31.3.25

Jorge Luis Borges (Um livro)





UN LIBRO          

 

Apenas una cosa entre las cosas
pero también un arma. Fue forjada
en Inglaterra, en 1604,
y la cargaron con un sueño. Encierra
sonido y furia y noche y escarlata.
Mi palma la sopesa. Quién diría
que contiene el infierno: las barbadas
brujas que son las parcas, los puñales
que ejecutan las leyes de la sombra,
el aire delicado del castillo
que te verá morir, la delicada
mano capaz de ensangrentar los mares,
la espada y el clamor de la batalla.

Ese tumulto silencioso duerme
en el ámbito de uno de los libros
del tranquilo anaquel. Duerme y espera.


Jorge Luis Borges

 

Apenas uma coisa entre as coisas
mas uma arma também. Foi forjada
em Inglaterra, em 1604,
e carregada com um sonho. Encerra
som, fúria, noite e púrpura.
Minha mão a sopesa. Quem diria
que contém o inferno: as bruxas
de barbas que são as parcas, os punhais
que executam as leis da sombra,
o ar delicado ar do castelo
que te verá morrer, a delicada
mão capaz de ensanguentar os mares,
a espada e o clamor da batalha.
 
Esse tumulto silencioso dorme
dentro de um dos livros
da tranquila estante. Dorme e espera.


(Trad. A.M.)
 
 
> Outra versão: F.P.Amaral

.

29.3.25

José Agostinho Baptista (Mãe)




MÃE

 

Eu sou aquela que os vê.
E caminho pelos seus caminhos e sou a
fogueira distante.
O tempo não me apaga.
Tenho os pontos cardeais e sou a bússola nas
suas mãos,
quando eles vão sobre as águas.
Sou os mapas, a constelação, o cruzeiro do sul,
o arado, o cão,
aquela que os guarda.
Sou o regaço, as belas plumas do meu regaço,
a imensa luz de amor que cai sobre a sua
penumbra,
sobre a sua loucura.
Sou a mãe da sua vida, da sua morte.
E vou com eles, espalhando as rosas tristes,
e os meus cabelos espalham sobre os seus
cabelos as raízes brancas.
Sou aquela que escreve quando eles dormem,
sou as palavras através do sono.
E adormeço com eles,
fechando as últimas portas.
 

José Agostinho Baptista

[Antologia improvável]

 .

27.3.25

Pedro Salinas (Não recuses os sonhos)

 



No rechaces los sueños por ser sueños.
Todos los sueños pueden
ser realidad, si el sueño no se acaba.
La realidad es un sueño. Si soñamos
que la piedra es la piedra, eso es la piedra.
Lo que corre en los ríos no es un agua,
es un soñar, el agua, cristalino.
La realidad disfraza
su propio sueño, y dice:
”Yo soy el sol, los cielos, el amor.”
Pero nunca se va, nunca se pasa,
si fingimos creer que es más que un sueño.T
Y vivimos soñándola. Soñar
es el modo que el alma
tiene para que nunca se le escape
lo que se escaparía si dejamos
de soñar que es verdad lo que no existe.
Sólo muere
un amor que ha dejado de soñarse
hecho materia y que se busca en tierra.
 

Pedro Salinas

 

Não recuses os sonhos por serem sonhos,
todos os sonhos podem ser
realidade, se o sonho não se acabar.
A realidade é um sonho, se sonharmos
que a pedra é pedra, pedra será.
Não é água o que corre nos rios,
é um sonhar, da água, cristalina.
A realidade disfarça 
o seu próprio sonho, dizendo:
‘Eu sou o sol, o céu, o amor.’
Mas não desaparece, nunca passa,
se fingirmos crer que é mais que um sonho.
E se vivermos sonhando. Sonhar
é o modo que tem 
a alma para nunca lhe escapar
o que escaparia se deixarmos de sonhar 
que é verdade aquilo que não existe.
Só morre
um amor que deixámos de sonhar 
feito matéria e que buscamos na terra.
 

(Trad. A.M.)

 .

26.3.25

José Mateos (Pássaros)




PÁJAROS

 

Con su canto aligeran
el peso de las horas,

y en las tardes de junio
propagan por el aire
una verdad tan fácil
que nadie les entiende.

Quizás he atravessado
noches de fiebre y días sin consuelo
sólo para decirte:

Los escuché en mi infancia,
y aún cantan. He vivido.

José Mateos

 


Com seu canto aliviam
o peso das horas,

e nas tardes de Junho
propagam pelo ar
uma verdade tão simples
que ninguém os entende.

Acaso atravessei
noites de febre e dias sem consolo
só para dizer-te:

Eu escutei-os na infância
e cantam ainda. Eu vivi.


(Trad. A.M.)

.

24.3.25

Camilo Castelo Branco (O cavalo e o cavaleiro)




(O cavalo e o cavaleiro)

Vários amigos meus lhe chamaram em letra redonda a flor da mocidade portuense; e eu mesmo, dando a nova funesta da queda, chamei-lhe ‘inteligente’; mas, como na oração havia dois agentes, ele um, e o cavalo outro, o público fez-me o favor de duvidar se eu chamava inteligente o cavalo, ou o Bazílio. (VIII)


CAMILO CASTELO BRANCO
Aventuras de Bazílio Fernandes Enxertado
(1863)

.

22.3.25

Pedro López Lara (Quando se chega a certa idade)




(CVI)

CUANDO se llega a cierta edad,
los pecados se cometen sin ganas.
Falta el escalofrío que signaba
la fe, la transgresión, la pérdida del alma.

Pedro López Lara



Quando se chega a certa idade,
os pecados cometem-se já sem vontade.
Falta o calafrio que a fé selava,
a transgressão, a perdição da alma.


(Trad, A.M.)



>>  Moon magazine (resenha Incisiones/10p) / Entreletras (idem) / Todo literatura (resenha Escombros) /   Culturamas (resenha Muestrario) / Entreletras (entrevista)

.

21.3.25

José Luis Morante (Autobiografia)




AUTOBIOGRAFÍA

 

También soy yo
por la fidelidad a mis contradicciones,
por permitir gozoso,
cuando las plazoletas solitarias
reivindican el silencio y la sombra,
que un recuerdo me asalte en el espejo
como un rastro de luz
e inicie una liturgia
de nombres, fechas, gestos
y túmulos de sueños
nadando el mar oscuro
de una cronología sospechosa.
Tanta dulce mentira
advierte que soy otro.

José Luis Morante

  

Eu também sou eu
por ser fiel às minhas contradições,
por permitir alegremente,
quando as pracetas solitárias
reclamam o silêncio e a sombra,
que uma lembrança me assalte no espelho
como um rasto de luz
e inicie uma liturgia
de nomes, datas, gestos
e túmulos de sonhos,
nadando no mar escuro
de uma cronologia suspeita.
Tanta mentira doce
mostra já que eu sou outro.

(Trad. A.M.)

.

19.3.25

Jacques Prévert (Um belo dia)




UN BEAU MATIN

 

Il n'avait peur de personne
Il n'avait peur de rien
Mais un matin un beau matin
Il croit voir quelque chose
Mais il dit Ce n'est rien
Et il avait raison
Avec sa raison sans nul doute
Ce n' était rien
Mais le matin ce même matin
Il croit entendre quelqu'un
Et il ouvrit la porte
Et il la referma en disant Personne
Et il avait raison
Avec sa raison sans nul doute
Il n'y avait personne
Mais soudain il eut peur
Et il comprit qu'Il était seul
Mais qu'Il n'était pas tout seul
Et c'est alors qu'il vit
Rien en personne devant lui

Jacques Prévert

 

 

Ele não tinha medo de ninguém
não tinha medo de nada
Mas uma manhã uma bela manhã
ele julga ver algo
Mas diz Não é nada
E tinha razão
Na sua razão fora de dúvidas
não era nada
Mas de manhã nessa mesma manhã
parece-lhe ouvir alguém
e abriu a porta
fechando-a a seguir dizendo Ninguém
E tinha razão
Na sua razão fora de dúvidas
não era ninguém
Aí de repente teve medo
e compreendeu que estava sozinho
mas não completamente só
e foi então que viu
o nada em pessoa na sua frente


(Trad. A.M.)

 .

José Luis García Martín (Minha pátria)




MI PATRIA

 

Si me dijeran, puedes escoger tu patria,
un lugar en el que vivir,
un lugar por el que morir,
una gran historia llena de patrañas
que has de creer a pie juntillas,
un trapo tremolante
que ha de llenarte de emoción
cuando lo divises de lejos,
¿qué patria escogería?
El mundo es demasiado grande,
mi pueblo demasiado pequeño.
¿No habrá un errante asteroide
todavía sin nombre,
sin historia, sin bandera,
sin sangre en las manos,
sin victimas a las que vengar?
Un pedrusco ignorado de todos,
al que aún no haya salpicado
la estupidez humana,
esa quisiera que fuera mi patria.
 

J.L. García Martín 

 

Se me dissessem, podes escolher a tua pátria,
um lugar para viver,
um lugar para morrer,
uma grande história cheia de patranhas 
em que terás de crer a pés juntos,
um trapo a tremular
que te encherá de emoção 
quando o avistares ao longe,
que pátria escolheria eu?
O mundo é grande demais,
minha terra pequena demais.
Não haverá um errante asteróide 
sem nome ainda,
sem história, sem bandeira,
sem sangue nas mãos,
sem vítimas para vingar?
Um penedo ignorado de todos,
ainda não salpicado 
pela humanal estupidez,
essa eu quereria que fosse a minha pátria.
 

(Trad. A.M.)

 .

18.3.25

Efi Cubero (Palavra)




PALABRA


La piel (asunto serio)
se desgasta.

Queda en poder del Tiempo.

Que éste obre:
nada más desea.

Mas la Palabra es vida.

Prodigio eterno entre
interlocuciones,
proyecta inmensidad
como un espejo.

Agua de algún venero
inagotable donde es
tan necessária
la frescura.

Efi Cubero

 


A pele (sério assunto)
desgasta-se.

Fica no poder do Tempo.

Que ele trabalhe,
nada mais deseja.

Mas a Palavra é vida.

Prodígio eterno entre
interlocuções,
projecta imensidão
como um espelho.

Linfa de nascente
inesgotável onde é
tão necessária
a frescura.


(Trad. A.M.)

.

16.3.25

Camilo Castelo Branco (Aos pés da catedral)




(Aos pés da catedral)

Ao repontar a aurora do belo dia de Julho, o Douro que banha o Porto, desde o cais da Corticeira até o de Massarelos, retratava em suas águas serenas e cristalinas as bandeiras e listrões de vistosas cores, que os últimos bafejos da viração matutina ondulavam brandamente, sobre os mastros dos barquinhos, e na orla dos pavilhões que os defendiam do calor.
Ao lampejar tremente do sol nas cristas da serra doirada, lá naqueles tão poéticos longes das montanhas, começavam as famílias a desembocar das estreitas ruas de Miragaia, das arcarias escuras de Cima do Muro, da majestosa rua de S. João, e de quantos becos descem do antigo burgo, que lá se está esboroando aos pés da catedral. (IV)


CAMILO CASTELO BRANCO
Aventuras de Bazílio Fernandes Enxertado
(1863)

.

14.3.25

Francisco Brines (Os sinónimos)




LOS SINÓNIMOS 

 

Más allá de la luz está la sombra,
y detrás de la sombra no habrá luz
ni sombra. Ni sonidos, ni silencio.
Llámale eternidad, o Dios, o infierno
O no le llames nada.
Como si nada hubiera sucedido.
 

Francisco Brines


Para além da luz a sombra,
e por trás da sombra nem luz
nem sombra. Nem sons, nem silêncio.
Chama-lhe eternidade, ou Deus, ou inferno.
Ou não chames nada.
Como se nada tivesse acontecido.
 

(Trad. A.M.)

 .

13.3.25

Ángel Guinda (O efémero)




LO EFÍMERO


Venga lo que venga, 
por mucho tiempo 
no se quedará. 

Por mucho que se quede,
yo estaré ya de vuelta 
o no estaré 
por mucho que me vaya.

Vendrá, se irá: 
mudable, como todo. 
Porque todo se va 
para cambiar

 
Ángel Guinda

[La ceniza]



Venha o que vier,
por muito tempo
não ficará.

Por muito que fique,
eu estarei de volta 
ou não estarei 
por muito que me vá.

Virá e andará,
mudável, como tudo.
Porque tudo se vai 
para mudar.

(Trad. A.M.)

 .

11.3.25

Fernando Assis Pacheco (Não pude amar mais ninguém)




não pude amar mais ninguém
e mesmo que te minta
é o contrário disso 

e mesmo que te minta
é a verdade seca
posta ali às avessas;
não pude amar mais claro

Fernando Assis Pacheco

 .

9.3.25

Carlos Marzal (A matéria do tempo)




A MATÉRIA DO TEMPO

 

Talvez não exista o tempo – assim dizem alguns.
O presente contém, acaso, todo
o futuro que aguarda e o passado
onde nós fomos outros. Assim dizem.
O tempo, para mim, que sei que as palavras
são um jogo qualquer para passar o tempo,
é feito de caras desconhecidas
em cais, e de luas de espelhos
onde se deteve o meu fantasma,
de mentiras que não distingo já da verdade,
da dor antiga, que não hei-de aqui nomear,
os que amei e perdi, pelo barranco abaixo,
confusão e derrota, névoa e ruído.
O tempo é o que eu invento para escapar a tempo.

Não sei como há quem pense que o tempo não é real
(alguns inventam mesmo um absurdo demónio
a quem acabam por dar a alma).

O tempo não é um sonho, e a demonstrá-lo
aqui está o próprio tempo, que converte
estas palavras e quem as pronuncia
em carne de um olvido sem remédio.


Carlos Marzal

(Trad. A.M.)

.

8.3.25

Raquel Lanseros (Céu por cima)




CIELO ARRIBA

 

Y qué gozosamente, con qué brío
uno se da de bruces con el mundo
y antes de comprenderlo ya lo ama.

Y qué fascinación la del principio
por descubrir el barro originario
y encontrarlo en las ranas en su charco
croando las verdades inmutables
y en el ámbar goloso de la cidra
que imita en su dulzor el sueño mismo. 

En busca de lo grande que supone
contener lo pequeño uno se embarca luego
que la fortuna obliga y el sendero
no deja de tentar al caminante.

Y va haciéndose hora y los paisajes
se despliegan y vibran con asombro
y los rostros desfilan y la lucha
renueva su silueta milenaria
y la rueda del mundo gira y gira
y va cambiando fuerza por cansancio
pero el encantamiento no termina
y uno se siente vivo porque sabe
que todo está en primicia eternamente. 

Y se recuesta al borde del destino
para beber la sombra, cuando escucha
el croar de las ranas en su charco. 

La primera verdad que siempre vuelve
a quien ya entiende que es la verdadera. 


Raquel Lanseros

  

E quão alegremente, com que brio
damos de caras com o mundo
e sem o compreender já o amamos.

E que fascínio o do início,
ao descobrir a lama originária
e achá-la nas rãs do charco,
coaxando as eternas verdades,
e no âmbar apetitoso da cidra,
que na doçura imita próprio sonho.

Em busca do grande que é suposto
conter o pequeno, embarcamos logo
que a fortuna manda, sem o carreiro
deixar de tentar o caminhante.

E vai sendo hora, as paisagens
estendem-se e vibram com assombro,
os rostos desfilam e a luta
renova seu perfil milenar
e a roda do mundo gira-que-gira,
trocando força por cansaço,
mas não se acaba o encanto
e sentimo-nos vivos pois sabemos
que tudo são primícias eternamente.

E repousamos já no destino
para beber a sombra, quando
escutamos no charco o coaxar das rãs.

A primeira verdade que volta sempre
a quem sabe já que é a verdadeira.


(Trad. A.M.)

.

6.3.25

Camilo Castelo Branco (O amor iguala todos os homens)




(O amor iguala todos os homens…)

E todas as mulheres?
Isso é que não.
Desde que eu disse que conhecia vinte variedades, haverá seis anos, já estremei da confusão caótica de suas excelências mais três exemplares.
São achegas que vou carreando para maior edifício, se Deus me der vida, e as vinte e três variedades me não tolherem. (VII)


CAMILO CASTELO BRANCO
Aventuras de Bazílio Fernandes Enxertado
(1863)

.

4.3.25

José Jiménez Lozano (O olho do mundo)




EL OJO DEL MUNDO

 

Tras la lluvia,
en el jardín de arena,
un guijarro negro relucía
como el ojo del mundo.
Y quizá lo era.


José Jiménez Lozano 

 

Depois da chuva, 
no jardim de areia,
um seixo negro reluzia
como o olho do mundo.
E se calhar era.


(Trad. A.M.)

 .

3.3.25

José Emilio Pacheco (Nuvens)






NUBES  

 

Estas nubes inmóviles se irán
dentro de poco tiempo,
cuando lo quiera el viento
y entonces
se quedarán la tarde y el bosque
ya sin testigos,
frente a frente y mirándose.
 

José Emilio Pacheco 

 

Estas nuvens imóveis
ir-se-ão daqui a pouco
quando o vento quiser
e então
a tarde e o bosque ficarão,
sem testemunhas já,
frente a frente, a olhar-se.


(Trad. A.M.)

.

1.3.25

Camilo Castelo Branco (Bonifácia ou Custódia)




(Bonifácia ou Custódia)

A senhora Bonifácia era madrinha da filha de um despachante da alfândega.
Orçava a menina pela idade de Bazílio.
Até aos nove anos chamou-se Bonifácia; depois, como as condiscípulas lhe chasqueassem o nome, crismou-se em Custódia, que era o nome de sua mãe.
Não melhorou. (II)


CAMILO CASTELO BRANCO
Aventuras de Bazílio Fernandes Enxertado
(1863)

.