27.9.06
Corpo presente (28)
FIM
Diz-se de um amor:
Coitado,
estava em processo de recuperação.
Não sobreviveu ao tratamento.
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25.9.06
Cristóvão de Aguiar (Quase da altura da nossa igreja)
Quase da altura da torre da nossa Igreja, a empena caiada de branco da casa do senhor Custódio Estrela - o Fralda Cagada por alcunha que lhe vinha do pai - tutelava, ao norte, o pátio rectangular do granel de vavó Luzia.
As paredes de fundo da adega, estrumeira e do chiqueiro, entestavam a poente no quintal dele - mais de três alqueires de terra lavradia e outros tantos de quinta de vinha, laranjeiras, anoneiras, bananeiras, goiabeiras e araçaleiros, protegida dos ventos alforrentos por abrigos de groselha e faia da terra cuidadosamente podados.
Ao declinar do dia, as toldas de milho emanchado eram castelos erguidos de maçarocas gradas, a folha enegrecida já pela morrinha e pelo mormaço do sol. Os marrecos, as galinhas, os perus e um bando de pombas rafeiras, davam urna nota gárrula de alegria domingueira àquele casarão solarengo.
- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, Vindima de fogo, cap. IV, abertura, da trilogia Raiz Comovida.
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Jaime Sabines (Eu não sei bem)
YO NO LO SÉ DE CIERTO
Yo no lo sé de cierto, pero supongo
que una mujer y un hombre
algún día se quieren,
se van quedando solos poco a poco,
algo en su corazón les dice que están solos,
solos sobre la tierra se penetran,
se van matando el uno al otro.
Todo se hace en silencio. Como
se hace la luz dentro del ojo.
El amor une cuerpos.
En silencio se van llenando el uno al otro.
Cualquier día despiertan, sobre brazos;
piensan entonces que lo saben todo.
Se ven desnudos y lo saben todo.
(Yo no lo sé de cierto. Lo supongo)
Jaime Sabines
Eu não sei bem, mas suponho
que um homem e uma mulher
algum dia se amam,
e vão ficando sós pouco a pouco,
algo no seu coração lhes diz que estão sós,
sós sobre a terra se penetram
e se vão matando um ao outro.
Tudo se faz em silêncio. Como
se faz a luz dentro do olho.
O amor une corpos.
Em silêncio vão-se enchendo um ao outro.
Um dia despertam, sobre braços, e
pensam então que sabem tudo.
Vêem-se nus e sabem tudo.
(Eu não sei bem. Suponho)
(Trad. A. M.)
22.9.06
Jorge de Sena (No país dos sacanas)
NO PAÍS DOS SACANAS
Que adianta dizer-se que é um país de sacanas?
Todos o são, mesmo os melhores, às suas horas,
e todos estão contentes de se saberem sacanas.
Não há mesmo melhor do que uma sacanice
para poder funcionar fraternalmente
a humidade de próstata ou das glândulas lacrimais,
para além das rivalidades, invejas e mesquinharias
em que tanto se dividem e afinal se irmanam.
Dizer-se que é de heróis e santos o país,
a ver se se convencem e puxam para cima as calças?
Para quê, se toda a gente sabe que só asnos,
ingénuos e sacaneados é que foram nisso?
Não, o melhor seria aguentar, fazendo que se ignora.
Mas claro que logo todos pensam que isto é o cúmulo da sacanice,
porque no país dos sacanas, ninguém pode entender
que a nobreza, a dignidade, a independência, a
justiça, a bondade, etc., etc., sejam
outra coisa que não patifaria de sacanas refinados
a um ponto que os mais não são capazes de atingir.
No país dos sacanas, ser sacana e meio?
Não, que toda a gente já é pelo menos dois.
Como ser-se então nesse país? Não ser-se?
Ser ou não ser, eis a questão, dir-se-ia.
Mas isso foi no teatro, e o gajo morreu na mesma.
Jorge de Sena
Antes, aqui: Conheço o sal / Uma pequenina luz
16.9.06
Um verso (19)
Herberto Hélder (O amor em visita)
O AMOR EM VISITA
Dai-me uma jovem mulher com sua harpa de sombra
e seu arbusto de sangue. Com ela
encantarei a noite.
Dai-me uma folha viva de erva, uma mulher.
Seus ombros beijarei, a pedra pequena
do sorriso de um momento.
Mulher quase incriada, mas com a gravidade
de dois seios, com o peso lúbrico e triste
da boca. Seus ombros beijarei.
Cantar? Longamente cantar,
Uma mulher com quem beber e morrer.
Quando fora se abrir o instinto da noite e uma ave
o atravessar trespassada por um grito marítimo
e o pão for invadido pelas ondas,
seu corpo arderá mansamente sob os meus olhos palpitantes
ele - imagem inacessível e casta de um certo pensamento
de alegria e de impudor.
Seu corpo arderá para mim
sobre um lençol mordido por flores com água.
Ah! em cada mulher existe uma morte silenciosa;
e enquanto o dorso imagina, sob nossos dedos,
os bordões da melodia,
a morte sobe pelos dedos, navega o sangue,
desfaz-se em embriaguez dentro do coração faminto.
- Ó cabra no vento e na urze, mulher nua sob
as mãos, mulher de ventre escarlate onde o sal põe o espírito,
mulher de pés no branco, transportadora
da morte e da alegria.
Dai-me uma mulher tão nova como a resina
e o cheiro da terra.
Com uma flecha em meu flanco, cantarei.
(…)
Herberto Hélder
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14.9.06
8.9.06
Carlos Drummond de Andrade (Amor)
O que é o amor?
O amor é assim:
Hoje beija-se,
amanhã não se beija,
Depois de amanhã é domingo
e segunda-feira
ninguém sabe o que será…
Carlos Drummond de Andrade
BIOGRAFIA
Carlos Drummond de Andrade nasceu a 31 de Outubro de 1902 em Minas Gerais, na cidade de Itabira.
Em 1918 mudou-se para Friburgo onde estudou num colégio interno, de onde acabou por ser expulso.
Começou a carreira de escritor como colaborador do Diário de Minas.
Em 1925 formou-se em Farmácia, por exigência da família, no entanto nunca chegou a exercer a profissão.
No mesmo ano, fundou, com Emílio Moura e outros escritores mineiros, o periódico modernista A Revista.
Deu aulas de História e Geografia em Itabira.
Em 1934 mudou-se para o Rio de Janeiro, onde assumiu o cargo de chefe de gabinete de Gustavo Capanema, Ministro da Educação e Saúde no governo Vargas. Durante esse período, colaborou, como jornalista literário, para vários periódicos, principalmente o Correio da Manhã.
Em 1945 abandonou o seu cargo público e tornou-se co-director do jornal de Luís Carlos Prestes. Mais tarde passou a trabalhar no então Serviço do Património Histórico e Artístico Nacional.
Aposentou-se em 1962.
Apesar de ter começado a escrever bastante cedo, publicando Alguma Poesia em 1930, só a partir de 1950 passou a dedicar-se quase exclusivamente à produção literária.
Publicou livros de poesia, contos, crónicas, Literatura infantil.
Dedicou-se ainda à tradução.
Carlos Drummond de Andrade morreu no Rio de Janeiro, em 1987.
Fonte (Bio): Um-buraco-na-sombra
Outros lugares: Sítio oficial (tudo+algo) / Um-buraco-na-sombra (28p. + Bio + Foto + linques) / Releituras (Bio + poemas e prosa / As Tormentas (99p. + Bio) / Memória viva (105p. + Bio e mais) / Vidas lusófonas (Bio + Poemas) / Jornal de Poesia (21p. + Críticas + e mais) / Colégio S. Francisco (Vida + 67 poemas) / Casa do Bruxo (134p. + Prosa + Bio) / Veja on-line (Bio + Entrevista + Imagens + Poemas + e mais) / Arlindo Correia (26p. eróticos) / Poesia-net (40 poemas, com variedades + Foto)
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4.9.06
Cristóvão de Aguiar (Recado)
(Recado)
Às golfadas de magma que o vulcão da memória foi expelindo em dias e noites de tragédia e terramoto dei o nome de Vindima de Fogo.
Uma ilha de palavras foi a pouco e pouco aflorando à superficie enegrecida das águas em fervedouro. Aqui está ela, já fria e apagada, com suas crateras tranquilas, cobertas de junça e bagacina, tão longe e diferente da erupção que lhe deu origem.
Que me perdoe a outra ilha, a ilha-mulher que recolhi à sombra do sangue no princípio do tempo e se estendeu para todo o sempre nos meus sonhos e pesadelos. É nela que vou mergulhando a pena e estas minhas raízes sem chão para lhe implorar uma gota de água e de frescura.
Ficou escrito que serei sempre um vagabundo interior, procurando a ilha-mulher nas coordenadas morrinhentas do meu corpo insulado. Entrego-te todavia este coágulo de sonho dia a dia estrangulado e fielmente reacendido. Toma-o em tuas mãos basálticas e, se sentires o rumor distante de uma erupção pretérita, empresta-lhe um pouco do teu fogo ainda não vindimado.
- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, Vindima de fogo, abertura, da trilogia Raiz Comovida.
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