30.7.19

Giuseppe Ungaretti (Manhã)





MATTINA



M’illumino
d’immenso

Giuseppe Ungaretti




Ilumino-me
de imenso

(Trad. A.M.)

.

29.7.19

Miquel Martí i Pol (Ausência)





AUSÊNCIA



É bom ter sempre a jeito o recurso
de uma palavra para encher o vazio de ti,
para fazer dela a couraça que me proteja
do pesadelo da ânsia e da tristeza.

E então fazes-te-me presente em cada
verso que escrevo e quando, a sós, o repito
não há distância entre teu corpo e o meu,
unidos no poema para sempre.


Miquel Martí i Pol

(Trad. A.M./ sobre versão cast. Joan B. Fort i Olivella)

.

27.7.19

Miguel Hernández (Ausência em tudo vejo)





Ausencia en todo veo:
tus ojos la reflejan.

Ausencia en todo escucho:
tu voz a tiempo suena.

Ausencia en todo aspiro:
tu aliento huele a hierba.

Ausencia en todo toco:
tu cuerpo se despuebla.

Ausencia en todo pruebo:
tu boca me destierra.

Ausencia en todo siento:
ausencia, ausencia, ausencia.


Miguel Hernández




Ausência em tudo vejo:
teus olhos a reflectem.

Ausência em tudo ouço:
tua voz a tempo soa.

Ausência em tudo aspiro:
teu hálito tem cheiro de erva.

Ausência em tudo toco:
teu corpo se despovoa.

Ausência em tudo encontro:
tua boca me desterra.

Ausência em tudo sinto:
ausência, ausência, ausência.


(Trad. A.M.)

.

26.7.19

Luciano de Giovanni (Os pássaros)





Gli uccelli
possono volare
perché sono
innocenti
non è questione
d’ali

Luciano de Giovanni




Os pássaros
conseguem voar
porque são
inocentes
não é questão
de asas

(Trad. A.M.)


>>  Il fatto quotidiano (6p) / Zret (6p) / La poesia (perfil)

.

24.7.19

José A. Ramírez Losano (Vaca de Espanha)





VACA DE ESPAÑA



Era una vez una vaca
que en su piel traía pintado
el mapa negro de España.

Vaca enorme y singular,
ponía los cuernos a Francia,
su boñiga en Portugal.

Vaca sola que pastaba
la grama de esta heredad
patria de los cementerios

y amamantaba a sus muertos
con leche verde de ortigas,
flor de la envidia
y maldición de los huertos.

Y sí mugía
—¡maldita vaca!—
partía en dos la cruz
de Caravaca.


José A. Ramírez Lozano

[Trianarts]




Era uma vez uma vaca
que tinha pintado na pele
o mapa negro de Espanha.

Vaca enorme e singular,
punha os cornos em França
e a trampa em Portugal.

Uma vaca que pastava
a erva desta herdade,
pátria dos cemitérios;

e amamentava os mortos
com leite verde de ortigas,
flor de inveja
e maldição dos pomares.

E se mugia
– maldita vaca! –
rachava ao meio
a cruz de Caravaca.

(Trad. A.M.)

.

23.7.19

Andrés Trapiello (Vontades)





VOLUNTADES



Dejó dicho:
             En mi entierro
ni responsos ni misas, ni música ni flores.
Si acaso, de estas últimas,
sólo las que en un vaso pusimos tantas veces:
lilas, rosas, jazmines.
Pero mejor aún: ese trabajo
de ser flores dejadlo a las que crecen
sin nombre entre las tumbas. Y la música,
a jilgueros y mirlos, que ninguno
lo hará mejor que ellos,
con tanta suavidad ni su constancia.
Deberían responsos y misas reservarse
a aquellos que en verdad los ganaron a pulso.
No quiero que incumplir
algunas de estas mandas os aflija:
bien sé yo que la vida va por libre.
Y si podéis, venid sólo vosotros,
que la muerte no sea diferente
a ninguna otra fiesta de nuestra intimidad:
lilas, rosas, jazmines.


Andrés Trapiello

[Susana Benet]




Deixou dito:
            No meu enterro
nem responsos nem missas, nem música nem flores.
Se porventura, destas últimas,
só as que num vaso pusemos tanta vez,
lilases, rosas, jasmins.
Mas melhor ainda, esse papel
das flores deixai-o para as que crescem
sem nome entre as campas. E a música,
por conta de melros e rouxinóis, que ninguém
fará melhor do que eles,
nem com tanto aprumo e suavidade.
Missas e responsos devem reservar-se para
quem lhes ganhou direito.
Em todo o caso, que não vos aflija
incumprir estas vontades,
a vida é assim mesmo, já se sabe.
E se puderdes, vinde só vós mesmo,
que a morte não seja diferente
de outra festa qualquer da nossa intimidade:
lilases, rosas, jasmins.

(Trad. A.M.)

.

21.7.19

Gil Vicente (Vanse mis amores)





Vanse mis amores, madre,
luengas tierras van morar:
yo no los puedo olvidar,
¿quién me los hará tornar?

Yo soñara, madre, un sueño
que me dio en el corazón:
que se iban los mis amores
a las islas de la mar.
Yo no los puedo olvidar,
¿quién me los hará tornar?

Yo soñara, madre, un sueño
que me dio en el corazón:
que se iban los mis amores
a las tierras de Aragón.
Allá se van a morar:
yo no los puedo olvidar,
¿quién me los hará tornar?


Gil Vicente

[Un poema cada dia]

.

19.7.19

Miguel d'Ors (Onde o poeta se despede)





DONDE EL POETA SE DESPIDE
DEFINITIVAMENTE DEL COTARRO



Adiós, adiós revistas, premios, antologías,
fulgores de El País y el Segundo Canal,
adiós generación del 70, divino
tesoro, te he perdido para nunca jamás.

Para ser comunista me falta la langosta
(que no es poco faltar)
y, como don Antonio, tampoco soy un ave
de ésas (menudos pájaros) del nuevo gay trinar,
y no versificando ni a la izquierda
ni debajo de nadie, ustedes me dirán.

Adiós entonces, fama, adiós obras completas,
adiós escalinatas hacia Carlos Barral,
adiós muchachos, nunca compañeros
de mi vida (a Dios gracias –y gracias además
a los sabios consejos sobre las compañías
que me dio mi papá–).

Pero todos felices: la Poesía
y yo tendremos más intimidad,
y vosotros qué gozo: en la carpeta
de Félix Grande un poco menos de original
y un poco más de alfalfa en los amenos prados
del Parnaso local.


Miguel d’Ors




Adeus, adeus revistas, prémios, antologias,
fulgores de El País e do Segundo Canal,
adeus geração de 70, divino tesouro,
que te perdi para nunca mais.

Para ser comunista falta-me a lagosta
(o que não é pouco faltar)
e, como don Antonio, também não sou ave
dessas (miúdos pássaros) do novo gay trinar,
e não versificando nem à esquerda
nem debaixo de ninguém, vocês me dirão.

Adeus então, fama, adeus obras completas,
adeus escadas para Carlos Barral,
adeus muchachos, jamais companheiros
de mi vida (a Deus graças – e graças também
aos sábios conselhos de companhias
que me deu meu paizinho).

Mas todos felizes, teremos
mais intimidade eu e a Poesia,
e que consolo para vós: na pasta
de Félix Grande um pouco menos de original
e um pouco mais de alfafa nos prados amenos
do Parnaso local.


(Trad. A.M.)

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18.7.19

Mario Míguez (O milagre do velho Manuel)





EL MILAGRO DEL VIEJO MANUEL



Ya están definitivamente quietas:
hoy se fueron enfriando entre las mías
y no hubo nadie más para estrecharlas.
Qué milagro tan tierno en sus caricias.
Porque aquellas dos manos delicadas,
las temblorosas manos del anciano
que era huérfano y pobre desde niño,
y se crió con hambre y abandono
y vivió el desamparo de las lágrimas,
esas manos cansadas ya y enfermas,
transmitían lo más inesperado:
ofrecían el más puro cariño,
el necesario y limpio amor que siempre
le fue negado a él desde la infancia.


Mario Míguez





Já não mexem mais,
foram arrefecendo hoje entre as minhas
e não havia mais ninguém para apertá-las.
Que milagre de ternura nas suas carícias!
Porque aquelas duas mãos delicadas,
as mãos tremidas do ancião
que era pobre e órfão desde pequeno,
criado com fome e abandono,
no desamparo das lágrimas,
essas mãos cansadas já e doentes
transmitiam o mais inesperado,
ofereciam o mais puro carinho,
o necessário e limpo amor que sempre
lhe foi negado a ele desde criança.

(Trad. A.M.)

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16.7.19

Eugénio de Andrade (Foz do Douro)






FOZ DO DOURO



É outra vez abril
– e tão perfeito é o azul
que o estendo
ao longo do meu corpo.
Não sei de ninguém tão bem vestido!


Eugénio de Andrade

[Canal de poesia]

.

14.7.19

Eugénia de Vasconcellos (Lembra)





LEMBRA



Digo-te isto para que saibas quem és,
às vezes,
esquecemos, confundimos,
desconseguimos e ao fim, desacreditamos,
colam-se-nos os fantasmas
dos vivos e as memórias dos mortos
e da voz faz-se um fio à míngua de palavras
- e onde a palavra não chega, o pensamento
não cria o acto e morre-se, morre-se, morre-se
um dia de cada vez de tanto não ser. Então
digo-te isto para que saibas quem és:
és um ponto suspenso no infinito, e
lembra: o infinito cabe num ponto.


Eugénia de Vasconcellos

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13.7.19

Miguel Barnet (Saimos para a rua)





Salimos a la calle, caminamos bajo la llovizna,
entramos en un bar, bebemos, compramos una pizza,
la envolvemos, se enfría, la tiramos,
seguimos malecón abajo, las olas blancas
levantan sobre nuestras cabezas,
la noche es lenta, acuosa, no sé si triste,
tomamos café, tú casi no me ves, no me oyes
Te acompaño al ómnibus
No puedo articular palabra
Te vas en silencio
Yo tomo el ómnibus siguiente,
nada me molesta, ni el tumulto ni el vocerío,
me quedo en el puente,
las parejas jugueteando en la yerba,
demasiado lejos mi casa
Entro, subo las escaleras
Repaso mi vida, y en cada imagen estás,
en cada imagen perteneces,
abro la puerta, el apagón, qué maravilla,
me tiro en la cama, oscuro, silencioso.
Alguien llama al teléfono. No respondo.
Afuera es posible que siga cayendo la llovizna.


Miguel Barnet




Saímos para a rua, caminhamos à chuva,
entramos num bar, bebemos, compramos uma piza,
embrulhamo-la, arrefece, deitamo-la fora,
seguimos pela marginal, as ondas brancas
erguem-se sobre as nossas cabeças,
a noite é lenta, aquosa, não sei se triste,
tomamos café, tu quase não me vês, não me ouves
Acompanho-te ao ónibus
Não posso articular palavra
Vais-te em silêncio
Eu tomo o ónibus seguinte,
nada me incomoda, nem o tumulto nem as vozes,
detenho-me na ponte,
os pares a brincar sobre a erva,
muito longe a minha casa
Entro, subo a escada
Revejo a minha vida e em cada imagem tu estás,
em cada imagem pertences,
abro a porta, o apagão da luz, que maravilha,
estiro-me na cama, escuro, em silêncio.
Lá fora, se calhar, continua a cair a chuva.

(Trad. A.M.)

.

11.7.19

Meira Delmar (Hóspede sem sombra)





HUÉSPED SIN SOMBRA



Nada deja mi paso por la tierra.
En el momento del callado viaje
he de llevar lo que al nacer me traje:
el rostro en paz y el corazón en guerra.

Ninguna voz repetirá la mía
de nostálgico ardor y fiel asombro.
La voz estremecida con que nombro
el mar, la rosa, la melancolía.

No volverán mis ojos renacidos
de la noche a la vida siempre ilesa,
a beber como un vino la belleza
de los mágicos cielos encendidos.

Esta sangre sedienta de hermosura
por otras venas no será cobrada.
No habrá manos que tomen, de pasada,
la viva antorcha que en mis manos dura.

Ni frente que mi sueño mutilado
recoja y cumpla victoriosamente.
Conjuga mi existir tiempo presente
sin futuro después de su pasado.

Término de mí misma, me rodeo
con el anillo cegador del canto.
Vana marea de pasión y llanto
en mí naufraga cuanto miro y creo.

A nadie doy mi soledad. Conmigo
vuelve a la orilla del pavor, ignota.
Mido en silencio la final derrota.
Tiemblo del día. Pero no lo digo.


Meira Delmar




Nada fica da minha passagem na terra.
No momento da partida,
levarei o que trouxe ao nascer,
o rosto em paz, o coração em guerra.

Nenhuma voz repetirá a minha
de ardor nostálgico, de fiel assombro,
a voz estremecida com que nomeio
o mar, a rosa, a melancolia.

Meus olhos renascidos da noite
para a vida sempre ilesa
não voltarão a beber o vinho da beleza
dos mágicos céus incendidos.

Este sangue sedento de beleza
não será cobrado por outras veias.
Nem mãos haverá que tomem, de passagem,
a tocha viva que me arde nas mãos.

Nem frente que meu sonho mutilado
recolha e cumpra vitorioso.
Meu existir combina tempo presente
sem futuro depois de seu passado.

Termo de mim mesma, ponho
o anel cegador do canto.
Maré vã de pranto e paixão,
em mim naufraga quanto olho e creio.

A ninguém dou minha solidão. Ignota,
volta comigo à margem do pavor.
Em silêncio meço a derrota final,
tremo do dia, mas não o digo.


(Trad. A.M.)

.

10.7.19

Eucanaã Ferraz (O ator)






O ATOR



Pensei em mentir, pensei em fingir,
dizer: eu tenho um tipo raro de,
estou à beira,
embora não aparente. Não aparento?
Providências: outra cor na pele,
a mais pálida; outro fundo para a foto:
nada; os braços caídos, um mel
pungente entre os dentes.
Quanto à tristeza
que a distância de você me faz,
está perfeita, fica como está: fria,
espantosa, sete dedos
em cada mão. Tudo para que seus olhos
vissem, para que seu corpo
se apiedasse do meu e, quem sabe,
sua compaixão, por um instante,
transmutasse em boca, a boca em pele,
a pele abrigando-nos da tempestade lá fora.
Daria a isso o nome de felicidade,
e morreria.
Eu tenho um tipo raro.


Eucanaã Ferraz

.

8.7.19

Pedro Sevilla (O tempo)





EL TIEMPO



Era en el alto espejo del tocador aquel.

Mi madre, jovencísima, adolescente casi,
con los hombros desnudos,
se retoca el peinado
y a través del cristal me mira y me sonríe.

Por el postigo abierto de la ventana azul,
mariposa amarilla,
entra un rayo de sol que se posa en su cuello,
tiembla un poco y se va
dejando imperceptibles quemaduras.

Luego llegó el incendio de los años.


Pedro Sevilla

[La mirada del lobo]




Era no espelho alto do toucador.

Minha mãe, muito jovem, quase adolescente,
os ombros despidos,
retoca o penteado
e pelo vidro olha para mim e sorri-me.

Pelo postigo aberto da janela azul,
borboleta amarela,
entra um raio de sol que lhe pousa no pescoço,
estremece um pouco e vai-se,
deixando queimaduras imperceptíveis.

Depois veio o incêndio dos anos.

(Trad. A.M.)

.

7.7.19

Raúl González Tuñón (A liberdade)




LA LIBERTAD


I

De pronto entró la Libertad.

La Libertad no tiene nombre,
no tiene estatua ni parientes.
La Libertad es feroz.
La Libertad es delicada.

La Libertad es simplemente
la Libertad.

Ella se alimenta de muertos.
Los Héroes cayeron por Ella.
Sin angustia no hay Libertad,
sin alegría tampoco.
Entre ambas la Libertad
es el armonioso equilibrio.

Nosotros tenemos vergüenza,
la Libertad no la tiene,
la Libertad anda desnuda.
(Y el señor Jesucristo dijo
que el reino de Dios vendrá
cuando andemos de nuevo desnudos
y no tengamos vergüenza.)

Hermanos, nosotros sabemos,
pero la Libertad no sabe.


II

Hay que ser piedra o pura flor o agua,
conocer el secreto violeta de la pólvora,
haber visto morir delante del relámpago,
conocer la importancia del ajo y el espliego,
haber andado al sol, bajo la lluvia, al frío,
haber visto a un soldado con el fusil ardiente,
cantando, sin embargo, la Libertad querida.

Viva el amor, la vida poderosa,
la muerte creadora de olores penetrantes
y eso porque uno muere y resucita,
la luz sobre los techos de la aurora,
sobre las torres del petróleo,
sobre las azoteas de las parvas,
sobre los mástiles del queso y el vino,
sobre las pirámides del cuero y el pan,
la gente retornando,
una ventana con la bandera en familiar bordado
y la exacta ambulancia, con heridos,
cantando, sin embargo, la Libertad querida.

Hay que ser como el puente necesario,
natural como el lirio, como el toro,
saber llegar al fondo del silencio,
al subsuelo del brote y a la raíz del grito,
hay que haber conocido el miedo y el valor,
haber visto una mano que agita una linterna
de noche, hacia el distante nido de metralla,
hay que haber visto a un muerto cicatrizado y solo
cantando, sin embargo, la Libertad querida.


III

De pronto entró la Libertad.

Estábamos todos dormidos,
algunos bajo los árboles,
otros sobre los ríos,
algunos más entre el cemento,
otros más bajo la tierra.

De pronto entró la Libertad
con una antorcha en la mano.

Estábamos todos despiertos,
algunos con picos y palas,
otros con una pantalla verde,
algunos más entre libros,
otros más arrastrándose, solos.

De pronto entró la Libertad
con una espada en la mano.

Estábamos todos dormidos,
estábamos todos despiertos
y andaban el amor y el odio
más allá de las calaveras.

De pronto entró la Libertad,
no traía nada en la mano.

La Libertad cerró el puño.
¡Ay! Entonces...


Raúl González Tuñón




I

De repente entrou a Liberdade.

A Liberdade não tem nome,
não tem estátua nem parentes,
a Liberdade é feroz,
a Liberdade é delicada.

A Liberdade é simplesmente
a Liberdade.

Ela alimenta-se de mortos,
os Heróis caíram por Ela.
Sem angústia não há Liberdade,
sem alegria tão pouco.
Entre ambas a Liberdade
é o harmonioso equilíbrio.

Nós todos temos vergonha,
a Liberdade não,
a Liberdade anda despida.
(E Jesus Cristo, Nosso Senhor, disse
que o reino de Deus há-de vir
quando andarmos novamente despidos
e não tivermos vergonha)

Irmão, nós sabemos,
mas a liberdade não sabe.


II

Há que ser pedra, água ou pura flor,
conhecer o segredo violeta da pólvora,
ter visto a morte face ao relâmpago,
saber a importância do alho, da alfazema,
ter andado ao sol, à chuva, ao frio,
ter visto um soldado com a arma escaldante,
cantando, não obstante, a Liberdade querida.

Viva o amor, a vida poderosa,
a morte criadora de cheiros penetrantes,
já que a gente morre e ressuscita,
viva a luz nos telhados da aurora,
nas torres de petróleo,
nos sótãos e nos terraços,
nos braços do queijo e do vinho,
nas pirâmides do couro e do pão,
as pessoas a regressar,
uma janela de cortina bordada
e a exacta ambulância, com feridos,
cantando, não obstante, a Liberdade querida.

Há que ser como a ponte necessária,
natural como o lírio, como o touro,
saber ir ao fundo do silêncio,
ao subsolo do rebento, à raiz do grito,
há que ter conhecido o medo e a coragem,
ter visto uma mão agitando a lanterna
de noite, para o distante ninho da metralha,
há que ter visto um morto recuperado e solitário,
cantando, não obstante, a Liberdade querida.


III

De repente, entrou a Liberdade.

Estávamos todos dormindo,
uns debaixo das árvores,
outros sobre os rios,
outros ainda sobre o betão
ou mesmo debaixo de terra.

De repente entrou a Liberdade
com uma tocha na mão.

Estávamos todos despertos,
uns armados de pau e pico
e outros de lenço verde,
uns no meio dos livros
e outros ainda pelo chão,
arrastando-se, sozinhos.

De repente entrou a Liberdade
com uma espada na mão.

Estávamos todos dormindo,
estávamos todos despertos,
enquanto o amor e o ódio
vagavam entre as caveiras.

De repente entrou a Liberdade
e não trazia nada na mão.

A Liberdade cerrou o punho.
Ai, então…


(Trad. A.M.)

.

5.7.19

Egito Gonçalves (Notícia para colar na parede)





NOTÍCIA PARA COLAR NA PAREDE



Por aqui andamos a morder as palavras
dia a dia no tédio dos cafés
por aqui andaremos até quando
a fabricar tempestades particulares
a escrever poemas com as unhas à mostra
e uma faca de gelo nas espáduas
por aqui continuamos ácidos cortantes
a rugir quotidianamente até ao limite da respiração
enquanto os corações se vão enchendo de areia
lentamente
lentamente


Egito Gonçalves

.

3.7.19

José Cereijo (Testamento)





TESTAMENTO



Este profundo azul del cielo en primavera,
el canto de los pájaros, el rumor de los sueños,
el amor de los libros, siempre correspondido,
el silencio del alba,
el de mi corazón, algunas veces,
las horas que hacen dulce, secreta la memoria:
es todo para ella.

Todo para la muerte, que me ha querido tanto.


José Cereijo





Este profundo azul do céu na primavera,
o canto dos pássaros, o rumor dos sonhos,
o amor dos livros, sempre correspondido,
o silêncio da aurora,
o do meu coração, certas vezes,
as horas que fazem doce, secreta a memória,
é tudo para ela.

Tudo para a morte, que tanto me quis.

(Trad. A.M.)

.

2.7.19

Mariano Crespo (Mulheres e escadas)





MUJERES Y ESCALERAS



¡Ay! Mis mujeres.

Nunca fui un sibarita.
Mi madre fue una mujer de campo
que se arrodilló ante dios y la higiene
de unas escaleras que no llevaban al cielo.

Mis mujeres.
Nunca fueron sibaritas.
La que me besa ahora sabe que huelo a vecino de rellano,
a ciudadano perplejo.

A ese sujeto con miedos cotidianos
que llamamos hombre medio.

Las mujeres sibaritas besan el éxito
y de ahí no provengo.
Estoy empadronado en la cola del empadronamiento.
Buscadme por la "Z" en el abecedario de méritos.

Subo por escaleras que mi madre fregó
y que no llevan al cielo.


Mariano Crespo




Ah, as minhas mulheres!

Eu nunca fui um sibarita.
Minha mãe foi uma mulher do campo,
ajoelhada perante Deus, assim como a esfregar
umas escadas que não levavam ao céu.

As minhas mulheres!
Nunca foram sibaritas,
a que agora me beija sabe que eu cheiro a cidadão perplexo,
morador de vão de escada.

Àquele sujeito com medos diários
que chamamos de homem médio.

As mulheres sibaritas beijam o sucesso
e eu não é daí que venho.
Eu estou classificado na fila de classificação,
procurai-me pelo ‘z’ na relação de mérito.

Subo por escadas que minha mãe esfregou
e que não levam ao céu.

(Trad. A.M.)

.