29.6.23

Eduardo Guerra Carneiro (Prefácio a uma homenagem)

 



PREFÁCIO A UMA HOMENAGEM A CESÁRIO VERDE



As clarabóias deste lado da cidade acendem-se mais cedo,
sinal que alguém projecta o fogo sobre o bairro
incendiando casas, talvez certas pessoas, as ruas
mais estreitas junto ao Tejo. Em manhãs como esta o sol
entra na mesa e pára junto às teclas. Parece um sorriso;
diria mesmo uma ternura. Poucos são os Palácios, mas imenso
é o espaço. E as águas, no rio e junto às teclas, acendem-se
com o fogo de outras clarabóias.

Depois são as luzes, as indústrias, o último petroleiro.
Descansam moradores em casas altas
enquanto se ergue a cidade nocturna de bares e liamba
e cresce um ou outro clandestino. É tempo de sair
por entre a névoa; rondar as esquinas; sorrir à puta;
apertar o copo; sentir o suor da cidade, corpo a tremer
de frio e febre neste tempo de amoníaco e éter
com ambulâncias lentas a caminho da morgue.

Antes ainda das luzes, quando, à maneira de Cesário,
o fumo se eleva no espaço, o recorte das fachadas
é mais nítido, o vermelho de Lisboa é mais intenso,
podemos imaginar escadas cansadas da madeira,
fogões acesos nas cozinhas,
crianças já com sono,
etc, etc...


Eduardo Guerra Carneiro

.

27.6.23

Efi Cubero (Onde abolir o limite)




¿Dónde abolir el límite y desdoblar honduras
lo mismo que la estrella que ha muerto y sin embargo
alumbra nuestro insomnio en las noches de cuarzo
dando cuenta del sueño que vivimos
conscientes de que todo nos ignora
ya que formamos parte de lo perecedero,
del frágil equilibrio de la perpetuidad:
de esta elegía?

Efi Cubero 

 

Onde abolir o limite e desdobrar o fundo 
tal como a estrela que morreu e todavia
nos ilumina a insónia nas noites de quartzo,
dando conta do sonho que vivemos
conscientes de que tudo nos ignora,
já que fazemos parte do perecível,
do frágil equilíbrio do perpétuo:
desta elegia?

(Trad. A.M.)

 .

26.6.23

Eduardo Dalter (Há um momento)




Hay un momento en que antes de ir,
de volver, el ave, o pájaro extraño
−formas humanas de este vuelo−
mira ensimismado su plumaje;
hay un momento, o borde o filo,
en que calla, calla, y canta al fin
unas pocas notas ásperas.


Eduardo Dalter
 

 

Há um momento em que antes de ir,
de voltar, a ave, ou estranho pássaro
- formas humanas deste voo -
olha ensimesmado a plumagem;
há um momento, ou margem ou fio,
em que cala, cala, e depois canta
umas poucas de notas ásperas.


(Trad. A.M.)

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24.6.23

Luís Filipe Castro Mendes (A misericórdia dos mercados)




A MISERICÓRDIA DOS MERCADOS

 

Nós vivemos da misericórdia dos mercados.
Não fazemos falta.
O capital regula-se a si próprio e as leis
são meras consequências lógicas
dessa regulação,
tão sublime que alguns vêem nela o dedo de Deus.
Enganam-se.
Os mercados são simultaneamente o criador
e a própria criação.
Nós é que não fazemos falta.

Luís Filipe Castro Mendes

.

22.6.23

Eduardo Chirinos (Derrota do Outono)




DERROTA DEL OTOÑO

 

Aquí no es bienvenido el otoño.
                                                       Nadie lo espera
a la orilla de ningún río melancólico
que esconda en su cauce los secretos del mundo.
El otoño reina en otras latitudes.
Allá lejos, donde los ciclos se cumplen, allá lejos
donde envejecen y renuevan las metáforas.

(El sol se hunde en un verdoso charco
donde flota, solitaria, una hoja de laurel).

Pero esta tarde no ha llovido. Las hojas
se aferran a sus ramas,
heroicamente luchan contra el viento
y en la noche celebran la derrota del otoño.

No saben que las hojas que caen son las escritas
y el árbol un seco y callado poema sin estrías.
 

Eduardo Chirinos

  

 

 Aqui não é bem-vindo o Outono.
                              Ninguém o espera
na margem de nenhum rio melancólico
escondendo no leito os segredos do mundo.
O Outono reina em outras latitudes.
Lá longe, onde se cumprem os ciclos, lá longe
onde as metáforas envelhecem e se renovam.

(O sol afunda-se num charco esverdeado
onde bóia, solitária, uma folha de louro).

Mas esta tarde não choveu. As folhas
agarram-se aos ramos,
lutam heroicamente contra o vento,
celebram de noite a derrota do Outono.

Não sabem que as folhas que caem são as escritas,
sendo a árvore um seco e calado poema sem estrias.


(Trad. A.M.)

.

21.6.23

Gonzalo Rojas (Os letrados)




LOS LETRADOS

 

Lo prostituyen todo
con su ánimo gastado en circunloquios.
Lo explican todo. Monologan
como máquinas llenas de aceite.
Lo manchan todo con su baba metafísica.

Yo los quisiera ver en los mares del sur
una noche de viento real, con la cabeza
vaciada en frío, oliendo
la soledad del mundo,
sin luna,
sin explicación posible,
fumando en el terror del desamparo.

Gonzalo Rojas

[Prosa caótica]



Prostituem tudo
com seu ânimo gasto em circunlóquios.
Explicam tudo. Monologam
como máquinas cheias de óleo.
Mancham tudo com sua baba metafísica.

Eu queria-os ver nos mares do sul
uma noite de vento mesmo, com a cabeça 
esvaziada em frio, a cheirar
a solidão do mundo,
sem lua,
sem explicação possível,
a fumar no terror do desamparo.

(Trad. A.M.)

 .

19.6.23

José Alberto Oliveira (Aguaceiro)




AGUACEIRO

 

Um aguaceiro em início
de tarde de Fevereiro,
a descoberto, na rua,
com rima incluída;
nem melancolia, nem tédio,
sobrevivem à trepidação
da chuva.

José Alberto Oliveira

 .

17.6.23

David Mayor (Bairro)




BARRIO

 

De la mano de mi madre
- con ese andar hasta el fin del mundo.

Memoria de calles sin asfaltar.
Tebeos en blanco y negro.
El ruido de los trenes de fondo llegando al Portillo.

Mi madre y todo su amor.
La vida en las manos
cuando Zaragoza era un barrio de mi barrio
y cada día una parada de autobús enseñaba
a estar solo y mirar
el espectáculo siempre formidable de lo que pasa a tu lado:
carteras a la espalda y perros lobo,
árboles recién plantados y el olor
del gasoil, niños con jerséis de cuello
vuelto y adultos vestidos como gigantes.

Una aurora que llegaba en los ojos de los míos,
en el tiempo que por entonces empezaba.
Todas las ventanas abiertas
para que entrara luz.


David Mayor

 


Pela mão de minha mãe
- com aquele andar até ao fim do mundo.

Lembrança de ruas de terra batida,
bandas desenhadas a preto e branco,
o ruído dos comboios a chegar a Portillo.

Minha mãe com todo o seu amor.
A vida nas mãos
quando Saragoça era um bairro do meu bairro
e cada dia uma paragem de autocarro ensinava
a estar sozinho e a olhar para
o espectáculo sempre novo daquilo que acontece a teu lado:
carteiras a tiracolo e cães-lobo,
árvores plantadas há pouco e o cheiro
do gasóleo, crianças com camisolas de gola alta
e adultos vestidos como gigantes.

Uma aurora que se anunciava nos olhos dos meus
no tempo que então começava.
As janelas todas abertas
para entrar a luz.


(Trad. A.M.)

.

16.6.23

David González (O quebra-mar)




EL ROMPEOLAS     

 

mi padre
se levanta temprano cada mañana
para ir a nadar
para ir a nadar
a la piscina municipal en invierno
y a la del mar cantábrico en verano 

él se cree que así
me comenta mi madre, escéptica
no se va a morir nunca 

desde la ventana del estudio
donde me encierro a escribir
desde por la mañana temprano
y durante las cuatro estaciones
puedo ver la playa de mi padre
la arena que está pisando
y si tuviese a mano unos prismáticos
y forzara un poco la vista
podría, incluso, verle a él 

hace tiempo, años, que no le veo
ni hablo con él
ni siquiera por teléfono 

pero cuando luego
retiro mi frente del cristal
y acerco la silla
apoyo los codos sobre la mesa
y empiezo a escribir
lo hago con la confianza
y seguridad
del que se sabe
con las espaldas protegidas: 

su padre está ahí afuera,
nadando

y no se va a morir nunca.
 

David González

 

  

meu pai
levanta cedo todos os dias
para ir nadar
para ir nadar
no Inverno na piscina municipal
no Verão na do mar cantábrico 

ele julga que assim
diz-me, céptica, a minha mãe
não vai morrer nunca 

da janela do escritório
onde me meto a escrever
desde manhã cedo
e durante as quatro estações
eu consigo ver a praia do meu pai
e se tivesse uns binóculos
e forçasse um pouco a vista
podia mesmo vê-lo a ele 

há tempo, anos, que o não vejo
nem falo com ele
nem sequer por telefone 

mas depois quando
afasto a testa do vidro
e aproximo a cadeira
e começo a escrever
com os cotovelos na mesa
faço-o com a segurança
e confiança
de quem sabe que tem
as costas quentes: 

o teu pai está lá fora,
a nadar 

e não vai morrer nunca.
 

(Trad. A.M.)

.

14.6.23

Jorge Sousa Braga (As árvores e os livros)



AS ÁRVORES E OS LIVROS    

 

As árvores como os livros têm folhas
e margens lisas ou recortadas,
e capas (isto é, copas) e capítulos
de flores e letras de oiro nas lombadas. 

E são histórias de reis, histórias de fadas,
as mais fantásticas aventuras,
que se podem ler nas suas páginas,
no pecíolo, no limbo, nas nervuras.  

As florestas são imensas bibliotecas,
e até há florestas especializadas,
com faias, bétulas e um letreiro
a dizer: «Floresta das zonas temperadas».  

É evidente que não podes plantar
no teu quarto, plátanos ou azinheiras.
Para começar a construir uma biblioteca,
basta um vaso de sardinheiras.
 

Jorge Sousa Braga

 .

12.6.23

Darío Jaramillo Agudelo (Esse outro que mora em mim)



 

Ese otro que también me habita,
acaso propietario, invasor quizás o exiliado 

en este cuerpo ajeno o de ambos,
ese otro a quien temo e ignoro, felino o ángel,
ese otro que está solo siempre que estoy solo, ave o demonio
esa sombra de piedra que ha crecido en mi adentro y en mi afuera,
eco o palabra, esa voz que responde cuando me preguntan algo,
el dueño de mi embrollo, el pesimista y el melancólico y el
                                                             inmotivadamente alegre,
ese otro,
también te ama.

 
Darío Jaramillo Agudelo 

 

Esse outro que mora em mim,
talvez proprietário, invasor quiçá ou exilado
neste corpo alheio ou de ambos,
esse outro que eu temo e ignoro, felino ou anjo,
esse outro que está só se eu estou só, ave ou diabo,
essa sombra de pedra que me cresceu dentro e fora,
eco ou palavra, essa voz que responde
quando me interrogam a mim,
o dono da minha embrulhada, o pessimista, o melancólico, o
                                       injustificadamente alegre,
esse outro,
também te ama.

(Trad. A.M.)

 .


11.6.23

Cristina Peri Rossi (Todo poeta sabe)




(Ill)
 
Todo poeta sabe 
que se encuentra al final
de una tradición
no al comienzo
por Io cual cada palabra que usa
revierte,
como las aguas de un océano inacabable,
a mares anteriores 
                                 -llenos de islas y de pelicanos,
                                 de plantas acuáticas y corales-
del mismo modo que un filamento delicado
tejido por una araña
reconstruye partes de una cosmogonía antigua
y lanza hilos de seda hacia sistemas futuros,
llenos de peces dorados y de arenas grises.

 
 Cristina Peri Rossi

[Marcelo Leites]

 


Todo poeta sabe que se encontra no fim
e não no início
de uma tradição,
pelo que cada palavra que usa
remonta,
como as águas de um oceano interminável.
a mares anteriores
               - cheios de ilhas e de pelicanos,
               de corais e plantas aquáticas -
assim como um filamento delicado
tecido pela aranha
reconstrói peças de uma cosmogonia antiga,
e lança fios de seda para sistemas futuros,
cheios de peixes dourados, de cinzentas areias.


(Trad. A.M.)

.

9.6.23

Joaquim Namorado (Milagre)




MILAGRE

 

Onde o santo punha o pé nasciam rosas

… e o povo lamentava
que não fizesse o mesmo com batatas.

 

Joaquim Namorado

 .

7.6.23

Manuel Moya / Xi Shuao (Céu aceso)




CIELO ENCENDIDO

 

Entonces me alzaba al escuchar
el sonido de unos pasos sobre el pasto,
o el lejano ladrido de un perro.
Cualquier cosa me encendía,
cualquier cosa me cegaba.
Ahora espero que al despertar
me sorprenda el silencio del humo
o la palidez de la escarcha al pie de los castaños.
No me conmueven ya
ni los ríos tumultuosos ni los remotos países
donde las mujeres bailan hasta el alba,
sino la sencillez de un cielo rielado de nubes,
el vuelo de la alondra de regreso a su nido,
o la franca alegría de un hombre
cuando ligero camina a sus asuntos.

Para vosotros el placer de las estrellas fugaces.
Dejadme aquí, frente al cielo encendido.


Xi Shuao Quan

 

 

Então erguia-me ao escutar
o som de passos no pasto,
ou o ladrar de um cão ao longe.
Qualquer coisa me acendia,
qualquer coisa me cegava.
Agora espero que ao despertar
me surpreenda o silêncio do fumo
ou a palidez do orvalho ao pé dos castanheiros.
Não me comovem já
nem os rios caudalosos nem os remotos países
onde as mulheres bailam até de manhã,
mas a singeleza de um céu cintilante de nuvens,
o voo da andorinha voltando ao ninho,
ou a franca alegria de um homem
caminhando ligeiro a tratar de seus assuntos.

Guardai para vós o prazer das estrelas fugazes,
a mim deixai-me aqui, diante do céu aceso.


(Trad. A.M.)

.

6.6.23

José A. Ramírez Lozano (O silêncio)




EL SILENCIO

 

El silencio abastece
la soledad y da en las sombras
de comer a los peces.

Él nos guarda la casa
como el polvo, con esa
oscura mansedumbre
de la misericordia,
y vigila el olvido,
la virtud del aceite,
el filo de los verbos
con que nos castigamos.

El silencio se busca
para hacerse más hondo
en los desfiladeros del susurro,
en la desolación, allá
donde tampoco alcanzan las palabras
y el amor se cobija del acecho
de las profanaciones.

José A. Ramírez Lozano

[Trianarts]



O silêncio abastece a solidão 
e dá de comer aos peixes
na sombra.

Guarda-nos a casa,
tal como o pó,
tão manso 
como a misericórdia,
e vigia o olvido,
a virtude do óleo,
o fio dos verbos
com que nos castigamos.

Busca-se o silêncio 
para se fazer mais fundo
nos desfiladeiros do sussurro,
na desolação, lá
onde não chegam as palavras
e o amor se abriga das profanações.

(Trad. A.M.)

 .

4.6.23

Mário Dionísio (Arte poética)



ARTE POÉTICA

 

A poesia não está nas olheiras imorais de Ofélia
nem no jardim dos lilases.
A poesia está na vida,
nas artérias imensas cheias de gente em todos os sentidos,
nos ascensores constantes,
na bicha de automóveis rápidos de todos os feitios e de todas as cores,
nas máquinas da fábrica e nos operários da fábrica
e no fumo da fábrica.
A poesia está no grito do rapaz apregoando jornais,
no vaivém de milhões de pessoas conversando ou prague­jando ou rindo.
Está no riso da loira da tabacaria,
vendendo um maço de tabaco e uma caixa de fósforos.
Está nos pulmões de aço cortando o espaço e o mar.
A poesia está na doca,
nos braços negros dos carregadores de carvão,
no beijo que se trocou no minuto entre o trabalho e o jantar
— e só durou esse minuto.
A poesia está em tudo quanto vive, em todo o movimento,
nas rodas do comboio a caminho, a caminho, a caminho
de terras sempre mais longe,
nas mãos sem luvas que se estendem para seios sem véus,
na angústia da vida.
A poesia está na luta dos homens,
está nos olhos abertos para amanhã.
 

Mário Dionísio

.

2.6.23

Claudio Bertoni (Magrinha)




FLAQUITA

 

Eres la estufa
más poderosa
de la tierra
Estás
en Barcelona
 
-a 18 mil kms
de distancia-
 
Y todavía
me calientas

Claudio Bertoni

 

 

Tu és o aquecedor
mais potente
da terra
Estás em Barcelona

- a 18.000 Km
de distância –

E ainda
me aqueces


(Trad. A.M.)

.

1.6.23

Chantal Maillard (Desejei, em tempos)




Deseé alguna vez que un poeta me amase.

Ahora duelen sus poemas en mi cuerpo‚
algo de mí que en él se reconoce hasta quebrar la imagen
de todo lo que fui.
Ahora deseo que me amase tanto que dejara de amarme
y sus palabras fuesen nieve
que el sol de junio fundiese entre mis pechos‚
allí donde su aliento insiste en acallar
esta tristeza antigua que siempre me acompaña.

Chantal Maillard

 

 

Desejei, em tempos, que um poeta me amasse.

Agora seus poemas doem-me no corpo,
algo de mim que nele se reconhece até se quebrar a imagem
de tudo aquilo que eu fui.
Agora queria que me amasse tanto que deixasse de me amar
e suas palavras fossem neve
que o sol de Junho derretesse no meu peito,
ali onde seu hálito teima em aplacar
esta tristeza antiga que sempre me acompanha.


(Trad. A.M.)

 .