29.11.08
José Luis García Martín (Elogio do olvido)
A qué grabar un nombre en las paredes,
manchar con torpes trazos la blancura
deslumbrante, impoluta, de la nada?
A qué este vano empeño de ir dejando señales,
de escribir en la arena, a resguardo del viento,
las triviales miserias que conforman tu vida?
Sobre las tercas líneas que dibujan un rostro
ha de pasar la mano piadosa de los años
borrando letras, sílabas, palabras sin sentido.
El papel en que escribes volverá a estar en blanco.
Y habrá dicha mayor que no haber sido?
JOSÉ LUIS GARCIA MARTIN
El pasajero
(1992)
Para quê gravar um nome nas paredes,
manchar com torpes traços a brancura
deslumbrante, impoluta, do nada?
Para quê este vão empenho de ir deixando sinais,
de escrever na areia, ao abrigo do vento,
triviais misérias que te conformam a vida?
Sobre as linhas teimosas que esboçam um rosto
há-de passar a mão piedosa dos anos
apagando letras, sílabas, palavras sem sentido.
O papel em que escreves voltará a estar em branco.
E haverá ventura maior do que não ter sido?
(Trad. A.M.)
27.11.08
Pedro Mexia (Código Civil)
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CÓDIGO CIVIL
Raparigas abraçadas ao Código Civil,
serve para alguma coisa,
o Código Civil, nunca imaginei,
que bom ser Código Civil.
PEDRO MEXIA
Vida Oculta (2004)
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Rabindranath Tagore (Flor de lótus)
No dia em que a flor de lótus desabrochou
R.Tagore
25.11.08
Cesário Verde (Pro pudor)
Todas as noites ela me cingia
Nos braços, com brandura gasalhosa;
Todas as noites eu adormecia,
Sentindo-a desleixada e langorosa.
Todas as noites uma fantasia
Lhe emanava da fronte imaginosa;
Todas as noites tinha uma mania,
Aquela concepção vertiginosa.
Agora, há quase um mês, modernamente,
Ela tinha um furor dos mais soturnos,
Furor original, impertinente...
Todas as noites ela, ah! sordidez!
Descalçava-me as botas, os coturnos,
E fazia-me cócegas nos pés...
Cesário Verde
23.11.08
Vitorino Nemésio (As cidades dos Açores)
(As cidades dos Açores…)
As cidades dos Açores não foram urbes traçadas a rego de arado, nem empórios crescidos em embocaduras de rios férteis, nem aglomerados feitos em arraiais de feiras ou em grandes nós de comunicações terrestres naturais.
De nove ilhas que conta o arquipélago só duas tiveram durante quatro séculos o timbre de cidade: a Terceira e S. Miguel.
Angra e Ponta Delgada cresceram primeiro como fixadores das populações dotadas de maior área insular, e logo como chaves de situações geográficas mais acessíveis e demandadas.
Das ilhas maiores só uma - o Pico - não chegou a atingir densidade citadina.
O seu dispositivo montanhoso maciço (inútil farol de noite lhe chamou Chateaubriand), a porosidade do seu solo pouco propício à agricultura e impróprio para a pastorícia de prados especializaram-na na pesca, no vinho e nas frutas - três géneros que, por si sós, dificilmente geram mesteirais e mercadores, ou seja, o húmus dessa coisa febril e às vezes monstruosa que se chama uma cidade.
- VITORINO NEMÉSIO, Corsário das Ilhas, Primeiro corso (Corisco), 1956.
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Nuno Júdice (Poema)
Em um novo poema sobre a morte, sem me ter ainda convencido
de que, embora morto, algo permanecia no meu ser que partici-
pava da Vida e do movimento inumerável dos objectos batidos
pelo vento, afirmei que a Poesia me acompanhava.
Como se a Poesia fosse algo que eu nomeasse fisicamente… que tocasse…
E ao constatar uma impossibilidade objectiva, fiz uma experiên-
cia que a confirmou definitivamente: li tudo o que tinha escrito.
Foi como se não tivesse lido nada. Sem me dar conta sequer
de um estilo, de uma gramática, da própria língua… Foi
como se não soubesse ler.
Ao apresentar a narrativa exacta do que aconteceu, descubro
que também aqui não tenho nenhum objectivo, nenhum
pretexto, nenhum facto que justifique o poema. Mas ele
existe apesar disso. E é por isso mesmo que, sem arte
poética e sem argumentos, o apresento e mantenho.
NUNO JÚDICE
O Pavão Sonoro (1972)
21.11.08
Vinicius de Moraes (Poética-I)
De manhã escureço
18.11.08
Manuel Moya / Violeta (Lá fora)
Te advierto que ahí afuera
ladran perros,
LÁ FORA
ladram cães,
e um espelho contempla
gelado a tua cabeça.
Não abras as janelas,
não abras,
vamos fingir outra vez
que não há luz aqui,
que estamos mortos, nós.
(Trad. A.M.)
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Fontes: Abel Martin [antologia (28p)+bio+biblio] / Bibl. Públicas [nota>Manuel Moya]
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Ruy Belo (Um prato de sopa)
Um prato de sopa um humilde prato de sopa
comovo-me ao vê-lo no dia de festa
e entro dentro da sopa
e sou comido por mim próprio com lágrimas nos olhos
Ruy Belo
16.11.08
Fernando Pessoa (Autopsicografia)
O poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente.
E os que lêem o que escreve,
Na dor lida sentem bem,
Não as duas que ele teve,
Mas só a que eles não têm.
E assim nas calhas de roda
Gira, a entreter a razão,
Esse comboio de corda
Que se chama coração.
Fernando Pessoa
14.11.08
Antonio Machado (Todo pasa)
13.11.08
Cecília Meireles (Cântico II)
Não sejas o de hoje.
Cecília Meireles
11.11.08
Raul Brandão (Este mundo)
Este mundo em que vivemos é uma mentira monstruosa.
È um mundo anticristão.
Como é possível isto?!
Como é possível que esta gente que trabalha toda a vida acabe a vida a pedir?
Bem sei que sempre houve pobres, mas o pobre hoje é mais pobre do que nunca.
E enquanto uns penam e falam em temerosas realidades, ou pela sua boca ou pela boca dos mortos, os outros, os lá de baixo, falam em coisa abstractas que estão ao lado da vida.
Cada vez o mundo me mete mais medo…
Tudo se resolvia pela lei de Deus - se cada um fosse capaz de resolver o problema na sua consciência - mas Cristo está muito longe, cada vez mais longe de nós…
Eu mesmo não soube segui-lo e amá-lo, apesar de esperar sempre.
E espero…
Espero na lei divina e, se não puder ser, na lei humana.
- RAUL BRANDÃO, Memórias, III, Balanço à vida.
Casimiro de Brito (Cuidado)
9.11.08
Sophia de Mello Breyner Andresen (Meditação do Duque de Gandia)
SOBRE A MORTE DE ISABEL DE PORTUGAL
Nunca mais
a tua face será pura limpa e viva,
nem teu andar como onda fugitiva
se poderá nos passos do tempo tecer.
E nunca mais darei ao tempo a minha vida.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
A luz da tarde mostra-me os destroços
do teu ser. Em breve a podridão
beberá os teus olhos e os teus ossos
tomando a tua mão na sua mão.
Nunca mais amarei quem não possa viver
sempre,
porque eu amei como se fossem eternos
a glória, a luz e o brilho do teu ser,
amei-te em verdade e transparência
e nem sequer me resta a tua ausência,
és um rosto de nojo e negação
e eu fecho os olhos para não te ver.
Nunca mais servirei senhor que possa morrer.
7.11.08
5.11.08
Nuno Júdice (Arte do poema)
Eu pensava que escrever era uma escolha rigorosa de temas determinados,
e mais - que a progressão no poema, sem confundir um tema e outro,
pelo contrário iria estabelecer uma rigorosa separação. Entre,
por um lado, o interior dos sons, e por outro o rebordo exterior
do sentido, evoluindo este último segundo os efeitos próprios dos sons
em cada diversa sensibilidade.
Assim, estabelecidas as múltiplas zonas “poéticas”, eu poderia designar
o que está escrito,
e assim mesmo irá ficar,
como um estudo de poética - ou “arte do poema”.
NUNO JÚDICE
O Pavão Sonoro (1972)
3.11.08
Luis Alberto de Cuenca (Hammurabi)
Las chicas como tú se ríen en las barbas
del mismísimo Hammurabi.
«Ojo por ojo
y diente por diente»
(lo hizo escribir en Babilonia,
hace cuatro mil años).
Las chicas como tú responden
al amor con desdén
y al desdén con amor.
Por fastidiar a Hammurabi.
Luis Alberto de Cuenca
As miúdas como tu riem-se nas barbas
do próprio Hammurabi.
“Olho por olho
e dente por dente”
(mandou ele escrever na Babilónia,
há quatro mil anos).
As miúdas como tu respondem
ao amor com desdém
e ao desdém com amor.
Só para chatear Hammurabi.
(Trad. A.M.)
Ferreira Gullar (Cantiga para não morrer)
CANTIGA PARA NÃO MORRER
Quando você for se embora,
moça branca como a neve,
me leve.
Se acaso você não possa
me carregar pela mão,
menina branca de neve,
me leve no coração.
Se no coração não possa
por acaso me levar,
moça de sonho e de neve,
me leve no seu lembrar.
E se aí também não possa
por tanta coisa que leve
já viva em seu pensamento,
menina branca de neve,
me leve no esquecimento.
Ferreira Gullar
Fonte: Ferreira Gullar
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1.11.08
Jorge Luís Borges (Eu)
A caveira, o coração secreto,
os caminhos de sangue que não vejo,
os túneis do sonho, esse Proteu,
as vísceras, a nuca, o esqueleto.
Sou essas coisas. Incrivelmente
sou também a memória de uma espada
e a de um poente solitário
que se dispersa em ouro, em sombra, em nada.
Sou aquele que vê as proas do cais;
sou os contados livros, as contadas
inscrições fatigadas pelo tempo;
sou aquele que inveja os já falecidos.
Mais raro é ser o que entrelaça palavras
num quarto de uma casa.
JORGE LUIS BORGES
La rosa profunda (1975)
(Trad. A.M.)
Wikipedia / Fcsh (de/sobre/antologia/ensaio) / A media voz-1 (45p) / A media voz-2 (13p) / Poesi.as (121p)
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Jorge de Sena (Em Creta, com o Minotauro)
I
Nascido em Portugal, de pais portugueses,
e pai de brasileiros no Brasil,
serei talvez norte-americano quando lá estiver.
Coleccionarei nacionalidades como camisas se despem,
se usam e se deitam fora, com todo o respeito
necessário à roupa que se veste e que prestou serviço.
Eu sou eu mesmo a minha pátria. A pátria
de que escrevo é a língua em que por acaso de gerações
nasci. E a do que faço e de que vivo é esta
raiva que tenho de pouca humanidade neste mundo
quando não acredito em outro, e só outro quereria que
este mesmo fosse. Mas, se um dia me esquecer de tudo,
espero envelhecer
tomando café em Creta
com o Minotauro,
sob o olhar de deuses sem vergonha.
II
O Minotauro compreender-me-á.
Tem cornos, como os sábios e os inimigos da vida.
É metade boi e metade homem, como todos os homens.
Violava e devorava virgens, como todas as bestas.
Filho de Pasifaë, foi irmão de um verso de Racine,
que Valéry, o cretino, achava um dos mais belos da "langue".
Irmão também de Ariadne, embrulharam-no num novelo de que se lixou.]
Teseu, o herói, e, como todos os gregos heróicos, um filho da puta,
riu-lhe no focinho respeitável.
O Minotauro compreender-me-á, tomará café comigo, enquanto
o sol serenamente desce sobre o mar, e as sombras,
cheias de ninfas e de efebos desempregados,
se cerrarão dulcíssimas nas chávenas,
como o açúcar que mexeremos com o dedo sujo
de investigar as origens da vida.
III
É aí que eu quero reencontrar-me de ter deixado
a vida pelo mundo em pedaços repartida, como dizia
aquele pobre diabo que o Minotauro não leu, porque,
como toda a gente, não sabe português.
Também eu não sei grego, segundo as mais seguras informações.
Conversaremos em volapuque, já
que nenhum de nós o sabe. O Minotauro
não falava grego, não era grego, viveu antes da Grécia,
de toda esta merda douta que nos cobre há séculos,
cagada pelos nossos escravos, ou por nós quando somos
os escravos de outros. Ao café,
diremos um ao outro as nossas mágoas.
IV
Com pátrias nos compram e nos vendem, à falta
de pátrias que se vendam suficientemente caras para haver vergonha]
de não pertencer a elas. Nem eu, nem o Minotauro,
teremos nenhuma pátria. Apenas o café,
aromático e bem forte, não da Arábia ou do Brasil,
da Fedecam, ou de Angola, ou parte alguma. Mas café
contudo e que eu, com filial ternura,
verei escorrer-lhe do queixo de boi
até aos joelhos de homem que não sabe
de quem herdou, se do pai, se da mãe,
os cornos retorcidos que lhe ornam a
nobre fronte anterior a Atenas, e, quem sabe,
à Palestina, e outros lugares turísticos,
imensamente patrióticos.
V
Em Creta, com o Minotauro,
sem versos e sem vida,
sem pátrias e sem espírito,
sem nada, nem ninguém,
que não o dedo sujo,
hei-de tomar em paz o meu café.
Jorge de Sena