos,
 ni un corazón que me consuele.
 No quiero un corazón
 a cambio de otro corazón.
 No quiero que me hablen de amor
 a cambio del amor.
 Yo sólo quiero un mar:
 yo sólo necesito un mar.
 Un agua de distancia,
 un agua que no escape,
 un agua misericordiosa
 en que lavar mi corazón
 y dejarlo a su orilla
 para que sea empujado por sus olas,
 lamido por su lengua de sal
 que cicatriza heridas.
 Un mar, un mar del que ser cómplice.
 Un mar al que contarle todo.
 Un mar, creedme, necesito un mar,
 un mar donde llorar a mares
 y que nadie lo note.

Francisca Aguirre




Um mar, um mar é o que eu preciso,
um mar e não outra coisa, não outra coisa.
O resto é pequeno, pobre, mesquinho.
Um mar, um mar é o que eu preciso,
não um monte, um rio, um céu.
Não, nada, nada,
só um mar.
Também não quero flores, nem mãos,
nem coração que me console,
não quero um coração
em troca de coração,
nem que me falem de amor
em troca de amor.
Eu só quero um mar,
só preciso de um mar,
água distante, piedosa,
para lavar o coração
e deixá-lo na beira,
empurrado pelas ondas,
lambido pela língua salgada
que cicatriza as feridas.
Um mar, um mar cúmplice,
para lhe contar tudo.
Um mar, vêde, preciso de um mar,
onde possa chorar um mar de lágrimas
sem ninguém reparar.
  
(Trad. A.M.)

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5.11.18

Flor Codagnone (Continuo ferida)






Sigo herida, castigada:
volvés siempre
a la geografía de mi memoria.


Flor Codagnone




Continuo ferida, castigada:
tu voltas sempre
à minha geografia da memória.

(Trad. A.M.)

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3.11.18

Felipe Benítez Reyes (Propósito de emenda)






PROPÓSITO DE ENMIENDA



A favor del vivir - sea eso lo que sea -
retando la locura del tiempo fugitivo,

marcando las distancias con su vértigo
de muerte y destrucciones arbitrarias,
mirándole a los ojos

al tiempo
- aun siendo él

veloz como un reptil que deja atrás su sombra.

Qué meticulosidad - ese asesino en serie -
para darnos las dosis de veneno y de antídoto
con una exactitud de paciente alquimista,
arrojados nosotros a sus pies
como los perros...
                           Y, no obstante,
a favor del vivir, sea eso lo que sea
- y aun temiendo que sea
este raro correr hacia la nada.


Felipe Benítez Reyes





A favor de viver - seja lá isso o que for -
a desafiar a loucura do tempo fugitivo,

marcando as distâncias com sua vertigem
de morte e destruição arbitrária,
olhando o tempo

nos olhos,
mesmo sendo ele

veloz como um réptil que deixa a sombra para trás.

Quão meticuloso - esse assassino em série -
a dar-nos
as doses de veneno e antídoto
com exactidão de paciente alquimista,
nós como cães,
arrojados a seus pés...
                  E, não obstante,
a favor de viver, seja lá isso o que for
- mesmo temendo que seja
esta estranha corrida em direcção a nada.

(Trad. A.M.)

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1.11.18

Mário de Carvalho (Um roubo de esticão)






(Um roubo de esticão)


Sentada na berma do passeio, a velha compunha o vestuário, com gestos lentos, na aparência muito meticulosos e aplicados.

Apoiou-se com uma mão, faltaram-lhe as forças, tornou a sentar-se.

Quando Jorge lhe estendeu o braço, olhou para ele em lágrimas, de boca aberta, num pasmo, como se não acreditasse no que tinha acabado de acontecer.

Para Jorge foi confrangedor e quase culpabilizante o silêncio daquela cara enrugada, cristalizado num grande espanto, sem gemidos, sem gritos, sem protestos.

Apenas resíduos de lágrimas, envergonhadas, brilhando por entre as rugas.


MÁRIO DE CARVALHO
Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto
(1995)

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