30.10.06

Cristóvão de Aguiar (A alegria que me alaga o íntimo)






A alegria que agora me alaga o íntimo por não ter ainda nesse tempo pousado a morte no limiar de ladrilho de nossa casa!

Pouco ou nenhum sentido se deitava a estas súbitas reinvenções de uma ternura serôdia.

As palavras eram apenas pedaços de pão ou pedras esquinadas que eu atirava, rasantes e zunindo, aos gargalos das galinhas sem culpa que debicavam contra as paredes revestidas de coucelos.

Ficavam desmaiadas até lhes mergulhar o pescoço bambo na selha de água para virem a si.

Não usavam ainda as palavras a máscara e os disfarces do entrudo da sintaxe.

Possuíam o chão de terra estrumado e conjugavam-se na alegria fundamental do verbo crescer — saboroso mistério de silenciosa seiva subindo, subindo.

Eram a casa terreira juncada de caruma e rescendendo a resina e a maresia.

Nelas se instalava o forno do pão, inchado de labaredas, que o esborralhadouro embandeirado na ponta com trapos escorrendo percorria como um falo florescente.

Não poderia nelas, palavras, caber a morte, esse substantivo subentendido de coisa nenhuma.



- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, O fruto e o sonho, 1.ª parte, cap. II, abertura, da trilogia Raiz Comovida.

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29.10.06

Mario Benedetti (Coração couraça)













CORAÇÃO COURAÇA









Porque te tenho e não
porque te penso
porque a noite está de olhos abertos
porque a noite passa e digo amor
porque vieste recolher a tua imagem
e és melhor do que qualquer imagem tua
porque és linda do corpo até à alma
porque és boa da alma até mim
porque te escondes doce no orgulho
pequena e doce
coração couraça


porque és minha
porque não és minha
porque te vejo e morro
e pior que morro
se não te vejo amor
se não te vejo


porque tu existes sempre onde quer
mas existes melhor onde te quero
porque tua boca é sangue
e tens frio
tenho que amar-te amor
tenho que amar-te
ainda que esta ferida doa por duas
ainda que te busque e não te encontre
e ainda que
a noite passe e eu te tenha
e não.



Mario Benedetti

(Trad. A. M.)



[A-media-voz ]




27.10.06

Edgar Morin (Estamos condenados ao paradoxo)








Estamos condenados ao paradoxo de conservar em nós, simultaneamente, a consciência da vacuidade do nosso mundo e a da plenitude que nos pode trazer a vida, quando quiser ou puder.

Se a sabedoria nos pede para nos desprendermos do mundo da vida, será ela verdadeiramente sábia?

Se aspiramos à plenitude do amor, seremos nós verdadeiramente loucos?





- E. MORIN, Amor, poesia e sabedoria, Prólogo, Lisboa (Piaget), 1999, p. 11.

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Coitado do Jorge (26)







SMS




Às vezes ponho-me a pensar como seria
se tu quisesses que fosse.

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Vinicius de Moraes (A brusca poesia...)






A BRUSCA POESIA DA MULHER AMADA




Longe dos pescadores os rios infindáveis vão morrendo de sede lentamente...
Eles foram vistos caminhando de noite para o amor – oh, a mulher amada é como a fonte!
A mulher amada é como o pensamento do filósofo sofrendo
A mulher amada é como o lago dormindo no cerro perdido
Mas quem é essa misteriosa que é como um círio crepitando no peito?
Essa que tem olhos, lábios e dedos dentro da forma inexistente?


Pelo trigo a nascer nas campinas de sol a terra amorosa elevou a face pálida dos lírios
E os lavradores foram se mudando em príncipes de mãos finas e rostos transfigurados...


Oh, a mulher amada é como a onda sozinha correndo distante das praias
Pousada no fundo estará a estrela, e mais além.


Rio de Janeiro, 1938



Vinicius de Moraes



Fonte: Vinicius (tudo, ou quase, sobre...)

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22.10.06

Fernando Assis Pacheco (Volta à amada em uma semana)







VOLTA À AMADA EM UMA SEMANA




No primeiro dia eu disse para mim mesmo
que o amor era a casa da minha vida.


No segundo dia as maravilhas
do amor quase me cegavam.


Guardei o terceiro dia para meditação.
Precisava reentrar em mim.


No quarto dia senti-me sábio,
cheio de janelas e fragrâncias.


Ó quinto dia, gritei, nunca tu viesses,
dominador, devorador!


Mas no sexto dia eu era um oceano
banhando esse país rumorejante


aonde, com a guitarra ao ombro,
aportei no sétimo dia.



Fernando Assis Pacheco

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21.10.06

Coitado do Jorge (25)













SMS







Eu pergunto apenas:
- Quando é que se vai derramar sobre mim?



Depois é que consulto o dicionário:
Derramar – verter, espalhar, entornar, disseminar,
produzir abundantemente, prodigalizar…



- Estamos entendidos?

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Alexandre O'Neill (O país relativo)






País - 1 (Jorge de Sena)



País - 2 (A. O'Neill)







O PAÍS RELATIVO




País por conhecer, por escrever, por ler...


País purista a prosear bonito,
a versejar tão chique e tão pudico,
enquanto a língua portuguesa se vai rindo,
galhofeira, comigo.


País que me pede livros andejantes
com o dedo, hirto, a correr as estantes.


País engravatado todo o ano
e a assoar-se na gravata por engano.


País onde qualquer palerma diz,
a afastar do busílis o nariz:
-Não, não é para mim este país!
mas quem é que bàquestica sem lavar
o sovaco que lhe dá o ar?


Entrecheiram-se, hostis, os mil narizes
que há neste país.


País do cibinho mastigado
devagarinho.


País amador do rapapé,
do meter butes e do parlapié,
que se espaneja, cobertas as miúdas,
e as desleixa quando já ventrudas.


O incrível país da minha tia,
trémulo de bondade e de aletria.


Moroso país da surda cólera,
de repente que se quer feliz.


Já sabemos, país, que és um homenzinho...


País tunante que diz que passa a vida
a meter entre parêntesis a cedilha.


A damisela passeia
no país da alcateia,
tão exterior a si mesma
que não é senão a fome
com que este país a come.


País do eufemismo, à morte dia a dia
pergunta mesureiro: - Como vai a vida?


País dos gigantones que passeiam
a importância e o papelão,
inaugurando esguichos no engonço
do gesto e do chavão.
E ainda há quem os ouça, quem os leia,
lhes agradeça a fontanária ideia!


Corre boleada, pelo azul,
a frota de nuvens do país.


País desconfiado a reolhar para cima
dum ombro que com razão duvida.


Este país que viaja a meu lado,
vai transido mas transistorizado.


Nhurro país que nunca se desdiz.


Cedilhado o cê, país, não te revejas
na cedilha, que a palavra urge.


Este país, enquanto se alivia,
manda-nos à mãe, à irmã, à tia,
a nós e à tirania,
sem perder tempo nem caligrafia.


Nesta mosquitomaquia
que é a vida,
ó país,
que parece comprida.


A Santa Paciência, país, a tua padroeira,
já perde a paciência à nossa cabeceira.


País pobrete e nada alegrete,
baú fechado com um aloquete,
que entre dois sudários não contém senão
a triste maçã do coração.


Que Santa Sulipanta nos conforte
na má vida, país, na boa morte!


País das troncas e delongas ao telefone
com mil cavilhas para cada nome.


De ramona, país, que de viagens
tens, tão contrafeito...


Embezerra, país, que bem mereces,
prepara, no mutismo, teus efes e teus erres.


Desaninhada a perdiz,
não a discutas, país!
Espirra-lhe a morte pra cima
com os dois canos do nariz!


Um país maluco de andorinhas
tesourando as nossas cabecinhas
de enfermiços meninos, roda-viva
em que entrássemos de corpo e alegria!


Estrela trepa trepa pelo vento fagueiro
e ao país que te espreita, vê lá se o vês inteiro.
Hexágono de papel que o meu pai pôs no ar,
já o passo a meu filho, cansado de o olhar...


No sumapau seboso da terceira,
contigo viajei, ó país por lavar,
aturei-te o arroto, o pivete, a coceira,
a conversa pancrácia e o jeito alvar.
Senhor do meu nariz, franzi-te a sobrancelha;
entornado de sono, resvalaste para mim.
Mas também me ofereceste a cordial botelha,
empinada que foi, tal e qual clarim!



ALEXANDRE O’NEILL
Feira Cabisbaixa
(1965)

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18.10.06

Mário Rui de Oliveira (Logo atrás de ti)











LOGO ATRÁS DE TI






Esta dor não passa quando adormeço
chora ao pé de mim
irremediável


alguém nos toca no ombro e
damos por nós mais sozinhos


o meu lugar na morte
é junto da janela
logo atrás de ti



Mário Rui de Oliveira



Mais poemas: O lugar das palavras / As tormentas

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17.10.06

16.10.06

Pablo Neruda (Poema 20 - Podia escrever os versos mais tristes)





POEMA 20



Puedo escribir los versos más tristes esta noche.


Escribir, por ejemplo: «La noche está estrellada,
y tiritan, azules, los astros, a lo lejos».


El viento de la noche gira en el cielo y canta.


Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Yo la quise, y a veces ella también me quiso.


En las noches como ésta la tuve entre mis brazos.
La besé tantas veces bajo el cielo infinito.


Ella me quiso, a veces yo también la quería.
Cómo no haber amado sus grandes ojos fijos.


Puedo escribir los versos más tristes esta noche.
Pensar que no la tengo. Sentir que la he perdido.


Oír la noche inmensa, más inmensa sin ella.
Y el verso cae al alma como al pasto el rocío.


Qué importa que mi amor no pudiera guardarla.
La noche está estrellada y ella no está conmigo.


Eso es todo. A lo lejos alguien canta. A lo lejos.
Mi alma no se contenta con haberla perdido.


Como para acercarla mi mirada la busca.
Mi corazón la busca, y ella no está conmigo.


La misma noche que hace blanquear los mismos árboles.
Nosotros, los de entonces, ya no somos los mismos.


Ya no la quiero, es cierto, pero cuánto la quise.
Mi voz buscaba el viento para tocar su oído.


De otro. Será de otro. Como antes de mis besos.
Su voz, su cuerpo claro. Sus ojos infinitos.


Ya no la quiero, es cierto, pero tal vez la quiero.
Es tan corto el amor, y es tan largo el olvido.


Porque en noches como ésta la tuve entre mis brazos,
Mi alma no se contenta con haberla perdido.


Aunque éste sea el último dolor que ella me causa,
y éstos sean los últimos versos que yo le escribo.




PABLO NERUDA
Veinte poemas de amor y una canción desesperada
(1924)

11.10.06

Um verso (21)




Um verso de Al Berto
(quem te manda a ti, sapateiro?...):





“Cujo gume possui a fatalidade do sangue contaminado”.


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Coitado do Jorge (24)







Cena 1005 - Take 1





Cá estou eu no vale, roído de saudades, sempre a lembrar-me de uma certa pessoa. Que não posso dizer quem é...
O problema é que trouxe várias fotos novas dessa tal pessoa e fico o tempo todo a olhar para elas, enfeitiçado.
Não é bem por a pessoa ser bonita, fresca e perfumada.
É mais porque fui eu que tirei as fotos, sou o autor, ou o criador do objecto que admiro.
Não só da representação, mas também do objecto mesmo, que é que julga? Porque é o facto de eu adorar a tal pessoa (eu não devia dizer, cada vez mais, é isso que não me entra) que faz com que ela seja (ela me pareça) bonita, fresca e perfumada.
É que até do perfume gosto, já viu a minha desgraça?


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Cristóvão de Aguiar (Trazido no langor)




Trazido no langor das conversas estendidas e ripadas no linhal dos serões, compridos e esbanjados de tempo — as noites espreguiçadas do Inverno ilhéu — o mundo mormacento da nossa freguesia ia entrando sorrateiro no quartinho do relógio.

Alcandorado no seu canto, o relógio condutava as horas sem nenhuma pressa de empurrar a noite velha para o colo da madrugada, na fundura da garganta dos galos ainda. Das bocas encieiradas e tontas de sono, iam florindo as palavras em canteiros de terra fofa. E no atalho térreo da conversa ia rastejando o sonho primordial — a América. Subia a ladeirinha que desemboca na foz do desejo, continuava sempre trepando, orelha guicha, agulhando as sílabas da aventura enroscada no íntimo, até se esparramar, na sua líquida expansão, na superfície global das palavras alagadas em imaginadas travessias atlânticas.

O mundo dos mortos e dos ausentes também vinha sentar-se no sobrado da conversa. E para ali ficava na sua amarelenta rigidez absorvendo o licor das palavras carregadas de um travo de amargor e impregnadas de um cheiro errante de alecrim dos mortos.



- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, Vindima de fogo, cap. XI, abertura, da trilogia Raiz Comovida.

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8.10.06

Carlos Drummond de Andrade (O seu santo nome)






O SEU SANTO NOME




Não facilite com a palavra amor.
Não a jogue no espaço, bolha de sabão.
Não se inebrie com o seu engalanado som.
Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).
Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissão
de espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavra
que é toda sigilo e nudez, perfeição e exílio na Terra.
Não a pronuncie.



Carlos Drummond de Andrade


7.10.06

Coitado do Jorge (23)




Cena 1016 - Take 2


1. E cá estamos mais uma vez…
Até me dá raiva. E dá-me cada vez mais raiva, de cada vez, nesta longuíssima série de vezes sucessivas. Se um dia expludo, alguém se vai magoar. Entretanto, enquanto o vulcão não rebenta, sai isto, fumarolas. E pequenas explosões. Esta é a primeira, de agora…

2. Com que então queria discutir? Por exemplo, quem gosta e quem não gosta. Quem tem culpa e quem não tem. Quem foi à fonte e quem ficou em casa. E por aí fora…
Pois sim, não estou para aí virado. Não tenho sequer tempo, porque vida há só uma e curta. E se a aplicamos em coisas más, tiramos lugar às coisas boas. E são estas que me interessam, não aquelas.
Defender a felicidade, é preciso, como defender a liberdade. Como estranho a estranheza de tantos observadores por a declaração de independência dos EUA, acho que é isso, misturar explicitamente essa duas coisas, liberdade e felicidade.


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Mário-Henrique Leiria (Noivado)






NOIVADO




Estendeu os braços carinhosamente
e avançou, de mãos abertas
e cheias de ternura.
- És tu Ernesto, meu amor?
Não era. Era o Bernardo.
Isso não os impediu
de terem muitos meninos
e não serem felizes.
É o que faz a miopia.


Mário-Henrique Leiria

Outros lugares: Lídia Aparício / Poesias-e-prosas / nEscritas



4.10.06

Fernando Assis Pacheco (Últimos desejos)







ÚLTIMOS DESEJOS




Quero voar como os anjos
quero lavar os dentes com triflúor
quero o Belinho sem o Oliveira
quero cornear o duque de Kent


quero 250 de Platão bem passados
quero a destreza do okapi
quero ir ao Douro às vindimas
quero pagar com letrasset


quero vestir de linho (e do Veiga)
quero ser primeiro no Mundial
quero pudim francês com caramelo
quero ler um cabinda em verso branco


quero uma sequóia para o quarto
quero voar de Spitfire
quero esmurrar o Marcel Cerdan
quero a Maja Desnuda


quero-te de bicicleta
quero-te outra vez de bicicleta sobre as folhas
quero-te ouvir chegar de bicicleta
quero o som macio que fazia na mata a tua bicicleta.


Fernando Assis Pacheco

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Coitado do Jorge (22)



CENA 1017 - Take 1


Minha linda, o seu comportamento, ultimamente e não só, pode apenas explicar-se com uma palavra. E essa palavra não é maldade (ou ruindade, como se diz na minha terra…), apesar de todos os pesares. A palavra é loucura, por muito terrível que seja dizê-la. Ou ouvi-la…
É esta, com efeito, a loucura, que explica que trate mal quem só lhe faz e quer bem (eu falo por mim, mas é impossível não haver outros exemplos coetâneos). E que explica tantas outras asneiras, que estão aí à vista…
De modo que, conselho por conselho, o meu conselho é este: 1) Controle-se (é preciso que se controle…); e/ou 2) Trate-se (é indispensável que se trate…).
Porque, assim como assim:
a) Qualquer relacionamento (íntimo) estável é absolutamente impossível (falo por mim, mais uma vez, mas…);
b) O problema tenho a certeza de que vai extravasar para a vida comum/profissional (se é que já não extravasou…). E as consequências, nesse nível, podem ser pesadas!
Fique bem.
E feliz (mas atenção ao que lhe digo, aqui).


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2.10.06

Um verso (20)





Um verso de Cernuda
(Luis, medido à justa):




“Porque o desejo é uma pergunta cuja resposta ninguém sabe”.



Luis Cernuda


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Claribel Alegria (Creí pasar mi tiempo)






CREÍ PASAR MI TIEMPO




Creí pasar mi tiempo
amando
y siendo amada
comienzo a darme cuenta
que lo pasé despedazando
mientras era a mi vez
des
pe
da
za
da.



Claribel Alegria

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