19.7.08

Raul Brandão (Há outras existências)






(Há outras existências...)



Fugimos para longe e passámos as noites, as infinitas noites de Inverno em que chove sempre, à beira do lume, eu calado a escrever, tu calada a olhar para mim.

Solidão tão pesada que eu distinguia o remexer dos bichos inteiriçados de frio, que vivem nos buracos das paredes e que se revolviam no fundo dos ninhos, para caírem logo no torpor invernal - e o caminhar da raiz da árvore que plantei e que sob o chão teima em se aproximar de nós.

Foi nesse silêncio que a minha alma se criou.

Foi esse silêncio que nos uniu indestrutivelmente.

No corredor escuro onde entrei e onde tacteio como um cego, fazendo alguns riscos a carvão nas paredes, encontrei a tua mão que me ampara e nunca mais a larguei.

Aprendi que há outras existências, as dos humildes, maiores que a nossa.

E vi Deus.



- RAUL BRANDÃO, Memórias, II, Dez. 1924.

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