25.12.08

Raul Brandão (Nenhuma desgraça pôde com ela)






(Nenhuma desgraça pôde com ela…)





Duas sombras têm acompanhado a minha vida e estão aqui a meu lado…

Minha mãe gastou-se a sonhar, só nervos e paixão; viu cair por terra todos os seus sonhos - e teimou em sonhar, atrevendo-se contra todo o universo!

A realidade temerosa afastou-a sempre de si.

Venceu-a. (…)

A Mari’Emília foi, até morrer, nossa criada.

Era um tipo popular, de energia admirável.

Estou a vê-la de bigode branco, olhos espertos de um azul já um pouco desbotado pela velhice, mas teimando em exprimir ternura até à morte.

Vejo-lhe a boca desdentada a sorrir e sinto nas minhas mãos o calor das suas mãos e o dedo grosso e enorme a que me apegava quando ia para a mestra na Foz velha.

Doente de uma perna, sempre a conheci a mancar.

Atravessou toda a vida a mancar e a sorrir.

Porque essa é que era a expressão mais íntima e mais bela da sua alma: a alegria na desgraça.

Infatigável e risonha - o riso sempre pronto no trabalho e na dor.

Só a conheci alegre e morreu com um sorriso e um dente depois de nos servir a vida inteira. (…)

O que é que nós lhe demos para assim nos amar?

Sofrimento, trabalho, até cair exausta de dedicação.

E ela deu-nos à vida a alegria.

Mancou e riu até ao fim.

Nenhuma desgraça pôde com ela.

Resistiu sempre.

Serviu e amou.

E no fim morreu, ainda sorrindo-nos e com estas palavras na boca: - Levo-vos no coração!




- RAUL BRANDÃO, Memórias, III, Há que tempos!...