30.6.07

Casimiro de Brito (Não escolho nada)






NÃO ESCOLHO NADA DEIXO-ME VESTIR





Não escolho nada deixo-me vestir
Pela música discreta que tacteia
Meu corpo em sua breve caminhada.



Não desejo nada consinto apenas
Que a dor me visite e a jovem ceifeira,
Mãe das coisas todas, me seduza.



Não escolho nada nem sequer o vaso
Onde me derramo devagar
Como se fosse água, ou leve lume.



CASIMIRO DE BRITO
Na via do mestre


28.6.07

Um verso (35)





Um verso de Amadeu Baptista
(nihil humanum a me alienum puto):









Tudo o que é humano me atinge,
porque tudo o que é humano é divino.
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Corpo presente (34)







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VIDA






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É sempre curta a vida,
mesmo que longa

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Aquilino Ribeiro (O Inverno à porta)






(O Inverno à porta…)





Vinha lá o Inverno - ouvia-se zoar muito a ribeira, e a Serra da Estrela mostrava desde a antevéspera os corutos emaçarocados de neve. E a chuva já estava em atraso, o grão por grelar na terra esmilhenta, onde os borborinhos faziam espojadoiros pasmosos de lobisomens. (…)

O sol ficava em casa de Deus, e os dias tinham a tristura das igrejas em semana de endoenças. Pelos morros, os pinhais, muito crestados da canícula, pareciam procissões de enterro, paradas a rezar.

O grande cão entrava sempre assim, enfarinhado de cinzas, manso, com a capa de penitente. Depois rompia aos uivos que nem cem matilhas a um lobo. Por aqueles outeiros arriba era o soão quem mais bramia, parecendo ora vozes a pedir misericórdia, ora bocas desdentadas de feiticeiras em despique danado. Os seres vivos acoitavam-se nos refolhos; raro uma lebre largava diante dos gados, animando a devesa imóvel de sua fuga alerta; um mocho, ao alto de uma penha, com a cabeça recolhida entre as asas, tinha o ar de quem espera o fim do mundo.


- AQUILINO RIBEIRO, Terras do Demo, ed. 1963, pp. 175-6.

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25.6.07

Julio Cortázar (Bolero)





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BOLERO






Que vaidade imaginar
que posso dar-te tudo, amor e fortuna,
itinerários, música, brinquedos.
É verdade que sim:
dou-te tudo que é meu, é verdade,
mas isso tudo que é meu não te basta
como a mim não me basta que me dês
tudo que é teu.



Por isso nunca seremos
o casal perfeito, o bilhete postal,
se não formos capazes de aceitar
que só na aritmética
o dois nasce de um mais um.



Um papelito por aí
diz simplesmente:
Foste sempre o meu espelho,
quer dizer, para me ver tinha que olhar-te.



E este fragmento:
A lenta máquina do desamor
a engrenagem do refluxo
os corpos que deixam as almofadas
os lençóis os beijos




e de pé frente ao espelho interrogando-se
cada um a si mesmo
já não olhando-se entre si
não já nus para o outro
não já te amo,
meu amor



Júlio Cortázar


(Trad. A.M.)


Original: Prosa Caótica



Fontes: Sitio Oficial (vida+obras+fotos+voz+linques) / Outro (idem/aspas) / EPDLP (bio+textos+fotos) / Los Poetas (bio+14p) /Portal de Poesia (21p) / A-media-voz (32p)

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21.6.07

Carlos Drummond de Andrade (Amor é bicho instruído)







AMOR É BICHO INSTRUÍDO





Amor é bicho instruído
Olha: o amor pulou o muro
o amor subiu na árvore
em tempo de se estrepar.
Pronto, o amor se estrepou.
Daqui estou vendo o sangue
que escorre do corpo andrógino.
Essa ferida, meu bem
às vezes não sara nunca
às vezes sara amanhã.



Carlos Drummond de Andrade
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Jorge de Sena (Dizia uma vez Aquilino)






DIZIA UMA VEZ AQUILINO...





Dizia uma vez Aquilino que em Portugal
os filósofos se exilavam ainda em seu país
(v.g. Spinoza). O curioso porém
é que também ninguém foi santo lá:
os nascidos em Portugal foram todos sê-lo noutra parte
(St. António, S. João de Deus, etc.)
e outros santos portugueses, se o foram,
terá sido, porque, estrangeiros que eram e em Portugal
vivendo, não tiveram outro remédio
(v.g. Rainha Santa) senão ser santos,
à falta de melhor. Oh país danado.
Porque os heróis também nunca tiveram melhor sorte
(Albuquerque e outros que o digam) a menos que
tivessem participado de revoluções feitas
"em vez de" (v.g. o Condestável que fez
fortuna e a casa de Bragança e acabou só Santo quase).



Jorge de Sena






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17.6.07

Olhar (6)







Paúl de Arzila

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Fernão Lopes (Começou de a amar de vontade)











(Como se o Iffante Dom Joham namorou de Dona Maria, irmã da Rainha, e como casou com ella escomdidamente…)











O Iffante que a vija a meude, sememçamdo sua fremosura e estado, e assi graciosa, que a juízo de todos enhadia mujto em ella, começou de a amar de voomtade; e revolvemdosse a meude em este pemssamemto, secretariamente lhe emviou descobrir seu amor: mas a comprir seu deseio como el queria, lhe eram mujtas cousas comtrairas, porque a dona era mujto sesuda, e corda, e discreta, e bem guardada, e emviousselhe defender com boas e mesuradas razoões.


- FERNÃO LOPES, Crónica do Senhor Rei Dom Fernando, Nono Rei destes Regnos, cap. C.


14.6.07

Manoel de Barros (A namorada)





A NAMORADA






Havia um muro alto entre nossas casas.
Difícil de mandar recado para ela.
Não havia e-mail.
O pai era uma onça.
A gente amarrava o bilhete numa pedra presa por
um cordão
e pinchava a pedra no quintal da casa dela.
Se a namorada respondesse pela mesma pedra
era uma glória!
Mas por vezes o bilhete enganchava nos galhos da goiabeira
e então era agonia.
No tempo do onça era assim.




Manoel de Barros




Fontes: Releituras (bio+biblio+6p) / Jornal de Poesia (5p+criticas+entrevistas) / Poesia.net (3p) / Blocos-on-line (9p)

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Coitado do Jorge (37)








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FÓNIX








Voltei a cabeça, olhei-a nos olhos e não disse nada.
Mas pensei: “Apetecia-me beber-te”.

E foi ela que disse: “…Beber-te?”
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11.6.07

Um verso (34)












Um verso de Miguel Hernández
(ilustrando a palavra ‘páramo’):







Nunca medraram os bois
nos páramos da Espanha.
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Ruy Belo (Peregrino e hóspede)










País - 1 (Jorge de Sena)

País - 2 (A. O'Neill)

País - 3 (Jorge de Sena)

País - 4 (A. O'Neill)

País -5 (Ruy Belo)




PEREGRINO E HÓSPEDE SOBRE A TERRA



 
Meu único país é sempre onde estou bem
é onde pago o bem com sofrimento
é onde num momento tudo tenho
O meu país agora são os mesmos campos verdes
que no outono vi tristes e desolados
e onde nem me pedem passaporte
pois neles nasci e morro a cada instante
que a paz não é palavra para mim
O malmequer a erva o pessegueiro em flor
asseguram o mínimo de dor indispensável
a quem na felicidade que tivesse
veria uma reforma e um insulto
A vida recomeça e o sol brilha
a tudo isto chamam primavera
mas nada disto cabe numa só palavra
abstracta quando tudo é tão concreto e vário
O meu país são todos os amigos
que conquisto e que perco a cada instante
Os meus amigos são os mais recentes
os dos demais países os que mal conheço e
tenho de abandonar porque me vou embora
porque eu nunca estou bem aonde estou
nem mesmo estou sequer aonde estou
Eu não sou muito grande nasci numa aldeia
mas o país que tinha já de si pequeno
fizeram-no pequeno para mim
os donos das pessoas e das terras
os vendilhões das almas no templo do mundo
Sou donde estou e só sou português
por ter em portugal olhado a luz pela primeira vez



RUY BELO
Transporte no Tempo
(1973)



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7.6.07

Corpo presente (33)





BICHOS-2





A águia ensina o filho a voar:


“Olha para mim, faz como eu”.
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Adélia Prado (Briga no beco)



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BRIGA NO BECO





Encontrei meu marido às três horas da tarde
com uma loura oxidada.
Tomavam guaraná e riam, os desavergonhados.
Ataquei-os por trás com mãos e palavras
que nunca suspeitei conhecer.
Voaram três dentes e gritei, esmurrei-os e gritei,
gritei meu urro, a torrente de impropérios.
Ajuntou gente, escureceu o sol,
a poeira adensou como cortina.
Ele me pegava nos braços, nas pernas, na cintura,
sem me reter, peixe-piranha, bicho pior, fêmea-ofendida,
uivava.
Gritei, gritei, gritei, até a cratera exaurir-se.
Quando não pude mais fiquei rígida,
as mãos na garganta dele, nós dois petrificados,
eu sem tocar o chão. Quando abri os olhos,
as mulheres abriam alas, me tocando, me pedindo graças.
Desde então faço milagres.

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ADÉLIA PRADO
Bagagem (1976)

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2.6.07

Jaime Sabines (Dóis-me)









ME DUELES






Me dueles.
Mansamente, insoportablemente, me dueles.
Toma mi cabeza, córtame el cuello.
Nada quede de mí después de este amor.



Entre los escombros de mi alma búscame,
escúchame.
En algún sitio mi voz, sobreviviente, llama,
pide tu asombro,
tu iluminado silencio.



Atravesando muros, atmósferas, edades,
tu rostro (tu rostro que parece que fuera cierto)
viene desde la muerte, desde antes
del primer día que despertara al mundo.



¡Qué claridad tu rostro, qué ternura
de luz ensimismada,
qué dibujo de miel sobre hojas de agua!



Amo tus ojos, amo, amo tus ojos.
Soy como el hijo de tus ojos,
como una gota de tus ojos soy.
Levántame. De entre tus pies levántame, recógeme,
del suelo, de la sombra que pisas,
del rincón de tu cuarto que nunca ves en sueños.
Levántame. Porque he caído de tus manos
y quiero vivir, vivir, vivir.



Jaime Sabines






DÓIS-ME




Dóis-me.
Mansamente, insuportavelmente, dóis-me.
Toma-me a cabeça, corta-me o pescoço.
Nada fique de mim depois deste amor.



Busca-me, por entre os escombros da alma,
escuta-me.
Em algum sítio a minha voz, sobrevivente, chama,
pede o teu assombro,
teu iluminado silêncio.



Atravessando muros, atmosferas, idades,
teu rosto (o teu rosto que parecia certo)
vem lá da morte, de antes do primeiro dia em que despertou para o mundo.



Que claridade o teu rosto,
que ternura de luz ensimesmada,
que debuxo de mel em papel de água!



Amo os teus olhos, amo, amo os teus olhos.
Sou como o filho dos teus olhos,
como uma gota dos teus olhos.
Levanta-me. Dos teus pés, levanta-me, apanha-me do chão, da sombra que pisas,
do canto do teu quarto que nunca vês em sonhos.
Levanta-me. Porque eu caí-te das mãos
e quero viver, viver, viver.



(Trad. A.M.)
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