15.1.07

Cristóvão de Aguiar (Os dedos calmantes da ausência)





Os dedos calmantes da ausência demoraram-se, nessa noite, em vir descer sobre os olhos pregados no tecto a sua cortina de penumbra.

Na taça transbordante dos meus ouvidos ecoavam, dolorosamente nítidas, as conversas que haviam enchido a tarde e a imaginação.

Ainda dei fé da estreloiçada da carroça do Ti Manuel Botelho, que, aos sábados, chegava da cidade tarde da noite.

A partir daí, porém, passaram as coisas e os sons a distanciar-se na névoa espapaçada do sono, pesado e saboroso, que principiava a pousar nas pálpebras estrenoitadas.

O macho escarvava agora muito longe, nitrindo de sonho e de desejo pela maquia de milho, no conchego da baia lastrada de palha nova.

Vagaram as desenfreadas correrias dos gatos em cima do telhado.

Acomodava-se o rezingar de ruindade do cão do vizinho.

E apagou-se, nos meus ouvidos, o último ruído que constrói o silêncio da noite velha — caí num buraco de sombra, e anulei-me.



- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, O fruto e o sonho, Epílogo, cap. III, princípio, da trilogia Raiz Comovida.
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