7.10.24

Luís Filipe Castro Mendes (Do medo)




DO MEDO

 



Não pode o poema 
circunscrever o medo, 
dar-lhe o rosto glorioso 
de uma fábula 
ou crer intensamente na sua aura. 
Nós permanecemos, quando 
escurece à nossa volta o frio 
do esquecimento 
e dura o vento e uma nuvem leve 
a separar-se das brumas 
nos começa a noite. 

Não pode o poema 
quase nada. A alguns inspira 
uma discreta repugnância. 
Outras vezes inclinamo-nos, reverentes, ante os epitáfios 
ou demoramo-nos a escutar as grandes chuvas 
sobre a terra. 
Quem reconhece a poesia, esse frio 
intermitente, essa 
persistência através da corrupção? 
Quase sempre a angústia 
instaura a luz por dentro das palavras 
e lhes rouba os sentidos. 
Quase sempre é o medo 
que nos conduz à poesia. 



Voltando ao medo: as asas 
prendem mais do que libertam; 
os pássaros percorrem necessariamente 
os mesmos caminhos no espaço, 
sem possibilidades de variação 
que não estejam certas com esse mesmo voo 
que sempre descrevem. 

Voltando ao medo: o poema 
desenha uma elipse em redor da tua voz 
e cerca-se de angústia 
e ervas bravias — nada mais 
pode fazer. 


LUIS FILIPE CASTRO MENDES
A Ilha dos Mortos
(1991)

 .