27.2.07

Um verso (30)






Um verso de Sabines
(e com este vão dois):




“Não me ponhas o amor nas mãos como um pássaro morto”.
.

23.2.07

Yannis Ritsos (Explicação necessária)

Punta del Este
Uruguay
(Foto: Milka)




EXPLICAÇÃO NECESSÁRIA



Há certos versos - às vezes poemas inteiros -
que eu próprio não sei o que querem dizer. O que ignoro
retém-me ainda. E tu, tu tens razão em interrogar. Não interrogues.
Já te disse que não sei.
Duas luzes paralelas
vindo do mesmo centro. O ruído da água
que cai, no inverno, da goteira a transbordar
ou o ruído de uma gota de água caindo
de uma rosa no jardim, regado há pouco,
devagar, devagarinho, uma tarde de primavera,
como o soluço de um pássaro. Não sei que quer dizer este ruído; contudo aceito-o.
As coisas que sei explico-tas,
sem negligência.
Mas as outras também acrescentam a nossa vida.
Eu olhava
o seu joelho dobrado, como ela dormia,
levantando o lençol -
não era apenas amor. Este ângulo
era o cume da ternura, e o cheiro
do lençol, a lavado e a primavera, completava
este inexplicável, que eu procurei,
em vão ainda, explicar-te.



Yannis Ritsos
(1909-1990)

(Trad. Eugénio de Andrade)


Antes, aqui: O sentido da simplicidade

Manuel Bandeira (Irene no céu)





IRENE NO CÉU





Irene preta
Irene boa
Irene sempre de bom humor.



Imagino Irene entrando no céu:
Licença, meu branco!
E São Pedro bonachão:
Entra, Irene. Você não precisa pedir licença.



Manuel Bandeira

Jorge de Aguiar (Contra as molheres)






CONTRA AS MOLHERES





Esforça-te meu coraçom,
não te mates, se quiseres,
lembra-te que sam molheres.



Lembra-te qu’é por naçer
nenhûa que nam errasse
lembrete que seu prazer,
por bondade e mereçer,
nam vi que dele gostasse,
pois nam te des a paixam,
toma prazer se poderes,
lembra-te que sam molheres.



Descansa, triste, descansa,
que seus males sam vingãças,
tuas lagrimas amansa,
leix’as suas esperanças.
Ca pois naçem sem rezã,
nunca por ella lhesperes;
lembra-te que sam molheres.



Tuas mui grãdes firmezas,
tuas grandes perdições
suas desleais nações
causaram tuas tristezas.
Pois nã te mates em vão,
que quanto mais as quiseres,
veras que sam molheres.



Que te presta padeçer,
que taproveita chorar,
pois nunc’outras ham de ser,
nem sam nunca de mudar?
Deix’as com sua naçam,
seu bem nunca lho esperes;
lembra-te que sam molheres.



Não te mates cruamente
por que fez ta grande errada,
que quem de si se nam sente,
por ti nam lhe dará nada.
Vive lançando pregam
por hu fores e vieres,
que sam molheres, molheres.


Cabo

Espanha foi já perdida
por Letabla hûa vez,
e a Troia destroida
por males qu’Elena fez.
Desabafa, coraçam,
vive, nam te desesperes,
que quem fez pecar Adam
foi a mãi destas molheres.



Jorge d’Aguiar

(Cancioneiro Geral, II, 281)


Fonte: Multiculturas


21.2.07

Paul Valéry (Verso e prosa)






Não há que pôr em verso ideias que a prosa suporte.
.
.
.
.
Paul Valéry
.
.

Coitado do Jorge (31)







SMS-1


Não quer dar uma volta pelos arredores?
Não é sexo…






SMS-2


... Em princípio.



.


Al Berto (Uma paixão)








UMA PAIXÃO




Visita-me enquanto não envelheço
toma estas palavras cheias de medo e surpreende-me
com teu rosto de Modigliani suicidado



tenho uma varanda ampla cheia de malvas
e o marulhar das noites povoadas de peixes voadores
vem



ver-me antes que a bruma contamine os alicerces
as pedras nacaradas deste vulcão a lava do desejo
subindo à boca sulfurosa dos espelhos
vem



antes que desperte em mim o grito
de alguma terna Jeanne Hébuterne a paixão
derrama-se quando tua ausência se prende às veias
prontas a esvaziarem-se do rubro ouro
perco-te no sono das marítimas paisagens
estas feridas de barro e quartzo
os olhos escancarados para a infindável água
vem



com teu sabor de açúcar queimado em redor da noite
sonhar perto do coração que não sabe como tocar-te



Al Berto



16.2.07

Edgar Morin (A verdade na alteridade)





Nesse momento, projectamos sobre outrem essa necessidade de amor, fixamo-la, endurecemo-la e ignoramos o outro que se tornou na nossa imagem, no nosso totem.

Ignoramo-lo, crendo adorá-lo.

Aí está, na verdade, uma das tragédias do amor, a incompreensão de si mesmo e do outro.

Mas a beleza do amor é a interpenetração da verdade do outro em si e da de si no outro, é encontrar a sua verdade na alteridade.



- EDGAR MORIN, Amor, poesia e sabedoria, Lisboa (Piaget), 1999, p. 34.
.

12.2.07

Aquilino Ribeiro (O dia começa)





(O dia começa…)





Emborcado sobre o mundo, o céu reluzia como uma redoma.
Desvendam-se hortas e quintais.
Pelos oiteiros, os vagalhões de sombras corriam que nem reses bravas.
Ainda a estrela da manhã pestanejava, mas trémula e apagadiça como pálpebra de menino com sono.
Para a banda das Antas, havia um estendedoiro de vermelho, a tal ‘cabra esfolada’ de que rezavam os antigos, a prenunciar o bom tempo.
As matas, à traseira das lágeas, lembravam uma parede negra, a suster a noite para a banda de lá.
Mas com endireitas no vale, os olhos já iam mais longe pelo espaço que o galope de um bom garrano.
Enxergava-se, em baixo, o pano caiado da igreja, e, reparando bem, o macanjo do galo lá no coruto da torre, de crista para o nascente, à espera de salvar ao Sol como um galo verdadeiro.
Cantava já para os soutos a melra, que é uma passara que pega a cantar logo ao depois do rouxinol.
Dali a pedaço, o cuco, as rolas, a popa e a milheira cantariam, cantariam todos diante da rosa do sol melhor que os senhores padres o tantum ergo.



- AQUILINO RIBEIRO, Terras do Demo, ed. 1963, p.150.

.

Jorge de Sena (Poema manuscrito)




POEMA MANUSCRITO NAS FOLHAS BRANCAS DE UM LIVRO E LÁ ESQUECIDO




Não teimes, não insistas, não repitas,
mas vive como quem, teimando, insiste,
e, porque insiste, como que repete.
Esse das sombras o silêncio fluido
escoando-se por ti quando não passas,
parado que ouves, não mais é que o tempo
de hoje em que vives só alheias vidas,
de ti alheadas qual de ti vividas.


Por outro tempo te criaste impuro,
difuso e firme, no clamor de versos
que os tempos de hoje reconstroem como
delidas cartas um fogacho acendem.
Outro que seja, é teu, pois o escutaste
na dor de apenas ser, na dor de ouvir
quão desatentos menos homens são
os homens todos. Teu, sem que teu seja,
que destes e dos outros se fará
serena ciência de possuírem tudo
o que juntares para ser roubado,
quando, parado no silêncio fluido,
se escoava nele o próprio estar na vida,
atento como estavas, poeta como eras
daquele ser não-sendo que eram todos
em ti, dentro de ti, à tua volta.



JORGE DE SENA

Peregrinatio ad loca infecta

(1969)





Mario Benedetti (Sindrome)





SÍNDROME


Todavía tengo casi todos mis dientes
casi todos mis cabellos y poquísimas canas
puedo hacer y deshacer el amor
trepar una escalera de dos en dos
y correr cuarenta metros detrás del ómnibus
o sea que no debería sentirme viejo
pero el grave problema es que antes
no me fijaba en estos detalles.



Mario Benedetti






Tenho ainda os dentes quase todos
o cabelo também e pouquíssimas cãs
posso fazer amor e desfazer
subir degraus dois a dois
e correr quarenta metros atrás do eléctrico
Quer dizer, não devia sentir-me velho
o problema é que dantes
não reparava nestes detalhes.


(Trad. A.M.)




8.2.07

Corpo presente (31)






MEMENTO-2



Lembra-te sempre:
Podes errar vinte e cinco vezes.
Mas não vinte e seis.

.

Jaime Sabines (Sombra...)





SOMBRA, NO SÉ, LA SOMBRA
herida que me habita,
el eco.
(Soy el eco del grito que sería.)
Estatua de la luz hecha pedazos,
desmoronada en mí;
en mí la mía,
la soledad que invade paso a paso
mi voz, y lo que quiero, y lo que haría.
Éste que soy a veces,
sangre distinta,
misterio ajeno dentro de mi vida.
Éste que fui, prestado
a la eternidad,
cuando nací moría.
Surgió, surgí dentro del sol
al efímero viento
en que amanece el dia.
Hombre. No sé. Sombra de Dios
perdida.
Sobre el tiempo, sin Dios,
sombra, su sombra todavía.
Ciega, sin ojos, ciega,
- no busca a nadie,
espera -
camina.



Jaime Sabines
.

5.2.07

Paul Valéry (Ambíguo)





(Ambíguo...)




A ambiguidade é o domínio próprio da poesia.
Todo o verso é equívoco, plurívoco - como a sua estrutura indica, som + sentido.




Paul Valéry



Ferreira Gullar (Meu pai)






MEU PAI




meu pai foi
ao Rio se tratar de
um câncer (que
o mataria) mas
perdeu os óculos
na viagem


quando lhe levei
os óculos novos
comprados na Ótica
Fluminense ele
examinou o estojo com
o nome da loja dobrou
a nota de compra guardou-a
no bolso e falou:
quero ver
agora qual é o
sacana que vai dizer
que eu nunca estive
no Rio de Janeiro




FERREIRA GULLAR, Muitas Vozes (1999)








1.2.07

Um verso (29)











Um verso de Al Berto
( e com este já vão três):









“Amanheço dolorosamente, escrevo aquilo que posso”.
.

Fernando Assis Pacheco (Rua da Rosa, Lisboa)











RUA DA ROSA, LISBOA: O POMBO








Se o galo gala o pombo pomba? este pombava
ao sol das três da tarde lisboeta num passeio da Rua da Rosa
senhor de si não digo nem arrogante mas com alguns direitos v g do apetite
pombava enquanto carros subiam em segunda aí está cauteloso
o peito inflado as penas do rabo num leque amorável sendo
nele tudo isto «a procura de Deus derramado na urbe» a vinte e dois anos e meio
do fim do mundo
ó futurólogos que me não largais


preciso para o voyeur: pombava e dançava e nos intervalos
céleres da dança pombava ainda apesar de tudo obsequioso
com a fêmea não fosse ela sôbolos pneus que rodam
rua acima ficar-se como a amiga de Ignacio Morel (in Ramón J. Sender)


igual a mim quando pombo ia pombando este pois que se trata
de a buscar sempre mesmo repetida
de uma geração a outra aquilo que é soberbo o amor a novidade



Fernando Assis Pacheco (*)




(*) Despedida do dito, no dia em que o mesmo
faria 70 anos.



Testemunhas: Masson / F.J.Viegas (7 postes, ao todo, e várias remissões) / F.Venâncio

.