30.4.11

Aldo Luis Novelli (Culpados)






CULPADOS




O mundo está destruído
e eu descobri os culpados.

Os culpados são vocês
sim vocês
poetas
ou pior ainda, leitores de poesia
não me olhem com esses olhos de raiva
já há demasiada raiva no mundo
sejam por um momento compreensivos
ponham de lado essa excelsa vaidade de artistas.

Vocês escreveram tantas palavras de amor
criaram tantos verdes campos inundados de flores
extasiados de sóis inumeráveis
que o mundo tornou-se cinzento
fumegante de morte e metralha
descomposto de poder e ambição.

Vamos poetas,
confessemos a nossa parte

enquanto eles
com esmero e sem parar
construíam a maquinaria infernal
para destruir o mundo.


Aldo Luis Novelli



(Trad. A.M.)

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29.4.11

Fernando Pessoa / A. Campos (Aniversário)






ANIVERSÁRIO




No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amaram-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!


O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!


Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...


Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando for.
Mais nada.


Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


Álvaro de Campos

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28.4.11

Ana Montojo Micó (Presente)






REGALO




Te lo regalo todo.
La mañana sin horas
y la gota de escarcha que persigo
por el cristal helado.

El gorrión insolente que se empeña
en volver a inventar la primavera
cuando febrero engaña a los almendros.

Te regalo este día
que se abre a mis sentidos
aunque sé que hoy tampoco
lograré seducirle.

Te regalo la noche interminable
y el alba sin tu cuerpo
declarándose en huelga a mi costado.

La música que habita mi silencio,
los fantasmas que pueblan mis rincones,
la edad que me recorre todo el cuerpo,
la que soy, la que fui, la que no seré nunca.

No se me ocurre nada mejor con qué comprarte.
Nada más codiciable que el otoño
que no me hiela aún la piel del alma.


Ana Montojo Micó



[El humo ciega mis ojos]





Ofereço-te tudo.
A manhã sem horas
e a gota de orvalho que persigo
no vidro gelado.

O pardal insolente que pretende
inventar a primavera
quando fevereiro engana a amendoeira.

Ofereço-te o dia
que se abre a meus sentidos
embora sabendo que hoje tão pouco
lograrei seduzi-lo.

Ofereço-te a noite interminável
e a aurora sem teu corpo
declarando-se em greve nas minhas costas.

A música que habita meu silêncio,
os fantasmas que povoam meus cantos,
a idade que me percorre o corpo todo,
a que sou, a que fui, a que não serei nunca.

Não me ocorre nada melhor com que comprar-te.
Nada mais de cobiçar do que o outono
que não me gela ainda a pele da alma.



(Trad. A.M.)


>>  Poetas s.XXI (23p)  /  El humo ciega mis ojos (blogue)


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27.4.11

Eugénio de Andrade (Mulheres de preto)





MULHERES DE PRETO



Há muito que são velhas, vestidas
de preto até à alma.
Contra o muro
defendem-se do sol de pedra;
ao lume
furtam-se ao frio do mundo.
Ainda têm nome? Ninguém
pergunta, ninguém responde.
A língua, pedra também.


Eugénio de Andrade



[Poemblog]

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26.4.11

Armando Silva Carvalho (Eis o teatro da casa)






(1)

Eis o Teatro da Casa.
Choro diante da topografia dos sentidos,
o coração da Mãe cresce na cabeça.
As cenas mais cruéis quase flutuam,
não tenho posição,
não posso preservar mais tempo
as águas do instinto.
Destroem-me o umbigo as vozes invocadas
em torno da rosácea, matriz,
metamorfose.
Este palco, este corpo.
Se corro para o mundo afogam-me as palavras.
Ajoelho a alma até sentir na boca
os teus lábios em sangue,
esse surdo rumor cuja fome
não cabe nos recitativos.
Ó tu, mãe teatral, simulacro do berço
em que pariste este inferno de folhas já traídas,
minha coroa de glória, mãos que mexem no sexo,
em que parte da casa habitas estas noites?
Cada sentido meu – disseste – será
um dos teus filhos.
Choram na minha boca as mínimas crianças
que puseste no mundo.
Mãe infeliz que caminhas nas lágrimas
e vestes devagar o medo e o sepulcro.
Ao olhar o meu corpo crescem-me os teus seios,
os meus ouvidos são o som da tua voz
e a minha língua treme nos teus dentes cerrados.
Posso mudar de sexo em cada instante
porque gritas sem dó e sem idade
dentro dos meus sonhos.
Hoje posso louvar-te, amar-te
ou devorar-te:
a memória é um espelho
que a morte arrasta atrás de si
pela garganta.


Armando Silva Carvalho

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25.4.11

Gonzalo Rojas (Matéria de testamento)






MATERIA DE TESTAMENTO




A mi padre, como corresponde, de Coquimbo a Lebu, todo el mar,
a mi madre la rotación de la Tierra,
al asma de Abraham Pizarro aunque no se me entienda un tren de humo,
a don Héctor el apellido May que le robaron,
a Débora su mujer el tercero día de las rosas,
a mis 5 hermanas la resurrección de las estrellas,
a Vallejo que no llega, la mesa puesta con un solo servicio,
a mi hermano Jacinto, el mejor de los conciertos,
al Torreón del Renegado donde no estoy nunca, Dios,
a mi infancia, ese potro colorado,
a la adolescencia, el abismo,
a Juan Rojas, un pez pescado en el remolino con su paciencia de santo,
a las mariposas los alerzales del sur,
a Hilda, l'amour fou, y ella está ahí durmiendo,
a Rodrigo Tomás mi primogénito el número áureo del coraje y el alumbramiento,
a Concepción un espejo roto,
a Gonzalo hijo el salto alto de la Poesía por encima de mi cabeza,
a Catalina y Valentina las bodas con hermosura y espero que me inviten,
a Valparaíso esa lágrima,
a mi Alonso de 12 años el nuevo automóvil siglo XXI listo para el vuelo,
a Santiago de Chile con sus 5 millones la mitología que le falta,
al año 73 la mierda,
al que calla y por lo visto otorga el Premio Nacional,
al exilio un par de zapatos sucios y un traje baleado,
a la nieve manchada con nuestra sangre otro Nüremberg,
a los desaparecidos la grandeza de haber sido hombres en el suplicio y haber muerto cantando,
al Lago Choshuenco la copa púrpura de sus aguas,
a las 300 a la vez, el riesgo,
a las adivinas, su esbeltez
a la calle 42 de New York City el paraíso,
a Wall Street un dólar cincuenta,
a la torrencialidad de estos días, nada,
a los vecinos con ese perro que no me deja dormir, ninguna cosa,
a los 200 mineros de El Orito a quienes enseñé a leer en el silabario de Heráclito, el encantamiento,
a Apollinaire la llave del infinito que le dejó Huidobro,
al surrealismo, él mismo,
a Buñuel el papel de rey que se sabía de memoria,
a la enumeración caótica el hastío,
a la Muerte un crucifijo grande de latón.


Gonzalo Rojas




A meu pai, como compete, o mar todo, de Coquimbo a Lebu,
a minha mãe a rotação da Terra,
à asma de Abraham Pizarro embora não me entendam um estojo de fumo,
a D. Héctor o apelido May que lhe roubaram,
a Débora sua mulher o terceiro dia das rosas,
a minhas 5 manas a ressureição das estrelas,
a Vallejo que não chega, a mesa posta com um serviço só,
a meu irmão Jacinto, o melhor dos concertos,
ao Torreão do Renegado onde nunca estou, Deus,
à minha infância, aquele potro encarnado,
à adolescência, o abismo,
a Juan Rojas, um peixe pescado no remoinho com sua paciência de santo,
às borboletas os pinhais do sul,
a Hilda, l’amour fou, e ela está ali a dormir,
a Rodrigo Tomás meu primogénito o número áureo da coragem e descoberta,
a Concepción um espelho partido,
a Gonzalo filho o salto elevado da Poesia por cima da minha cabeça,
a Catalina e Valentina as bodas com beleza e espero que me convidem,
a Valparaíso essa lágrima,
a meu Afonso de 12 anos o novo automóvel séc.XXI preparado para voar,
a Santiago do Chile com seus 5 milhões a mitologia que lhe falta,
ao ano 1973 a merda,
ao que cala, e pelos vistos outorga, o Prémio Nacional,
ao exílio um par de sapatos sujos e um fato baleado,
à neve manchada com nosso sangue outro Nuremberg,
aos desaparecidos a grandeza de terem sido homens no suplício e de morrerem cantando,
ao Lago Choshuenco a taça púrpura das suas águas,
às 300 à uma, o risco,
às adivinhas, seu donaire,
à rua 42 de New York City o paraíso,
a Waal Street um dólar e cinquenta,
à torrente destes dias, nada,
aos vizinhos daquele cão que não me deixa dormir, coisa nenhuma,
aos 200 mineiros de El Orito que ensinei a ler pela cartilha de Heráclito, o encantamento,
a Apollinaire a chave do infinito que Huidobro lhe deixou,
ao surrealismo, o mesmo,
a Buñuel o papel de rei que ele sabia de cor,
à enumeração caótica o tédio,
à Morte um crucifixo grande de latão.

(Trad. A.M.)[*]



>>  Letras (tudo+algo)  /  U.Chile (tudo+anto)  / Cervantes
(bib.autor)  /  A media voz (56p)  /  Vivir poesia (35p) / Cervantes-II ( bio+biblio+sobre+anto-30p)


[*] Outra versão: Modo de usar (Fabiano Calixto).
Óbito, G.R., hoje...

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Angel Crespo (Ignorância de outono)







IGNORANCIA DE OTOÑO




Para ignorar, hay que vivir.
Las manos ya se niegan
al testimonio de los días
y las noches paradas.

Maduras
pero todavía no asoman,
amargos, los gajos abiertos
que oculta tu temor.
Aún no ignoras bastante.
Temes el vuelo de ese pájaro
obstinado.
¿Transcurren, pues, las estaciones
o eres tú, tan absorto, el tiempo?
Sabes ya que la lluvia
no importa, que nada vale el plazo
de la espera.
Lo sabes
e ignorar es el alimento
del hombre -el de esta brisa
que no se sabe aire.


Ángel Crespo





Para ignorar, há que viver.
As mãos negam-se já
ao testemunho dos dias
e das noites paradas.

Maduras
mas não mostram ainda,
amargos, os galhos abertos
que o teu temor oculta.
Não ignoras ainda bastante.
Temes o voo desse pássaro
obstinado.
Transcorrem, pois, as estações
ou és tu o tempo, tão absorto?

Sabes já que a chuva
não importa, que nada vale o prazo
da espera.
Sabe-lo
e ignorar é o alimento
do homem – o desta brisa
que não se sabe ar.


(Trad. A.M.)


>>  A media voz (23p)  /  Wikipedia

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24.4.11

Sophia de Mello Breyner Andresen (Porque)







PORQUE




Porque os outros se mascaram mas tu não
Porque os outros usam a virtude
Para comprar o que não tem perdão
Porque os outros têm medo mas tu não.


Porque os outros são os túmulos caiados
Onde germina calada a podridão.
Porque os outros se calam mas tu não.


Porque os outros se compram e se vendem
E os seus gestos dão sempre dividendo.
Porque os outros são hábeis mas tu não.


Porque os outros vão à sombra dos abrigos
E tu vais de mãos dadas com os perigos.
Porque os outros calculam mas tu não.



SOPHIA DE MELLO BREYNER ANDRESEN
Mar Novo
(1958)

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23.4.11

Paulo Leminski (Eu queria tanto)






eu queria tanto
ser um poeta maldito
a massa sofrendo
enquanto eu profundo medito


eu queria tanto
ser um poeta social
rosto queimado
pelo hálito das multidões


em vez
olha eu aqui
pondo sal
nesta sopa rala
que mal vai dar para dois



Paulo Leminski

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22.4.11

Julio Cortázar (Falem, três minutos)





HABLEN, TIENEN TRES MINUTOS




De vuelta del paseo
donde junté una florecita para tenerte
entre mis dedos un momento,
y bebí una botella de Beaujolais, para bajar al pozo
donde bailaba un oso luna,
en la penumbra dorada de la lámpara
cuelgo mi piel y sé que estaré solo en la ciudad
más poblada del mundo.


Excusarás este balance histérico,
entre fuga a la rata y queja de morfina,
teniendo en cuenta que hace frío,
llueve sobre mi taza de café,
y en cada medialuna
la humedad alisa sus patitas de esponja.


Máxime sabiendo
que pienso en ti obstinadamente,
como una ciega máquina, como la cifra que repite
interminablemente el gongo de la fiebre,
o el loco que cobija su paloma en la mano,
acariciándola hora a hora
hasta mezclar los dedos y las plumas
en una sola miga de ternura.


Creo que sospecharás esto que ocurre,
como yo te presiento a la distancia en tu ciudad,
volviendo del paseo donde quizá juntases
la misma florecita, un poco por botánica,
un poco porque aquí,
porque es preciso
que no estemos tan solos,
que nos demos un pétalo,
aunque sea un pasito, una pelusa.


Julio Cortázar



[Poli del Amor]





De volta do passeio
em que apanhei uma florzinha para ter-te
um momento nos meus dedos
e bebi uma garrafa de Beaujolais, para descer ao poço
onde bailava um urso lua,
penduro a pele na penumbra dourada da lâmpada
e sei que estarei só na cidade
mais populosa do mundo.


Desculparás este balanço histérico,
entre fuga ao rato e queixa de morfina,
tendo em conta que faz frio,
chove-me na chávena de café
e em cada meia lua
a humidade alisa suas patas de esponja.


Maxime sabendo
que penso em ti obstinadamente,
como uma máquina cega, como o número
que o gongo da febre repete interminavelmente,
ou o louco que cobiça sua pomba na mão,
acariciando-a hora a hora
até misturar os dedos e as penas
numa só miga de ternura.


Suspeitarás, decerto, isto que acontece,
tal como eu te pressinto à distância na tua cidade,
voltando do passeio onde talvez colhesses
a mesma florzinha, seja por botânica,
seja porque aqui,
porque é preciso
que não estejamos tão sós,
que nos ofereçamos uma pétala,
mesmo sendo um passinho, uma bola de cotão.



(Trad. A.M.)


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20.4.11

Charles Bukowski (Um modelo)





A MODEL



I want to be like that
man who entered the
restaurant
tonight.
he parked right in
front
of the front
door,
blocking off a good many
parked cars,
then slammed his car
door shut,
walked in,
his shirt hanging out
over his big
gut.
when he saw the
maitre d', he
said, "hey, Frank,
get me a fucking
table by the
window!"
and Frank smiled and followed
him
along.



I want to be like
that man.
this way's not
working.

for over 70 years
now.


CHARLES BUKOWSKI
Bone Palace Ballet
(1997)




Eu quero ser como esse
homem que entrou hoje
no restaurante.
estacionou mesmo em
frente
da porta,
bloqueando a saída de imensos
carros estacionados,
depois atirou a porta do carro
com estrondo,
e entrou,
com a camisa a pender-lhe
sobre a enorme
barriga.
quando viu o maitre,
disse para ele “ei, Frank, dá-me
uma porra duma mesa ao pé
da janela”!
e Frank a sorrir lá foi
acompanhá-lo.



Eu quero ser como
esse homem.
o meu jeito não está
a resultar.

há mais de 70 anos
já.


(Trad. A.M.)


>>  Bukowski (tudo+algo)  /  C.Bukowski (idem)  /  Bukowski (idem/cast.)  /  Wikipedia  /  O amor é um cão do inferno (antologia port. / manuel a. domingos)

.

19.4.11

Gabriel Zaíd (A oferenda)






LA OFRENDA




Mi amada es una tierra agradecida.
Jamás se pierde lo que en ella se siembra.
Toda fe puesta en ella fructifica.
Aun la menor palabra en ella da su fruto.
Todo en ella se cumple, todo llega al verano.
Cargada está de dádivas, pródiga y en sazón.
En sus labios la gracia se siente agradecida.
En sus ojos, su pecho, sus actos, su silencio.
Le he dado lo que es suyo, por eso me lo entrega.
Es el altar, la diosa y el cuerpo de la ofrenda.


Gabriel Zaíd


[Noctambulario]






Minha amada é uma terra agradecida.
Jamais se perde quanto nela se semeia.
Toda a fé nela posta frutifica.
Até a menor palavra nela dá seu fruto.
Tudo nela se cumpre, tudo atinge o verão.
Carregada é de dons, pródiga e em sazão.
A graça em seus lábios se sente agradecida.
Nos seus olhos, seu peito, seus actos, seu silêncio.
Dei-lhe o que é dela, por isso mo entrega.
Eis o altar, a deusa e o corpo da oferenda.



(Trad. A.M.)

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18.4.11

Rui Knopfli (Programa)






PROGRAMA





Não faço o que quero
faço o que posso.
E o que posso passa
pelo passo da dificuldade.

Palavras tenho poucas,
duras, despidas estacas,
complicando a minha escolha.

Ermas e perfiladas
ergo-as ao sol na vertical
e são monótonas e dão sombra.

Com elas levanto quatro nuas
paredes, um tecto em forma
de prece. Dificilmente
construo uma casa fácil

Fácil é fazer difícil,
difícil fazer o fácil.


Rui Knopfli


[Luz & sombra]


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Mario Quintana (Os degraus)





OS DEGRAUS



Não desças os degraus do sonho
Para não despertar os monstros.
Não subas aos sótãos - onde
Os deuses, por trás das suas máscaras,
Ocultam o próprio enigma.
Não desças, não subas, fica.
O mistério está é na tua vida!
E é um sonho louco este nosso mundo...


Mario Quintana

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17.4.11

Luis González Ansorena (Nossos versos)






Nuestros versos
caen sobre el mundo,
como lluvia.

Casi todos
se resguardan de los versos,
bajo paraguas de indiferencia.

Pero algunos,
miran al cielo
y los versos,
les caen en los ojos.

Les reconoceréis por la calle,
por que llevan
los ojos incendiados.


Luis González Ansorena


[Apologia de la luz]






Caem sobre o mundo,
nossos versos,
como chuva.

Quase todos
se abrigam dos versos,
sob chapéus de indiferença.

Mas alguns
olham para o céu,
e os versos
caem-lhes nos olhos.

Conhecei-los rua fora,
por eles terem
os olhos incendiados.


(Trad. A.M.)

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15.4.11

José Luís Peixoto (A mulher mais bonita do mundo)






A MULHER MAIS BONITA DO MUNDO




estás tão bonita hoje. quando digo que nasceram
flores novas na terra do jardim, quero dizer
que estás bonita.

entro na casa, entro no quarto, abro o armário,
abro uma gaveta, abro uma caixa onde está o teu fio
de ouro.

entre os dedos, seguro o teu fino fio de ouro, como
se tocasse a pele do teu pescoço.

há o céu, a casa, o quarto, e tu estás dentro de mim.

estás tão bonita hoje.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

estás dentro de algo que está dentro de todas as
coisas, a minha voz nomeia-te para descrever
a beleza.

os teus cabelos, a testa, os olhos, o nariz, os lábios.

de encontro ao silêncio, dentro do mundo,
estás tão bonita é aquilo que quero dizer.



JOSÉ LUÍS PEIXOTO
A Casa, a Escuridão
(2002)



[Troca de olhares]

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Delmira Agustini (Exegese)





EXÉGESIS




¡Pobres lágrimas mías las que glisan
a la esponja sombría del Misterio,
sin que abra en flor como una copa cárdena
tu dolorosa boca de sediento!


¡Pobre mi corazón que se desangra
como clepsidra trágica en silencio,
sin el milagro de inefables bálsamos
en las vendas tremantes de tus dedos!


¡Pobre mi alma tuya, acurrucada
en el pórtico en ruinas del recuerdo,
esperando de espaldas a la Vida
que acaso un día retroceda el Tiempo...!



Delmira Agustini








Pobres lágrimas minhas entrando
na esponja sombria do Mistério,
sem tua boca dorida de sedento
abrir em flor como copa de árvore!


Pobre meu coração sangrando
como clepsidra trágica em silêncio,
sem o milagre de bálsamos inefáveis
na venda tremente de teus dedos!


Pobre minha alma tua, arrodilhada
no pórtico em ruínas da memória,
de costas para a Vida, esperando
que um dia talvez o Tempo volte atrás!...




(Trad. A.M.)

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14.4.11

Coitado do Jorge (71)





A ÁGUA DA VIZINHA





A vizinha odeia-me (cá por coisas...).
Na semana passada resolveu espingardar, por sms:


- Seu mau, peste. Fechou-me a água, no contador...


- (?)
  Enloucou... Fechei o quê, a água?
  Eu devia fechar-lhe era o vinho!

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Manuel António Pina (Carta a Mário Cesariny)






CARTA A MÁRIO CESARINY NO DIA DA SUA MORTE





Hoje soube-se uma coisa extraordinária,
que morreste. Talvez já to tenham dito,
embora o caso verdadeiramente não
te diga respeito, e seja assunto nossos (sic), vivo.


Algo, de facto, deve ter acontecido
porque nada acontece, a não ser o costume,
amor e estrume; quanto ao resto
tudo prossegue de acordo com o Plano.


Há apenas agora um buraco aqui,
não sei onde, uma espécie de
falta de alguma coisa insolente e amável,
de qualquer modo, aliás, altamente improvável.


Depois, de gato para baixo, mortos
(lembrei-me disto de repente
agora que voltaste malevolamente a ti)
estamos todos. A gente vê-se um dia destes por Aí.



Manuel António Pina

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13.4.11

Vicente Gallego (Projectos de futuro)






PROYECTOS DE FUTURO




Esta tarde soy rico porque tengo
todo un cielo de plata para mí,
soy el dueño también de esta emoción
que es nostalgia a la vez de los días pasados
y una dulce alegría por haberlos vivido.
Cuanto ya me dejó me pertenece
transformado en tristeza, y lo que al fin intuyo
que no habré de alcanzar se ha convertido
en un grato caudal de conformismo.
Mi patrimonio aumenta a cada instante
con lo que voy perdiendo, porque el que vive pierde,
y perder significa haber tenido.
Ya no tengo ambiciones, pero tengo
un proyecto ambicioso como nunca lo tuve:
aprender a vivir sin ambición,
en paz al fin conmigo y con el mundo.


Vicente Gallego






Esta tarde sou rico porque tenho
um céu todo de prata para mim,
sou o dono também desta emoção
que é saudade igualmente do passado
e uma doce alegria por tê-lo vivido.
Tudo quanto me deixou me pertence
transformado em tristeza, e o que afinal intuo
que não hei-de alcançar converteu-se
num grato caudal de conformismo.
Meu património aumenta a cada instante
com aquilo que vou perdendo, porque quem vive perde,
e perder significa ter tido.
Não tenho já ambições, mas tenho
um projecto ambicioso como nunca tive:
aprender a viver sem ambição,
em paz por fim comigo e com o mundo.


(Trad. A.M.)

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Um verso (94)





Um verso de José Emilio Pacheco:










José Emilio Pacheco

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12.4.11

Manoel de Barros (O poeta)





O POETA




Vão dizer que não existo propriamente dito.
Que sou um ente de sílabas.
Vão dizer que eu tenho vocação pra ninguém.
Meu pai costumava me alertar:
Quem acha bonito e pode passar a vida a ouvir o som
das palavras
Ou é ninguém ou zoró.
Eu teria treze anos.
De tarde fui olhar a Cordilheira dos Andes que
se perdia nos longes da Bolívia.
E veio uma iluminura em mim.
Foi a primeira iluminura.
Daí botei meu primeiro verso:
Aquele morro bem que entorta a bunda da paisagem.
Mostrei a obra pra minha mãe.
A mãe falou:
Agora você vai ter que assumir as suas
irresponsabilidades.
Eu assumi: entrei no mundo das imagens.



MANOEL DE BARROS
Compêndio para uso dos pássaros
(Poesia reunida 1937-2004)
Quasi Edições, 2007

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Rosario Castellanos (A saudade)






LA NOSTALGIA




Si te digo que fui feliz, no es cierto.

No creas lo que yo creo cuando me engaño.

El recuerdo embellece lo que toca:
te quita la jaqueca que tuviste,
el sopor de la siesta lo transfigura en éxtasis
y, en cuanto a ese zapato que apretaba
tanto que te impidió bailar el primer baile,
no hubo zapato. Mira: estás descalza, danzas
eternamente ingrávida en el círculo
cerrado de un abrazo.

Danzas sin esa doble barbilla de tu gula,
sin esa arruga artera
que está acechando alrededor de tu ojo.


Rosario Castellanos





Se te digo que fui feliz, não é verdade.

Não creias o que eu creio quando me engano.

A lembrança alinda aquilo que toca:
tira-te a enxaqueca que tiveste,
o torpor da sesta transforma-o em êxtase
e, quanto àquele sapato que tanto apertava
que te impediu de dançar a primeira dança,
não houve sapato. Olha, estás descalça,
danças sem peso para sempre
no círculo fechado dum abraço.

Danças sem esse duplo queixo da tua gula,
sem essa ruga arteira
a cercar-te o olho.


(Trad. A.M.)

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11.4.11

Luís de Camões (Enquanto quis Fortuna que tivesse)





Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.


Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não disesse


Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,


Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.



Luís de Camões


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José Tolentino Mendonça (Caminho do Forte, Machico)






CAMINHO DO FORTE, MACHICO




No caminho onde aprendi o outono
sob o azul magoado
os pescadores cruzam ainda linhas
províncias clareiras
e esse gesto masculino de apagar a dor


chegava pelos percalços da terra
o carro do gelo
e os miúdos tiravam bocados para comer às dentadas
em retrato selvagem mas, juro-vos, havia encanto
havia qualquer coisa, outra coisa
nesse instante em perda


as mulheres sentavam-se à porta com os bordados
quando passavam estrangeiros
ficavam sempre a sorrir nas suas fotografias



José Tolentino Mendonça



10.4.11

Pablo Neruda (O vento é um cavalo)






EL VIENTO ES UN CABALLO




El viento es un caballo:
óyelo cómo corre
por el mar, por el cielo.


Quiere llevarme: escucha
cómo recorre el mundo
para llevarme lejos.


Escóndeme en tus brazos
por esta noche sola,
mientras la lluvia rompe
contra el mar y la tierra
su boca innumerable.


Escucha como el viento
me llama galopando
para llevarme lejos.


Con tu frente en mi frente,
con tu boca en mi boca,
atados nuestros cuerpos
al amor que nos quema,
deja que el viento pase
sin que pueda llevarme.


Deja que el viento corra
coronado de espuma,
que me llame y me busque
galopando en la sombra,
mientras yo, sumergido
bajo tus grandes ojos,
por esta noche sola
descansaré, amor mío.



Pablo Neruda


[Corte na Aldeia]





O vento é um cavalo,
vê como corre
por esse mar, pelo céu.


Quer-me levar, escuta
como percorre o mundo
para levar-me para longe.


Esconde-me em teus braços
por esta noite só,
enquanto a chuva quebra
sua boca inumerável
contra o mar e a terra.


Escuta como o vento
me chama a galopar
para levar-me para longe.


Com tua fronte na minha,
tua boca em minha boca,
atados nossos corpos
ao amor que nos queima,
deixa o vento passar
sem poder-me levar.


Deixa o vento correr
coroado de espuma,
que me chame e me busque
galopando na sombra,
enquanto eu,
mergulhado em teus olhos,
descansarei, amor meu,
por esta noite só.



(Trad. A.M.)

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José Miguel Silva (Libertação)






LIBERTAÇÃO





Foi o dia em que um polido agente da autoridade
nos veio buscar a casa para nos interrogar.
Alguém havia assaltado o posto médico
e o medo da vizinhança apontara para nós.
Não sabíamos de nada, mas o nosso luto
(morrera-nos o mundo há pouco tempo)
dizia o contrário. Éramos muito jovens,
tínhamos a boca ferida de insultos. A nossa vida,
coitada, lia muitos livros de aventuras políticas,
sentia-se capaz, dizia, de dar a volta ao mundo
numa barca de cortiça. Não lhe demos confiança.
Após o depoimento ainda passei pela biblioteca
e à noite festejámos a libertação da nossa inocência.
Nunca mais pedimos sal aos vizinhos.



JOSÉ MIGUEL SILVA
Vista para um pátio seguido de desordem
Relógio d'Água
(2003)



[Canal de poesia]


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9.4.11

Ver (70)









(Foz do Arelho)


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Nicanor Parra (Quantas vezes)





CUÁNTAS VECES
VOY A REPETIR LO MISMO!




Compren insecticida
Saquen las telarañas del techo
Limpien los vidrios de las ventanas
¡están plagados de cagarrutas de moscas!
Eliminen el polvo de los muebles
Y lo más urgente de todo:
háganme desaparecer las palomas:
¡todos los días me ensucian el auto!

¡Dónde demonios me dejaron los fósforos!


Nicanor Parra




Comprem insecticida
Tirem as teias de aranha do tecto
Limpem os vidros das janelas
estão cheios de cagadelas de moscas!
Limpem o pó dos móveis
E o mais urgente de tudo:
façam-me desaparecer as pombas,
sujam-me o carro todos os dias!

Onde raio me puseram os fósforos?


(Trad. A.M.)

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8.4.11

José Gomes Ferreira (Dantes)





Dantes,
de punhos cerrados,
calor de lágrimas de frio,
gritava com a sensação
de nascer das palavras.


Agora morro nelas
 - lume podre
na solidão das bocas sem saliva
dos cadáveres.




José Gomes Ferreira


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7.4.11

José Carlos Barros (As casas da várzea)






AS CASAS DA VÁRZEA




há muito tempo que tenho uma história para contar
e tenho vergonha de contá-la por ser verdadeira
tão verdadeira como eu estar aqui
e saber que as pessoas em regra
não acreditam em histórias verdadeiras.
as pessoas em regra acreditam
na prosa das mentiras.


eu era então uma criança.
e é claro que quase todos nós tão rapidamente
começamos a aprender a deixar de ser
aquilo que somos
para passarmos a ser
aquilo que julgamos que os outros
a um espelho poliédrico
julgam que somos.
não admira por isso mesmo
que não acreditemos nas histórias das crianças
e não admira que quase sempre seja necessário
colocarmos máscaras no rosto
para regressarmos à identidade
que ao longo do tempo perdemos.
e está portanto explicada a razão
de ter uma história verdadeira para contar
e temer que ninguém acredite
na minha história verdadeira.


pois é dá-se o caso de eu em criança
apanhar a camioneta da carreira
no largo do toural das boticas
a caminho de chaves.
mas os milagres precisam de tempo
e deslocamento do fulcro onde se sustenta
o quotidiano concreto das coisas.
e talvez por isso mesmo
só na viagem de regresso
esse já entretanto pressentido mistério
começasse em rigor os trabalhos
fabulosos da revelação.


na garagem da auto viação do tâmega
onde funcionavam também os escritórios subindo-se
uma escaleira sem guarda
havia um cheiro permanente a gasóleo
e uma bruma que vinha dos filmes a preto e branco
e um ruído de fundo de motores
que só muitos anos mais tarde viria a saber
que revertia da insânia do levante.


e logo começavam os milagres
em saindo a camioneta da carreira dos largos portões
da garagem do canto do rio
com esse rumor contínuo
a acompanhar-nos a viagem toda
e a ficar nos ouvidos durante a noite
até se desvanecer enfim às primeiras horas da manhã
e ser apenas já um murmúrio ou a sua reminiscência
o que vibrava ainda nos vidros
das janelas do quarto.


mas saindo da cidade
e abrindo as curvas muito fechadas até
à tipografia gutenberg
que nesse tempo ficava do outro lado da estrada
num pequeno anfiteatro virado às águas do tâmega


eu via que os homens
de súbito
voavam.


os homens que voavam
pareciam vir do lado das casas da várzea.
voavam numa lentidão inverosímil
os braços muito abertos e as pernas a quarenta e cinco graus
como naves alienígenas
suspensas da rarefacção dos fins de tarde
dos meses de junho.


o meu pai nunca compreendia
a razão de eu querer ficar no banco corrido de trás
o mais desconfortável
e sujeito à oscilação de enjoo das molas oscilatórias
da camioneta da carreira:
mas só assim podia ainda quedar-me
de olhos colados ao imenso vidro traseiro
a ver os homens da várzea
a desaparecer na distância
voando sobre a veiga de chaves
tocando com as mãos na copa dos salgueiros
e dos amieiros
incendiados pela reverberação
das seis e meia.


eu próprio cheguei a duvidar
das imagens antigas da infância
e dessa memória que ao longo dos anos
repercutiu nos meus sonhos.


a verdade é que no passado dia vinte e três de agosto
numa segunda feira do ano de dois mil e dez
ao fim da tarde
quase quarenta anos depois do
episódio a que faço ingloriamente referência
por saber que ninguém no mundo em que vivemos
acredita em histórias verdadeiras


ia eu de carro a caminho de chaves
e vi claramente visto
com estes dois que só a terra haverá de comer
um homem e uma mulher
suspensos à luz rasa do crepúsculo
voando sobre os campos da veiga.


vinham ambos do lado das casas da várzea
e a mulher tinha um vestido de um amarelo tão intenso
que eu estou que o resto da minha vida
não será bastante
por longa que seja
para ofuscar na memória
o halo dessa tão intensa e concreta
revelação dos milagres.



José Carlos Barros



[Casa de Cacela]


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6.4.11

Miriam Reyes (Agora estás com todos)






Ahora estás con todos
quien te quiera tener te tendrá como nunca
sin necesidad de discutir
dónde dormirás esta noche con quién pasarás el próximo verano.
Pero fuera no estás: la ciudad vacía la casa devuelta
la familia un montón de extraños unidos apenas por un amor
que les diste y todavía conservan.
Sin tu tronco quedamos
ramas por el suelo
leña para el fuego.


Miriam Reyes





Agora estás com todos
quem te quiser ter ter-te-á como nunca
sem precisar de discutir
onde dormirás esta noite
com quem passarás o próximo verão.
Mas fora não estás:
a cidade vazia
a casa devoluta
a família um monte de estranhos
unidos apenas por um amor
que lhes deste e ainda conservam.
Sem o teu tronco somos apenas
ramos pelo chão
lenha para o lume.


(Trad. A.M.)

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José Agostinho Baptista (Agora, não te escrevo)






AGORA, NÃO TE ESCREVO




Agora, não te escrevo nada.
Fecho todas as páginas deste livro onde
não voltarás.
Fecho todas as cancelas que um dia abriste,
numa estação de palavras ternas.


Agora, não te abro a porta deste quarto com
jarras sem água,
com alucinantes paredes sem luz.


Digo apenas que ainda conheço os teus passos,
o teu vulto que empalidece sobre as quatro luas,
digo ao ver os anéis de âmbar e
prata
é como se nos teus dedos sem febre tudo se
parecesse ao terror das águias aprisionadas.


Não cantas,
não moves os lábios,
não me falas junto às fontes,
não te ergues como o sol que ainda bate
neste rosto inclinado, pouco a pouco mais
triste, a olhar para longe.
A alma, oh,
a alma vive na floresta branca, ao lado do anjo.


Emudeceste,
E no teu silêncio de pedra emudeceram as
paisagens do céu.
Nunca mais foi Verão.


Ainda me lembro dos cães que nunca vias
e não tinham nome,
e eram como se pensassem, como se amassem,
e, por amor perdidos,
procurassem as algas que secavam.


Assim é a minha vida.
Hoje, só os desertos me conhecem. Nada mais.



JOSÉ AGOSTINHO BAPTISTA
Esta voz é quase o vento
Assírio & Alvim
(2004)



[Linhas desconexas]


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5.4.11

Fernando Pessoa / A. Campos (Se te queres matar)






SE TE QUERES MATAR




Se te queres matar, por que não te queres matar?
Ah, aproveita! Que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria…
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos o mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente…
Talvez, acabando, comeces…
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes como eu a morte em literatura!


Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém…
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te…
Talvez peses mais durando, que deixando de durar…
A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão…
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outros, sobretudo a morte,
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros…


Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da sua vida falada…
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando a pena de teres morrido,
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas…
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além…


Depois a trágica retirada para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro em todos um alívio
Da tragédia um pouco maçadora de teres que morreste.
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia…
Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas, aniversariamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada, absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti.
Duas vezes no ano suspiram por ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.


Encara-te a frio, e encara a frio o que somos…
Se queres matar-te, mata-te…
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?


Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?
Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?


És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti porque só tu és importante para ti.
E se és assim, ó mito, não serão os outros assim?
Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? O que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?


Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se assim a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciência da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das coisas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo…



Álvaro de Campos

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