29.6.13

Camilo Castelo Branco (Negociara a filha)





Negociara a filha com o Zeferino como tinha negociado com o Tarraxa a vaca amarela na feira dos 13.

Eis um caso esquisito de aldeia que pela torpeza parece acontecido numa cidade culta.

Conversou-se este diálogo debaixo de um castanheiro frondoso, com um pavilhão de folhagem gorjeado de pássaros, com uns tons de luz esverdeada, na doce placidez crepuscular de uma tarde de Agosto, entre dois homens de tamancos, arremangados, com os peitos cabeludos a negrejar de entre os peitilhos da camisa surrada de suor e poeira, brutos no gesto e na frase.



- CAMILO CASTELO BRANCO, A Brasileira de Prazins, I.

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Eugenio Montejo (Dura menos um homem)

 


Dura menos un hombre que una vela
pero la tierra prefiere su lumbre
para seguir el paso de los astros.
Dura menos que un árbol,
que una piedra,
se anochece ante el viento más leve,
con un soplo se apaga.
Dura menos un pájaro,
que un pez fuera del agua,
casi no tiene tiempo de nacer,
da unas vueltas al sol y se borra
entre las sombras de las horas
hasta que sus huesos en el polvo
se mezclan con el viento,
y sin embargo, cuando parte
siempre deja la tierra más clara.


Eugenio Montejo



Dura menos um homem que uma vela
mas a terra prefere seu lume
para seguir a passagem dos astros.
Dura menos que uma pedra,
uma árvore,
e se anoitece ante o vento mais leve
com um sopro se apaga.
Dura menos um pássaro
que um peixe fora de água,
mal tem tempo de nascer,
dá algumas voltas ao sol
e apaga-se na sombra das horas
até seus ossos no pó
com o vento se misturarem,
e quando parte, contudo,
deixa sempre a terra mais clara.

(Trad. A.M.)

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28.6.13

Miguel Torga (Panorama)





PANORAMA



Pátria vista da fraga onde nasci.
Que infinito silêncio circular!
De cada ponto cardeal assoma
A mesma expressão muda.
É de agora ou de sempre esta paisagem
Sem palavras
Sem gritos,
Sem o eco sequer de uma praga incontida?
Ah! Portugal calado!
Ah! povo amordaçado
Por não sei que mordaça consentida!


Miguel Torga


[Fel de cão]

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27.6.13

Enrique García-Máiquez (Daí a poesia)





POR ESO LA POESÍA



La novela lo malo es lo que exige:
requiere un adulterio, asesinatos,
viajes larguísimos, curiosas coincidencias,
y un sinfín de avatares.
Los cuentos son más cortos
pero tienden a hacer de sus protagonistas
insectos esquemáticos, clavarlos
con su alfiler a un corcho y colocarles
ingeniosas cartelas.
En cambio, la poesía lo da todo
sin pedir casi nada. Es increíble
lo poco que hace falta en un poema.
Que estemos juntos, por ejemplo,
en una tarde tonta, igual que tantas,
y que digas de pronto:
"Qué suerte estar contigo", y que yo piense:
"Oírtelo decir es un milagro".

Enrique García-Máiquez




O mau do romance é aquilo que exige,
um adultério, assassinatos,
longas viagens, coincidências estranhas
e um sem fim de avatares.
Os contos são mais curtos
mas tendem a fazer dos protagonistas
insectos esquemáticos, a espetá-los
com seu alfinete em curiosos cartões.
Em troca, a poesia dá-nos tudo
sem pedir quase nada. É incrível
o pouco que é preciso num poema.
Estarmos juntos, por exemplo,
numa tarde à toa, igual às outras,
e tu dizeres de repente:
“Que sorte estar aqui contigo”, e eu pensar:
“É um milagre ouvir-te dizer isso”.

(Trad. A.M.)


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26.6.13

Ver (139)







Sete Cidades
(S.Miguel)


Descobrir Portugal
(1)



Maravilhas de Portugal
(2-3)


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Jacob Iglesias (Nota)





NOTA



Olvidarme
de ese poema memorable que comenzaría
“Unos mentirosos de nacimiento buscando
ansiosamente verdades. Eso es lo que somos.”
Escribir algo
sobre esta tarde de domingo sin ambulancias,
ni rastro de aburrimiento,
ni la televisión de los vecinos de arriba
a todo volumen.
Sólo el zumbido tenue del frigorífico,
un libro y, por primera vez desde hace meses,
el sol palpando cada objeto
de la habitación, reconociéndolo
como las manos de un ciego.
Ha sonado el timbre.
Seguro que ya es ella.

Jacob Iglesias


[Sombras en el adarve]



Esquecer-me daquele
poema memorável que começaria assim:
“Mentirosos de nação em busca ansiosa
de verdades, eis o que somos”.
Escrever algo sobre
esta tarde de domingo sem ambulâncias,
nem traço de tédio,
nem sequer a TV dos vizinhos de cima
no som máximo.
Só o zumbido ténue do frigo,
um livro e, primeira vez há meses,
o sol palpando cada objecto
da casa, a reconhecê-lo
como as mãos de um cego.
Tocou a campainha,
é ela, de certeza.

(Trad. A.M.)



>>  Mistycalle (nota mínima) / Europa press (prémio)

.

25.6.13

João de Deus (Miséria)





MISÉRIA



Era já noite cerrada,
Diz o filho: "Oh minha mãe,
Debaixo daquela arcada
Passava-se a noite bem!"

A cega, que todo o dia
Tinha levado a andar,
A tais palavras do guia
Sentiu-se reanimar.

Mas saltam dois cães de gado,
Que eram como dois leões:
Tinha-os à porta o morgado
Para o guardar dos ladrões.

Tornam os pobres à estrada,
E aonde haviam de ir dar?
Ao palácio da tapada
Onde el-rei ia caçar.

À ceguinha meia morta
Torna o filho: "Oh minha mãe,
Ali no vão de uma porta
Passava-se a noite bem!"

- Se os cães deixarem... (diz ela,
A triste num riso amargo),
Com efeito a sentinela:
- "Quem vem lá?... Passe de largo!"

Então ceguinha e filhinho,
Vendo a sua esperança vã,
Deitaram-se no caminho
Até romper a manhã!...


João de Deus

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24.6.13

Eloy Sánchez Rosillo (Madrigal)





MADRIGAL



Has abierto mi libro y vas, despacio,
con atención, leyéndolo. Tus ojos
se detienen ahora ante esta página.
Empiezas a leer y te das cuenta
muy pronto de que en ella hablo de ti.
Para advertirlo, como yo esperaba,
no necesitas ver tu nombre impreso
en el papel, porque de sobra sabes
que a ti sola te canto. En ti, mi voz
tiene su origen y su cumplimiento,
su razón de existir: al celebrarte,
hallo dichosa ocupación y soy
fiel al destino que me justifica.

Eloy Sánchez Rosillo


[Noctambulario]




Abriste o meu livro e vais lendo,
devagar, com atenção. Os teus olhos
detêm-se agora nesta página.
Começas a ler e depressa te dás conta
que nela eu falo de ti.
Para o veres, como eu esperava,
não precisaste de ver o teu nome estampado
no papel, porque sabes de sobra
que és a única que canto. Em ti tem
minha voz sua origem e cumprimento,
sua razão de existir: celebrar-te,
eis minha ditosa ocupação, fiel
como sou ao destino que me justifica.

(Trad. A.M.)

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23.6.13

Rui Zink (Negócios com Deus)




Em miúdo, Paulo Gomes fazia negociatas com Deus.

Se o pai não lhe desse uma sova por não ir a horas para a mesa, prometia a Deus que lhe oferecia cinco tostões.

A proposta aumentava substancialmente (para vinte e cinco tostões), se estivesse em causa um pecado maior, tipo problemas na escola, notas ou o pai não descobrir que fumara uma beata do chão.

Todavia, se uma vez ou outra Deus cumpria a sua parte do contrato, já Paulo Gomes acabava invariavelmente por retirar a sua oferta, esquecendo-se de ir pagar o milagre.


- RUI ZINK, O suplente (2000), I,18.

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Eduardo Mitre (Prólogo ao presente)





PRÓLOGO AL PRESENTE



Abre los ojos. Despierta.
El Paraíso está aquí,
de vuelta.
Con todos y todo
en la luz pasajera.

Es (no hay otro) esta tierra:
mesa de encuentros,
cuna de ausencias.

El Paraíso está aquí,
a la espera. Abre tus ojos
que abren sus puertas.

Despierta. Está aquí.
No es la dicha.
Es la presencia.


Eduardo Mitre




Abre os olhos. Desperta.
O Paraíso está aqui,
de volta.
Com tudo e todos
na luz passageira.

É (não há outro) na terra:
mesa de encontros,
berço de ausências.

O Paraíso está aqui,
à espera. Abre os teus olhos
que lhe abrem as portas.

Desperta. Está aqui.
Não é a ventura,
é a presença.


(Trad. A.M.)

.

22.6.13

Jaime Salazar Sampaio (Insónia)

                                                        (Homenagem à fonte)



INSÓNIA



ficou da infância a febre
de correr parado
pelas estradas

podes chamar-lhe versos
são viagens

ficou na infância a fisga
de arremessar ao vento

podes chamar-lhe versos
são pedradas


Jaime Salazar Sampaio



[RMMV]

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21.6.13

Eduardo Llanos (Testamento do pater familias)





TESTAMENTO DEL PATER FAMILIAS



Yo, Anastasio Rencoret Iriarte, natural de aqueste reyno de Chile,
hijo lejítimo del mui mucho amor de entrambos mis santos padres,
estando enfermo en cama de la enfermedad que Dios nuestro Señor
se ha servido en darme,
i creyendo como firmemente creo en el Alto i Divino Misterio
de la Santísima Trinidad i Padre e hijo i Espíritu Santo,
tres personas distintas i un solo Dios verdadero,
i en todos los demás misterios i artículos de fe que tiene, cree y confiesa
nuestra Santa Madre Iglesia Católica Apostólica Romana,
bajo cuya fe i creencia he vivido i espero vivir i morir,
temiéndome ahora de la muerte, que es natural a toda humana criatura,
envío mi alma al cielo, de donde me fue dada,
i el cuerpo a la tierra, donde fue criado,
i vengo en testar mis bienes, modestísimos
comparados con el reyno de Dios, nuestro Amo i Señor.
A ti, primogénito mío, traspaso los yacimientos de oro i plata,
i encomiéndote brindar trabajo a los menesterosos mineros
i a la vez dar ocasión a sus mujeres i proles
para que así puedan cumplir el mandato divino
de ganar cada uno su pan con el sudor de la frente.
Mas cuida, hijo, no holgarte mui a menudo con las mozas,
ni menos con una sola, pues siempre se ceba quien se amanceba.
A ti, hija querida, légote las tres viñas del Sur,
no sea que te sorprenda sin dote la edad de merecer.
A ti, fiel i dócil esposa, dejo aquesta hacienda entera,
incluyendo animales, inquilinos i el polvo de mis huesos.
Por último, queden a mi contador i albacea todos mis pañuelos i polainas
i esa Biblia empastada en que cada noche yo nutría mi fervor
i cuya lectura le enseñará a no codiciar bienes ajenos
i sí a juntar tesoros en el cielo, de donde le será dado por añadidura lo demás.
Os encarezco observancia estricta a las reglas que siempre prediqué i practiqué,
para así allegar más honor a nuestra estirpe i a nuestro Padre Común,
a cuya diestra os esperaré, enternecido i anhelante.

Eduardo Llanos



Eu, Anastasio Rencoret Iriarte, natural deste reino do Chile,
filho legítimo do mui muito amor de meus santos pais,
estando enfermo no leito da enfermidade que Deus Nosso Senhor
foi servido outorgar-me,
e crendo como creio firmemente no Alto e Divino Mistério
da Santíssima Trindade, Pai-Filho-Espírito Santo,
três pessoas distintas e um só Deus verdadeiro,
e em todos os mais mistérios da nossa Santa Mãe Igreja Católica, Apostólica, Romana,
em cuja fé e crença vivi, assim como espero viver e morrer,
temendo a hora da morte, natural em toda a humana criatura,
encomendo minha alma ao céu, que ma deu,
e à terra o corpo, que nela se criou,
vindo assim testar meus bens,
bem modestos se comparados aos do Reino de Deus, Nosso Amo e Senhor.
A ti, primogénito, lego as jazidas de oiro e prata,
com encargo de dar trabalho aos operosos mineiros, a bem das famílias,
para cumprirem o divino mandamento de ganhar o pão com o suor do rosto.
Mas cuida, meu filho, de não folgar das moças em demasia,
nem mesmo uma só, pois sempre se ceba quem se amanceba.
A ti, filha querida, deixo-te as três vinha do Sul,
não vá apanhar-te sem dote a idade de merecer.
A ti, esposa fiel e dócil, lego esta mesma fazenda inteira,
incluindo semoventes, inquilinos e bem assim o pó dos meus ossos.
Por último, todos os meus lenços e polainas
ficam para o testamenteiro e cabeça-de-casal,
assim como a Bíblia encadernada em que eu cevava o meu fervor,
a qual lhe ensinará a não cobiçar o alheio e a juntar tesouros no céu,
donde lhe virá por acrescento tudo o mais.
Recomendo-vos a estrita observância das regras
que eu mesmo sempre prediquei e pus em prática,
para assim acrescentar mais honra a nossa estirpe e a nosso Pai Comum,
à mão direita do qual vos esperarei, enternecido e anelante.

(Trad. A.M.)

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20.6.13

Ver (138)





Doiro (2) x Tejo (1)


[Regressar às origens]

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Manuel Moya / Violeta (In memoriam M.R.)





IN MEMORIAM M. R.



¿Joderte? ¿Para qué? Eres ya un muerto,
una piltrafa y tú lo sabes. ¿Si quiero más?
No, no quiero más, estoy cascada.
Hablabas de la muerte
de los dos, pero cariño, yo estoy viva,
podrida pero viva,
el muerto lo eres tú
y así le sirvas de papeo
a sus caniches.

Sólo quisiera que la vida
fuese tan justa con vosotros
como justos habéis sido conmigo,
pero no, el rencor mío
no es tan grande ni tan ciego:
me conformo, pues, con la mitad,
con la mitad, ¡mirad qué poco!


Violeta C. Rangel




Foder-te? Para quê? Estás morto já,
um caco, e sabes disso. Se quero mais?
Não, não quero mais, estou partida.
Falavas da morte
de nós dois, mas querido, eu estou viva,
podre mas viva,
o morto és tu
e assim sirvas de comida
aos cães.

Só queria que a vida
fosse tão justa convosco
como vós tendes sido comigo,
mas não, não é o rancor meu
tão grande nem tão cego:
conformo-me, pois, com metade,
com metade, vêde que pouco.


(Trad. A.M.)

.

19.6.13

Inês Dias (Requiem por um pássaro)





REQUIEM POR UM PÁSSARO E UM AUTOCARRO PERDIDO



Mais um dia
em forma de pássaro morto.
Uma amálgama ainda quente
da manhã que nasce, espécie de beleza
desmanchada a que nem o nosso olhar
consegue servir de pietà. O vento
teima em agitar uma ou outra pena,
mas não há golpe de asa que o arranque
agora ao asfalto negro.


Partilhamos, no fundo, a impotência:
o destino que o esmagou
é o mesmo que esperamos para
embarcar sem surpresas, sem direito a atrasos.
A essa indiferença cansada prefiro
a do outro pássaro que, lá muito em cima,
hoje ainda mais, refaz a traços negros
a vida. É por esses instantes
de voo que aceito continuar a perder.


Inês Dias


[Luz & sombra]


.



18.6.13

Victor Botas (Horacio, I, XI)





HORACIO I, XI (GLOSA)



No es solución, amigo Horacio, eso
(tan sobadito ya) del carpe diem,
y después que te quiten
lo bailao. Créeme, no es una
solución.
A no ser, por supuesto, que se trate
tan sólo de olvidarse de ese ciego
futuro que ahí está,
esperando a la vuelta de la esquina.


Víctor Botas



Não é solução, Horácio amigo, essa
(tão batida) do carpe diem,
e depois que te tirem
o bailado. Acredita-me,
não é a solução.
A menos, claro, que se trate
de esquecer apenas o futuro
cego que está aí, à espera,
ao virar da esquina.


(Trad. A.M.)

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17.6.13

Camilo Castelo Branco (D. Andresa)





D. Andresa era senhora ajuizada, muito séria, educada no convento de Vairão; tinha missa em casa, e escrevia cartas a diversas freiras, pondo sempre no alto do papel: Jesus, Maria, José.

Andava nos trinta e cinco anos, muito linfática e um grande horror aos vícios da carne.

O mano Adolfo conhecia-lhe a índole.

Não podia esperar dela aplauso, nem sequer condescendência, e muito menos auxílio à sua afeição a mulher casada.

Andresa concordava com o irmão na formosura de Honorata; mas observava com um risinho malicioso que o não chamara para saber se a sua amiga era bonita ou feia; mas sim para aconselhá-la e dirigi-la na separação do marido por justiça.


- CAMILO CASTELO BRANCO, A Brasileira de Prazins, IV.

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Manuel Moya (Canção do Tejo)





CANCIÓN DEL TAJO



Me quiero navegable como el Tajo
y que un hato de lucios o de tencas
salten por mi vientre.
En invierno quiero dar calor a una comarca
y en verano arrancar el escalofrío de un niño.
Me quiero navegable
y que los barcos crujan en mis huesos
y bailen las muchachas
al compás de una orquesta,
que los viejos pesquen en mi orilla
y no falte al arenero su jornal, su vaso de alma.
Me quiero navegable y ser por un momento
reflejo de esos pájaros
que cruzan volando el continente,
nubes a quienes nada importa
quedarse en el camino
o deshacerse como uva en el lagar del cielo.
Me quiero navegable y estar pasando a veces
y cantar a mi modo
canciones muy sencillas y tristes.

Manuel Moya



Navegável me quero como o Tejo
e que um monte de lúcios ou tencas
me saltem por cima do ventre.
No Inverno quero dar calor ao concelho
e arrancar no Verão o calafrio de alguém.
Navegável me quero
e que os barcos me ranjam nos ossos
e bailem cachopas ao compasso da orquestra,
que os velhos pesquem na margem
e ao areeiro não falte o jornal nem o copo.
Navegável me quero, ser por instantes
reflexo dos pássaros que voam cruzando o céu,
nuvens a quem nada importa
ficar pelo caminho
ou desfazer-se quais uvas no lagar do céu.
Navegável me quero, passar por passar
e cantar a meu modo
cantigas muito simples e tristes.

(Trad. A.M.)



>>  La isla de la sed (blogue) / Facebook / Poetas Andaluces (6p) / Nodo50 (4p) / Ficus (sinopse/linques) / Wikipedia
Heterónimos: Umar Abass / Violeta C. Rangel

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16.6.13

Gonçalo M. Tavares (O sol)





O SOL



Na infância o sol era um companheiro mais alto,
que aparecera primeiro no campo de futebol, e aí, parado,
guardava as costas da baliza e a erva que se tornava quente.
Como se o sol fosse de facto um instrumento de cozinha,
aperfeiçoado, antigo, mas instrumento, matéria
que os meninos agarravam com os dedos e cuja
intensidade podiam por vontade própria regular.
Por exemplo: quando a luz era excessiva
os dedos protegiam os olhos. Outras vezes
o corpo parecia a conclusão
natural, instintiva, do calor que vinha de cima:
Recebíamos o sol como o ponto final recebe
uma frase. Fazia mais sol quando eu tinha seis anos
(quem o fazia?) ou com o tempo e o tédio
me fui distraindo?

Gonçalo M. Tavares


[Minerva]


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15.6.13

Mirta Rosenberg (Elegia)





UNA ELEGÍA



En la época de mi madre
las mujeres eran probables.
Mi madre se sentaba junto a mi abuela
y las dos eran completamente de carne y hueso.

Yo soy apenas una secuela estable
de aquel exceso de realidad.

Y en la ansiedad del pasado indefinido,
en el aspecto durativo de elegir,
escribo ahora: una elegía.

En la época de mi madre
las mujeres eran perdurables,
completamente hueso y carne.
Mi madre se ponía el collar
de plata y de turquesas
que mi padre le había traído de Suecia
y se sentaba a la mesa como una especia exótica,
para que todo se volviera más grande que la vida,
y cualquier ficción fuera posible.

En la época de mi madre, las mujeres
eran un quid: mi madre nos contó
a mi hermano y a mí: ‘cuando salía de la escuela,
iba a buscar a mi padre al trabajo,
en Santa Fe, y los compañeros le decían es un biscuit,
tu hija es un biscuit, y nunca supe qué querían decir,
qué era un biscuit’, un bizcocho estando muy enferma,
una porcelana exquisita todavía para nosotros,
y mi hermano apurándola: ‘¿Y?’

No sé qué es un biscuit, ¿una especia exótica,
algo de todos modos, especial? Igual
andaba delicadamente por la casa, rozando los ochenta
como se roza una herida
con una gasa.

En la época de mi madre
las mujeres eran muy visibles.
Mi madre se miraba en los espejos
y yo no llegaba a abarcar
su imagen con mis ojos. Me excedía,
la intuía a lo lejos como algo que se añora.

Como ahora,
una elegía.

A la criatura adorable
fijada en lo remoto de la foto,
que ya a los ocho años parecía
más grande que la vida: te extraño,
aunque no te conocía. Eso fue antes
que a mí me dieras vida
en un tamaño apenas natural.

Igual,
una elegía.

Y a la otra de la foto que espero
conservar, la mujer bella que sostiene
el libro ante la hija de un año
en el engaño de la lectura:
te quiero por lo que dura, y es suficiente
leer en el presente, aunque se haya apagado
tu estrella.

Por ella,
una elegía.

Ahora soy la fotografía
y vos el líquido revelador. Tu muerte
me convierte en yo: como una ciencia aplicada
soy la causa y el efecto,
el ensayo y el error, este vacío
de la nada que golpea el corazón
como cáscara vacía.

Una elegía,
cada vez con más razón.


Mirta Rosenberg



No tempo da minha mãe
as mulheres eram prováveis.
Minha mãe sentava-se junto da minha avó
e as duas eram totalmente de carne e osso.

Eu sou apenas uma sequela estável
desse excesso de realidade.

E na ansiedade do indefinido passado,
no aspecto duradouro de eleger,
escrevo agora: uma elegia.

No tempo da minha mãe
as mulheres eram perduráveis,
totalmente osso e carne.
Minha mãe punha o colar
de prata e turquesas
que meu pai lhe trouxera da Suécia
e sentava-se à mesa como uma espécie exótica,
para que tudo se tornasse maior do que a vida
e se fizesse possível qualquer ficção.

No tempo da minha mãe, as mulheres
eram um quid: minha mãe contou-nos
a meu irmão e a mim: “quando saía da escola,
ia buscar meu pai ao emprego,
em Santa Fe, e os colegas diziam-lhe é um biscuit,
a tua filha é um biscuit, e nunca soube o que queriam dizer,
que era um biscuit”, um biscoito estando doente,
uma porcelana distinta ainda para nós,
e meu irmão sondando-a: “E depois”?

Não sei o que é um biscuit, uma espécie exótica,
algo assim de todo o modo, especial? Andava à mesma
levemente por casa, já a roçar os oitenta
como se roça uma ferida
com gaze.

No tempo da minha mãe
as mulheres eram muito visíveis.
Minha mãe a mirar-se no espelho
e eu não lhe abarcava a imagem
com os olhos. Excedia-me,
intuía-a de longe como algo saudoso.

Como agora,
uma elegia.

À criatura adorável
imobilizada na foto remota,
que já parecia com oito anos
maior do que a vida: sinto-te a falta,
não te conhecia bem. Isso antes
de me dares vida a mim
quase em tamanho natural.

Também,
uma elegia.

E à outra da foto que espero
conservar, a mulher bela segurando
o livro para a filha de um ano
na ilusão da leitura:
amo-te pelo que dura, e basta
ler no presente, embora a tua estrela
se tenha apagado.

Por ela,
uma elegia.

Agora eu sou a fotografia
e tu o líquido revelador. Tua morte
converte-me em eu: como ciência aplicada
sou a causa e o efeito,
o ensaio e o erro, este vazio
do nada que agride o coração
como casca vazia.

Uma elegia,
cada vez com mais razão.


(Trad. A.M.)


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