18.10.09

Enrique Vila-Matas (Uma lésbica delambida)








(Uma lésbica delambida...)






Uma tarde de inverno, nas águas-furtadas, enquanto escrevia, pareceu-me que Elena Villena, um dos personagens de La asesina ilustrada, estava atrás de mim e ditava-me o que eu devia dizer sobre ela.

“Não sou lésbica”, ouvi-a dizer nitidamente.

Voltei-me e não a vi, mas dava a impressão de que acabava de se esfumar uma décima de segundo antes.

“Pois agora passas a ser lésbica o tempo todo”, disse-lhe.

Não se ouviu resposta.

Agradou-me saber que tinha autoridade suficiente para evitar a rebelião dos meus personagens, saber que não podia nem devia passar-se comigo o que acontecia a Unamuno em Niebla e que no colégio tantas vezes nos tinham contado.

E o que mais me agradava por ser escritor era a liberdade que alcançava na solidão das minhas águas-furtadas.

Uma liberdade bem alheia ao patriarcal e autoritário mundo familiar e político que deixara para trás em Barcelona.

Não me tinha convertido em escritor e num homem livre em Paris para que viesse uma delambida, ao fim e ao cabo inventada por mim, estragar-me tudo com os seus caprichos e ordens.



- ENRIQUE VILA-MATAS, Paris nunca se acaba, 58.


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