24.10.25

Vitorino Nemésio (Disposições de última vontade)




DISPOSIÇÕES DE ÚLTIMA VONTADE 

 

Não me proíbam que seja o imaginário amoroso,
nem me venham prender
à sua própria cama
esta vaga mulher que se insinuou na minha alma
e acha o ninho gostoso.
Não me amesquinhem nem reduzam
só ao que sou por fora e é negado por dentro;
Mas também não me lastimem como quem diz de uma casa:
‘Que lindo jogo de varandas!
É pena
que tenha o forro roto e cheio de ratos.’
Deixem-me dormir,
dormir maciçamente e com todas as distensões
semelhantes, no cómodo, à posição dos extintos,
e sem tirar as polainas cor de café com leite
que usam os rapazes distintos.
Dormir! Estar pràqui quieto e atravessado
pelos fogos que perderam a direção dos chamuscos,
pelos rastos dos cometas que deixaram o lume no céu
e o atilho no mar — papagaios enormes!
O meu cinzeiro de fumador cá está crescendo;
Cá estou fazendo os versos que hão de dar ‘honra às letras’.
Que mais querem?
Não é este o célebre Dever e a obrigação de cada um?
Cumprida a qual — desistam
de me pedir a volta ao costumado equilíbrio,
à pacatez forçosa.
Sofro com olhos naturais
e sem sombra de arranjo
o que uma força remota tem necessidade de que eu sofra
e embebe em mim até aos copos da lúcida espada do Anjo.
E, se tenho chagas curáveis,
cá sei por que é saboroso ir sugando o seu podre!
Peço além disso que a terra
onde nasci  seja ainda e sempre conservada
a uma boa distância de mim:
Para que quem lá mora tenha o tempo por si para esquecer-me —
ou então para se lembrar cada vez mais de mim
enquanto me torno impossível:
Mas lembrar com uma lembrança aguda e intolerável,
que pese como o mar e seja salgada e repetida
como cada onda que bate
no rochedo — até lá por outras ondas seguida:
Onda que não me salva,
porque estou longe e será para todo o sempre perdida.
E assim ficarei quieto,
além de ficar restituído
ao original silêncio;
E, enfim, me irei perdendo...
Porque era realmente disparate,
como quem acha um cigarro ainda com lume, ter achado
certo fogo que não pode de modo algum ficar ardendo.
Abram as janelas para sair o resto do fumo
e fechem a porta. Não deixem entrar ninguém
e, muito menos, poetas.
Agora sinto-me bem;
Os mortos, na verdade, são umas pessoas completas.
 

Vitorino Nemésio

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22.10.25

Virgilio Piñera (Na porta do vizinho)




En la puerta de mi vecino
un papelito me dejó helado.
“No me molesten. Estoy llorando.
Y consolarme ya nadie puede."

Ahora yo sueño con mi vecino.
Y mientras sueño, abro la puerta.
Adentro veo mi propia cara,
mi propia cara bañada en lágrimas.


Virgilio Piñera

[Una broma colosal]

 

 

Na porta do vizinho
um papel deixou-me gelado:
‘Não me incomodem, estou a chorar.
E consolar-me ninguém pode’.

Agora, eu sonho com o vizinho.
E, no sonho, abro a porta,
vejo dentro a minha própria cara,
a minha cara banhada em lágrimas.


(Trad. A.M.)

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21.10.25

Francisco García Marquina (Testamento ológrafo)




TESTAMENTO OLÓGRAFO 

 

Llegados a este punto comienzo a desbarrar
y a insultarte con gracia, a hacerte algunas
proposiciones indecentes.
Este poema es una saludable
invitación al mal
que sólo entenderás si tú me amas
con toda crueldad y sin respiro
y al margen de la ley.
A lo peor de ti se dirigen mis versos:
a tu ternura airada y a tus lágrimas
que matan a distancia, a tu mentira
hecha de oro mojado,
a tu hacienda perdida de antemano
y a esta muerte gloriosa y compartida
que quiero negociar.
Nos queda por delante algo de vida
caducable y dudosa, pero luego
sin duda gozaremos
de una extensa y perdurable muerte.
Al hacer nuestros planes de futuro
hay que contar con esa
terrible dimensión de despropósito.
Yo amo la vida que cargo a mis espaldas
pero, si miro al frente,
debo reconocer que el futuro está en esa
solidez de desastre.
Tuvimos ciertas buenas experiencias
ensayando tan negro porvenir
en esas muertes dulces
con las que agonizaron nuestros cuerpos
en esos urgentísimos delitos
de los que fuimos cómplices,
y en esos golpes cálidos de mano
con que la carne toca el más allá.
El crimen fue perfecto
llenándonos de dicha la sentencia.
En consecuencia, ahora
y muy serenamente, he decidido
participar en esta ceremonia
capital, de la muerte.
Voy a darle la cara
para que no se fragüe a mis espaldas.
Yo he cometido errores y también cobardías
que empañan el pasado
pero, mirando al frente, me propongo
que el morir sea un acierto.
Y si mi vida fue involuntaria y necia,
saber morir adrede
podría ser la enmienda de aquel caos.
A quien amo le digo:
el regalo exquisito que te ofrezco,
con la honradez que da el amor penúltimo,
es la muerte entre dos.
Vamos del brazo al cabo de la vida,
lo que hayamos de hacer
lo haremos juntos.

FRANCISCO GARCÍA MARQUINA
Cartas a Deshora
(2010)


Aqui chegados eu começo a desvairar
e a insultar-te por graça, a fazer-te algumas
propostas indecentes.
Este poema é um são convite para o mal
que tu só vais entender se me amares
do modo mais cruel, sem respirar
e à margem da lei.
Ao pior de ti meus versos vão dirigidos,
à tua ternura airada e tuas lágrimas
que matam à distância, à tua mentira
feita de ouro molhado,
á fazenda perdida de antemão
e a esta morte gloriosa e partilhada
que eu pretendo negociar.
Para diante nos fica alguma vida
duvidosa e caducável, mas depois gozaremos
extensa e perdurável morte.
Ao fazermos nossos planos de futuro
temos de contar com essa
terrível dimensão de despropósito.
Eu amo a vida que carrego nas minhas costas,
mas, se olhar para a frente,
tenho de reconhecer que o futuro
está nessa solidez de desastre.
Boas experiências tivemos nós
ensaiando tão negro futuro
nessas mortes doces
em que nossos corpos agonizaram,
nesses urgentíssimos delitos
em que ambos fomos cúmplices,
e nesses golpes de mão
com que a carne toca o além.
Crime perfeito,
a sentença nos ditou a ventura.
Assim, muito serenamente, tenho decidido
participar nesta cerimónia
capital da morte.
Vou dar-lhe a cara
para não se fazer nas minhas costas.
Cometi erros, sim, e também cobardias
que turvam o passado,
mas, olhando para a frente,
proponho que a morte seja um acerto final.
E se minha vida foi néscia e casual,
saber morrer adrede
poderia ser a emenda desse caos.
A quem amo eu digo:
o presente fino que te ofereço,
com a honradez do amor quase derradeiro,
é a morte entre os dois.
Vamos de braço dado até ao fim,
o que tivermos de fazer
faremos juntos.
 

(Trad. A.M.)

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19.10.25

Ruy Belo (Os bravos generais)




OS BRAVOS GENERAIS 

 

Os bravos generais caem do escadote
citam teilhard frequentam o templo
São eles e não as damas quem nos salões dá o mote
Os filhos podiam invocá-los como exemplo
seu peito fero é todo uma medalha
e ganham sempre só perdem a batalha
do escadote quando o inimigo grita: toma
chegou a tua vez de receberes um hematoma
Seja a subir seja a descer - desde que não seja escada -
os generais avançam pois não temem nada
Mas -- sobressaltam-se eles -- o que é que o meu olhar avista?
Um simples escadote o grande terrorista
 

Ruy Belo 

[Voar fora da asa]

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17.10.25

Vicente Muñoz Álvarez (Vento e cinza)




VIENTO Y CENIZA

 

qué difícil
para los que seguimos decir adiós
a los que se van

vuela alto
que la tierra
te sea leve
descansa en paz

solo palabras
y lágrimas

viento y ceniza

qué corto el viaje
qué breve la vida
qué efímero todo

qué triste

Vicente Muñoz Álvarez

[Mi vida en la penumbra]

 

 

Que difícil
para nós que continuamos dizer adeus
aos que se vão

Voa alto
que a terra
te seja leve
descansa em paz

Tudo palavras
e lágrimas

Vento e cinza

Que curta a viagem
que breve a vida
que efémero tudo

Que triste


(Trad. A.M.)

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16.10.25

Victor Herrero de Miguel (Casta)





CASTA

 

Um homem desnuda-se diante dum rio.
Sabe que o importante nos é dado
sempre com leveza
                            e que a graça
foge daquilo que pesa.
Acerca-se lentamente, como a um templo.
Passa a soleira do ar.
Desfruta contemplando
a forma das pedras.
Mergulha com os peixes.
Leva tempo, atrás do adjectivo
que diga aquilo que sente
ao abraçar a água.
E achou-o por fim:
                              casta.


Victor Herrero de Miguel

(Trad. A.M.)

 

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 .

14.10.25

Vinicius de Moraes (Ausência)




AUSÊNCIA



Eu deixarei que morra em mim o desejo de amar os teus olhos que são doces
porque nada te poderei dar senão a mágoa de me veres eternamente exausto.
No entanto a tua presença é qualquer coisa como a luz e a vida
e eu sinto que em meu gesto existe o teu gesto e em minha voz a tua voz.
Não te quero ter porque em meu ser tudo estaria terminado
quero só que surjas em mim como a fé nos desesperados
para que eu possa levar uma gota de orvalho nesta terra amaldiçoada
que ficou sobre a minha carne como uma nódoa do passado.
Eu deixarei... tu irás e encostarás a tua face em outra face
teus dedos enlaçarão outros dedos e tu desabrocharás para a madrugada.
Mas tu não saberás que quem te colheu fui eu, porque eu fui o grande íntimo da noite
porque eu encostei minha face na face da noite e ouvi a tua fala amorosa
porque meus dedos enlaçaram os dedos da névoa suspensos no espaço
e eu trouxe até mim a misteriosa essência do teu abandono desordenado.
Eu ficarei só como os veleiros nos portos silenciosos
mas eu te possuirei mais que ninguém porque poderei partir
e todas as lamentações do mar, do vento, do céu, das aves, das estrelas
serão a tua voz presente, a tua voz ausente, a tua voz serenizada.


Vinicius de Moraes

[Vinicius de Moraes]

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