(Nenhuma desgraça pôde com ela…)
Duas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui a meu lado…
Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão; viu cair por terra todos os seus sonhos - e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo!
A realidade temerosa afastou-a sempre de si.
Venceu-a. (…)
A Mari’Emília foi, até morrer, nossa criada.
Era um tipo popular, de energia admirável.
Estou a vê-la de bigode branco, olhos espertos de um azul já um pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte.
Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz velha.
Doente de uma perna, sempre a conheci a mancar.
Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir.
Porque essa é que era a expressão mais íntima e mais bela da sua alma: a alegria na desgraça.
Infatigável e risonha - o riso sempre pronto no trabalho e na dor.
Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente depois de nos servir a vida inteira. (…)
O que é que nós lhe demos para assim nos amar?
Sofrimento, trabalho, até cair exausta de dedicação.
E ela deu-nos à vida a alegria.
Mancou e riu até ao fim.
Nenhuma desgraça pôde com ela.
Resistiu sempre.
Serviu e amou.
E no fim morreu, ainda sorrindo-nos e com estas palavras na boca: - Levo-vos no coração!
Duas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui a meu lado…
Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão; viu cair por terra todos os seus sonhos - e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo!
A realidade temerosa afastou-a sempre de si.
Venceu-a. (…)
A Mari’Emília foi, até morrer, nossa criada.
Era um tipo popular, de energia admirável.
Estou a vê-la de bigode branco, olhos espertos de um azul já um pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte.
Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz velha.
Doente de uma perna, sempre a conheci a mancar.
Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir.
Porque essa é que era a expressão mais íntima e mais bela da sua alma: a alegria na desgraça.
Infatigável e risonha - o riso sempre pronto no trabalho e na dor.
Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente depois de nos servir a vida inteira. (…)
O que é que nós lhe demos para assim nos amar?
Sofrimento, trabalho, até cair exausta de dedicação.
E ela deu-nos à vida a alegria.
Mancou e riu até ao fim.
Nenhuma desgraça pôde com ela.
Resistiu sempre.
Serviu e amou.
E no fim morreu, ainda sorrindo-nos e com estas palavras na boca: - Levo-vos no coração!
- RAUL BRANDÃO, Memórias, III, Há que tempos!...