21.10.25

Francisco García Marquina (Testamento ológrafo)




TESTAMENTO OLÓGRAFO 

 

Llegados a este punto comienzo a desbarrar
y a insultarte con gracia, a hacerte algunas
proposiciones indecentes.
Este poema es una saludable
invitación al mal
que sólo entenderás si tú me amas
con toda crueldad y sin respiro
y al margen de la ley.
A lo peor de ti se dirigen mis versos:
a tu ternura airada y a tus lágrimas
que matan a distancia, a tu mentira
hecha de oro mojado,
a tu hacienda perdida de antemano
y a esta muerte gloriosa y compartida
que quiero negociar.
Nos queda por delante algo de vida
caducable y dudosa, pero luego
sin duda gozaremos
de una extensa y perdurable muerte.
Al hacer nuestros planes de futuro
hay que contar con esa
terrible dimensión de despropósito.
Yo amo la vida que cargo a mis espaldas
pero, si miro al frente,
debo reconocer que el futuro está en esa
solidez de desastre.
Tuvimos ciertas buenas experiencias
ensayando tan negro porvenir
en esas muertes dulces
con las que agonizaron nuestros cuerpos
en esos urgentísimos delitos
de los que fuimos cómplices,
y en esos golpes cálidos de mano
con que la carne toca el más allá.
El crimen fue perfecto
llenándonos de dicha la sentencia.
En consecuencia, ahora
y muy serenamente, he decidido
participar en esta ceremonia
capital, de la muerte.
Voy a darle la cara
para que no se fragüe a mis espaldas.
Yo he cometido errores y también cobardías
que empañan el pasado
pero, mirando al frente, me propongo
que el morir sea un acierto.
Y si mi vida fue involuntaria y necia,
saber morir adrede
podría ser la enmienda de aquel caos.
A quien amo le digo:
el regalo exquisito que te ofrezco,
con la honradez que da el amor penúltimo,
es la muerte entre dos.
Vamos del brazo al cabo de la vida,
lo que hayamos de hacer
lo haremos juntos.

FRANCISCO GARCÍA MARQUINA
Cartas a Deshora
(2010)


Aqui chegados eu começo a desvairar
e a insultar-te por graça, a fazer-te algumas
propostas indecentes.
Este poema é um são convite para o mal
que tu só vais entender se me amares
do modo mais cruel, sem respirar
e à margem da lei.
Ao pior de ti meus versos vão dirigidos,
à tua ternura airada e tuas lágrimas
que matam à distância, à tua mentira
feita de ouro molhado,
á fazenda perdida de antemão
e a esta morte gloriosa e partilhada
que eu pretendo negociar.
Para diante nos fica alguma vida
duvidosa e caducável, mas depois gozaremos
extensa e perdurável morte.
Ao fazermos nossos planos de futuro
temos de contar com essa
terrível dimensão de despropósito.
Eu amo a vida que carrego nas minhas costas,
mas, se olhar para a frente,
tenho de reconhecer que o futuro
está nessa solidez de desastre.
Boas experiências tivemos nós
ensaiando tão negro futuro
nessas mortes doces
em que nossos corpos agonizaram,
nesses urgentíssimos delitos
em que ambos fomos cúmplices,
e nesses golpes de mão
com que a carne toca o além.
Crime perfeito,
a sentença nos ditou a ventura.
Assim, muito serenamente, tenho decidido
participar nesta cerimónia
capital da morte.
Vou dar-lhe a cara
para não se fazer nas minhas costas.
Cometi erros, sim, e também cobardias
que turvam o passado,
mas, olhando para a frente,
proponho que a morte seja um acerto final.
E se minha vida foi néscia e casual,
saber morrer adrede
poderia ser a emenda desse caos.
A quem amo eu digo:
o presente fino que te ofereço,
com a honradez do amor quase derradeiro,
é a morte entre os dois.
Vamos de braço dado até ao fim,
o que tivermos de fazer
faremos juntos.
 

(Trad. A.M.)

.

19.10.25

Ruy Belo (Os bravos generais)




OS BRAVOS GENERAIS 

 

Os bravos generais caem do escadote
citam teilhard frequentam o templo
São eles e não as damas quem nos salões dá o mote
Os filhos podiam invocá-los como exemplo
seu peito fero é todo uma medalha
e ganham sempre só perdem a batalha
do escadote quando o inimigo grita: toma
chegou a tua vez de receberes um hematoma
Seja a subir seja a descer - desde que não seja escada -
os generais avançam pois não temem nada
Mas -- sobressaltam-se eles -- o que é que o meu olhar avista?
Um simples escadote o grande terrorista
 

Ruy Belo 

[Voar fora da asa]

 .

17.10.25

Vicente Muñoz Álvarez (Vento e cinza)




VIENTO Y CENIZA

 

qué difícil
para los que seguimos decir adiós
a los que se van

vuela alto
que la tierra
te sea leve
descansa en paz

solo palabras
y lágrimas

viento y ceniza

qué corto el viaje
qué breve la vida
qué efímero todo

qué triste

Vicente Muñoz Álvarez

[Mi vida en la penumbra]

 

 

Que difícil
para nós que continuamos dizer adeus
aos que se vão

Voa alto
que a terra
te seja leve
descansa em paz

Tudo palavras
e lágrimas

Vento e cinza

Que curta a viagem
que breve a vida
que efémero tudo

Que triste


(Trad. A.M.)

.

16.10.25

Victor Herrero de Miguel (Casta)





CASTA

 

Um homem desnuda-se diante dum rio.
Sabe que o importante nos é dado
sempre com leveza
                            e que a graça
foge daquilo que pesa.
Acerca-se lentamente, como a um templo.
Passa a soleira do ar.
Desfruta contemplando
a forma das pedras.
Mergulha com os peixes.
Leva tempo, atrás do adjectivo
que diga aquilo que sente
ao abraçar a água.
E achou-o por fim:
                              casta.


Victor Herrero de Miguel

(Trad. A.M.)

 

 >>  La linea amarilla (perfil)

 .

14.10.25

Vinicius de Moraes (Ausência)




AUSÊNCIA



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
e eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
e eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
e todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


Vinicius de Moraes

[Vinicius de Moraes]

 .

12.10.25

Jenaro Talens (Paisagens-2)





 PAISAGENS-2


A florista passa à frente do café. Leva uma menina
pela mão. Vai muito depressa. Ao fundo da rua
um carro aguarda no meio da neve.
O homem mal baixa o vidro.
Posso ver-lhe, no entanto, o casaco de couro,
o chapéu texano e o sorriso. São
rosas ou crisântemos? Várias pétalas caem
sobre a poeira do chão. Envolto num jornal
o ramo está agora nos braços da menina.
O capucho do seu anoraque como uma imagem rasgada.
As flores são de plástico no café.
Olho para esta imitação de jardim,
o contorno apagado das túlipas, assépticas,
lembrando o fastio das empregadas
a servir as bebidas. Tomo o meu brunch.
É domingo. No canto ao lado
dois jovens beijam-se e falam das montanhas do Perú.

 
Jenaro Talens

(Trad. A.M.)

.




11.10.25

Raquel Lanseros (O homem que espera)

 



O HOMEM QUE ESPERA

 

A colherita triste remexe
uma vez mais a borra do café.
Dez dedos bailam no tampo da mesa do bar
um tango à média luz com o esquecimento.
               Está sozinho, cansado,
               sentado no meio de gente alheia
              que olha para ele sem o ver.
Um anel de ouro gasto pelos anos
é o único traço de brilho que lhe resta.

A paixão rebentou-lhe nas mãos uma vez.
E perdeu a esperança nos abismos
                              de um coração humano.

Não há desventura que lhe fosse alheia,
nem humilhação que lhe seja desconhecida.
É por isso que sabe falar de amor.
Por isso espera.

 

Raquel Lanseros

(Trad. A.M.)

.

9.10.25

Dinis Moura (Eu queria um poema)




eu queria um poema que pagasse as minhas facturas 
m poema que reduzisse o meu ácido úrico 
um poema que fosse passear o meu cão 
um poema que me ajudasse 
a tirar bem as nódoas do vinho tinto
eu queria um poema que acalmasse os meus vizinhos 
um poema que me tirasse de vez o vício do tabaco
um poema que me explicasse deus e as mulheres 
eu queria um poema que me afugentasse as insónias
um poema que calasse a boca àquele fascista que todos
   os dias palra no telejornal 
um poema que fosse dietético analgésico e hidratante
um poema com a magia
e a garra do futebol  

eu queria um poema curto
exacto fiável funcional 
e com garantia 

mas quando eu abro as antologias
infelizmente ou inexplicavelmente 
eu só me deparo com poemas  

nos dias em que me acho
menos paciente e mais birrento 
eu pergunto-me sempre:
para que porra servem afinal os poetas?
 

Dinis Moura

 .

7.10.25

Valeria Pariso (Podia dizer-se que chove)




Podría decirse: llueve
hay cientos
de inesperadas
gotas
cayéndose del mundo.

 
Valeria Pariso

 

Podia dizer-se que chove
há centenas
de gotas
inesperadas
a caírem do mundo.


(Trad. A.M.)

.


6.10.25

Santiago Sylvester (O poema não escrito)




EL POEMA NO ESCRITO


Una declaración honesta en la pared de una calle: 
“No sé por dónde empezar”.

En ese mensaje
hay un apremio que nos ha llegado, un desconcierto, 
y no estaría bien invadirlo por ostentación, 
por irresponsabilidad. 

Ahí se oculta un poema, 
y un poema que se oculta en la pared de una calle 
merece estar donde está: donde arranca una moto, pasa una  chica y 
los loros cruzan llenos de noticias.
Que nadie caiga en la vanidad de escribirlo.

Santiago Sylvester

[Marcelo Leites]

 

 

Uma declaração honesta numa parede na rua:
‘Não sei por onde começar’.

Nessa mensagem
há uma urgência que nos toca, um desconcerto,
e não ficaria bem invadi-la por ostentação,
por irresponsabilidade.

Ali oculta-se um poema,
e um poema que se oculta na parede de uma rua
merece estar onde está: onde arranca uma moto,
passa uma miúda e os carros se cruzam apressados.
Que ninguém caia na vaidade de o escrever.


(Trad. A.M.)

.

4.10.25

Ferreira Gullar (Gato pensa?)




 

GATO PENSA? 

 

Dizem que gato não pensa
mas é difícil de crer.
Já que ele também não fala
como é que se vai saber?
A verdade é que o Gatinho
quando mija na almofada
vai depressa se esconder:
sabe que fez coisa errada.
E se a comida está quente,
ele, antes de comer,
muito calculadamente
toca com a pata pra ver.
Só quando a temperatura
da comida está normal
vem ele e come afinal.
E você pode explicar
como é que ele sabia
que ela ia esfriar?
 

Ferreira Gullar

 .

2.10.25

Francisco Caro (Como a praia)



COMO LA PLAYA

 

Como la playa ociosa
a final de septiembre, allí
donde la luz asume que su vigor caduca
ajeno a la existencia de los otros,
así contempla el hombre
mansa y leve su mano, la herramienta
con la que atesorara
el esplendor azul de cada instante.
 

Francisco Caro

 

Como a praia ociosa
nos fins de Setembro, lá
onde a luz assume que seu vigor falece
alheio à existência dos outros,
assim contempla o homem
mansa e leve sua mão, o instrumento
com que guardara
o esplendor azul de cada instante.
 

(Trad. A.M.)

 .

1.10.25

Francisco García Marquina (Autorretrato)



AUTORRETRATO 

 

Porque la muerte no puede tener razón
Francisco, fiel amante de la tierra,
espectador de todo, seductor a traición,
contradictorio y lleno de humor de Dios,
nació sobre las ruinas de un jovenzuelo
lírico y barroco, viajero gravemente
enamorado, hijo –sin duda póstumo–
de un tierno niño juicioso, muerto
por sobredosis de cordura.
 

Francisco García Marquina



Porque a morte não pode ter razão
Francisco, amante fiel da terra,
de tudo espectador, sedutor à traição,
contraditório e cheio de humor de Deus,
nasceu sobre as ruínas de um mocinho
lírico e barroco, viajante gravemente
apaixonado, filho – póstumo, sem dúvida –
de um terno menino sensato, morto
por sobredose de prudência.


(Trad. A.M.)



.