27.7.06

Corpo presente (25)






ESTRELAS




1
Que é isso, no fundo dos teus olhos?
- São estrelas?



2
Quem olha muito as estrelas
fica com estrelas no lugar dos olhos.


3
Caminho de estrelas
(Sim, pode ser).
De ti.
Para ti.


4
Quem inventou o dia estrelado
fui eu.
E tu.


5
Há estrelas
mães e avós
de outras estrelas
- Não é?


6
O brilho das estrelas.
O piscar dos teus olhos.


7
Chuva de estrelas
- Lágrimas?
- Saudades.


8
Duas estrelas sorrindo
uma para a outra
- Qual delas brilha mais?


9
Uma e outra
e outra e outra…
- Enchem a vista
(e o coração).


10
Duas estrelas
- Um minuto.
- Um século.


11
Rio de estrelas
- Foz de amores.
- Mar de saudade.


12
Tecnicamente,
os teus olhos,
posso chamar-lhes constelação?


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25.7.06

Cristóvão de Aguiar (De novo a voz do Ti José Pascoal)





De novo a voz do Ti José Pascoal em mim ressuscitada acotovela-me os recantos iluminados da memória e vem guiar-me no labirinto desta escrita estendida nos refegos de uma madrugada cinzenta.

Estendo-lhe a minha voz fraterna e assim, voz na voz, rompemos juntos numa aventura que nos levará ao reino ignorado e deslumbrante onde os habitantes são palavras à espera da varinha mágica que as transfigure no pão e no vinho da nossa fome e da nossa sede.

Na Ribeira Grande, era de um home ir encomendando a alminha ao Criador, pois o que tinha de mais certo era seguir no endireito da terra dos pés juntos.

Esticava o pernil em mentes o diabo esfrega um olho.

Coitado de quem não tinha um chavo de seu pra mandar cantar um cego.

Era a modos que a petinga, todo o peixe la come.

Se acaso um pobretanas qualquer calhava a apanhar um mal ruim, desses que é logo preciso abrir o corpo com a faquinha dos doutores, não tinha outro remédio senão marchar de atestado de pobreza na mão pra a Misericórdia da Vila.

Uma dor de alma (…).



- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, A semente e a seiva, cap. XIII, abertura, da trilogia Raiz Comovida.

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23.7.06

Nuno Júdice (Aparição num dia de inverno)






APARIÇÃO NUM DIA DE INVERNO




Um dia, lendo este poema, lembrar-te-ás:
o amor falou através dele.
Ouvirás no seu ritmo
a voz que tantas vezes desejaste;
reconhecerás nos seus versos
o corpo que encheu a tua vida;
tocarás em cada uma das suas palavras
os dedos que te ensinaram a medir os dias
pelas suas contas de ternura.
E o tempo entrará por ti
como esse rio que alagou os campos do inverno.
Olharás à tua volta, vendo a desolação
de uma paisagem inundada.
Algures, porém, uma árvore antiga sobressai;
e os seus ramos verdes
dar-te-ão a esperança de uma nova primavera,
em que voltes a ouvir a voz
que o poema te trouxe
com os seus dedos de música.



Nuno Júdice
(imagem também daí)

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Fernando Assis Pacheco (Há um veneno em mim)






(VERSOS QUE O AUTOR
MANDOU DE NAMBUANGONGO AO EDITOR)





Há um veneno em mim que me envenena,
um rio que não corre, um arrepio,
há um silêncio aflito quando os ombros
se cobrem de suor pesado e frio.


Há um pavor colado na garganta,
e tiros junto à noite, e o desafio
(algures na escuridão) de alguma coisa
calando o fraco apelo que eu envio.


Há um papa que morre enquanto escrevo
estas linhas de angústia e solidão,
há o fogo da Breda, os olhos gastos.


Há a mulher que espera confiada
um pálido vazio aerograma;
e há meu coração posto de rastos.



Fernando Assis Pacheco

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22.7.06

Ângelo de Lima (Eu ontem vi-te)






EU ONTEM VI-TE...




Eu ontem vi-te...
Andava a luz
do teu olhar,
que me seduz,
a divagar
em torno de mim.
E então pedi-te,
não que me olhasses,
mas que afastasses,
um poucochinho,
do meu caminho,
um tal fulgor.
De medo, amor,
que me cegasse,
me deslumbrasse
fulgor assim.


Ângelo de Lima





Biografia
Nasceu no Porto em 1872, filho do poeta romântico Pedro de Lima.
Frequentou o Colégio Militar, em Lisboa, de onde foi expulso, e a Academia de Belas Artes do Porto.
Conspirador da revolução republicana de 31 de Janeiro, foi enviado, um pouco antes desta ocorrer, numa expedição militar a Moçambique entre 1891 e 1892 .
Após o seu regresso de África começou a manifestar os primeiros sintomas de loucura, que conduziram ao seu internamento, entre 1894 e 1898, no Hospital Conde Ferreira.
Foi nessa época director artístico de «A Geração Nova».
Continuando a sua actividade poética e artística, foi de novo internado em 1901, em Rilhafoles, onde permaneceu grande parte da sua vida.
Acolhido pela primeira geração modernista, a sua poesia foi revelada pela revista modernista “Orpheu”, que publicou pela primeira vez um conjunto significativo de poemas seus no 2.º número da revista.
Nesses poemas notavam-se já algumas das características mais marcantes da sua poesia, nomeadamente o carácter desviante da sua linguagem e o emprego de vocábulos novos, o que o aproximava da corrente simbolista e modernista.
Ângelo de Lima, nos seus momentos de lucidez, foi compondo poemas que vieram a lume em «Poesias Completas» 1971 .
São notáveis alguns dos seus sonetos.
Na sua obra há sinais precursores da escrita automática dos surrealistas.
Tão vaga era a sua poesia que algumas das suas composições não chegavam a exprimir fosse o que fosse de literal.
A sua linguagem poética parece reflectir a doença mental que o vitimou, e os seus versos, se por vezes dão a sensação de terem sido escritos no mais completo estado de alucinação, conseguem também ser extremamente lúcidos e bem construídos.
Ângelo de Lima faleceu em Lisboa em 1921, no Hospital de Rilhafoles.



Fonte (poema) / Mais poemas

Fonte (biografia) / Outros poemas

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18.7.06

Um verso (17)






Um verso de NSQ
(... não sei quem):





"Nenhum dos meus caminhos guarda a tua sombra".

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Maria Teresa Horta (Masturbação)






MASTURBAÇÃO




Eis o centro do corpo
o nosso centro
onde os dedos escorregam devagar
e logo tornam onde nesse
centro
os dedos esfregam - correm
e voltam sem cessar


e então são os meus
já os teus dedos
e são meus dedos
já a tua boca
que vai sorvendo os lábios
dessa boca
que manipulo - conduzo
pensando em tua boca


Ardência funda
planta em movimento
que trepa e fende fundidas
já no tempo
calando o grito nos pulmões da tarde


E todo o corpo
é esse movimento
que trepa e fende fundidas
já no tempo
calando o grito nos pulmões da tarde


E todo o corpo
é esse movimento
em torno
em volta
no centro desses lábios
que a febre toma
engrossa
e vai cedendo a pouco e pouco
nos dedos e na palma



Maria Teresa Horta


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16.7.06

Alexandre Herculano (Porque não adormeço eu)




(Lido aos 18 anos, jamais esquecido…)




Porque não adormeço eu, como o rude barqueiro, ao murmúrio das vagas sonolentas, ao sussurro da brisa do norte?

Porque mulher bárbara não entendeu o que valia o amor de Eurico; porque velho orgulhoso e avaro sabia mais um nome de avós do que eu, e porque nos seus cofres havia mais alguns punhados de ouro do que nos meus.

As mãos imbeles de uma donzela e de um velho esmagaram e despedaçaram o coração de um homem, como os caçadores cobardes assassinam no fojo o leão indomável e generoso.

E, todavia, este coração sentia a voz da consciência pregoar-lhe largos destinos!

Porque não emudeceu essa voz quando do pórtico do templo lancei ao mundo a maldição da despedida?

Porque me lembra com saudade, aqui, a estas horas, o tempo das minhas esperanças?



ALEXANDRE HERCULANO, Eurico, o Presbítero, VI, 2.

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Coitado do Jorge (17)







AGRICULTURA BIOLÓGICA





Campo sáfaro, as costas daquela ingrata…
Semeio lá milhares de beijos.
Colheita? Zero.

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11.7.06

Paul Eluard (Certitude)






CERTITUDE



Si je te parle c'est pour mieux t'entendre
Si je t'entends je suis sûr de te comprendre


Si tu souris c'est pour mieux m'envahir
Si tu souris je vois le monde entier


Si je t'étreins c'est pour me continuer
Si nous vivons tout sera à plaisir


Si je te quitte nous nous souviendrons
En te quittant nous nous retrouverons



Paul Eluard

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Corpo presente (24)






DOIS



Precisa dois
para empurrar
a roda do tempo…
Para a frente.
E para trás.

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7.7.06

Cristóvão de Aguiar (O dia de cozedura de vavó Luzia)





(E vai uma...)



O dia de cozedura de vavó Luzia calhava sempre à sexta-feira.

O chão da cozinha, revestido de tijolos vermelhos e que nos outros dias da semana se podia varrer com a língua, ficava, nesse dia, num verdadeiro esparrame: os molhos de lenha de ramada e de tremoceiros atados com um baraço de tabuga e emedados ao pé do talhão da água, os alguidares de barro da Vila em cima da amassaria com a massa levedando que era um louvar a Deus - ela nunca se esquecia de a benzer e encomendar no fim da amassadura, ao acrescentar-lhe o fermento - e vavó, lenço pela testa e amarrado atrás na nuca, a cova-do-ladrão, numa dobadoira viva, as faces tintas do lume, ora tendendo o pão já lêvedo, ora botando lenha no forno para o esquentar.

Todas as manhãs que Nosso Senhor botava ao mundo, no meu caminho para a escola do senhor professor Anacleto, o Caniço, por ser acrescentado em tamanho e escanzelado de carnes, era certo como a Igreja que tinha paragem obrigatória na tenda do meu avô José dos Reis, à ilharga da casa.

Pedia-lhe a bênçao, vavô subença, Deus te abençoe, meu rico home, e, enquanto o dianho esfregava um olho e coçava o rabo pelado, dava meia volta pelas traseiras e ia ter à cozinha, onde era milagre não se encontrar vavó Luzia na lida das panelas, da lavagem ou do pão.



- CRISTÓVÃO DE AGUIAR, A semente e a seiva, cap. I, abertura, da trilogia Raiz Comovida.

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António Ramos Rosa (Grito claro)






GRITO CLARO



De escadas insubmissas
de fechaduras alerta
de chaves submersas
e roucos subterrâneos
onde a esperança enlouqueceu
de notas dissonantes
dum grito de loucura
de toda a matéria escura
sufocada e contraída
nasce o grito claro



ANTÓNIO RAMOS ROSA
Viagem Através duma Nebulosa
(1960)

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Corpo presente (23)






SE




Ah! se tu soubesses
o que eu não te digo…


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3.7.06

Bernardim Ribeiro (Écloga de Jano e Franco)













ÉCLOGA DE JANO E FRANCO
(Excerto)






Dizem que havia um pastor
antre Tejo e Odiana,
que era perdido de amor
per üa moça Joana.
Joana patas guardava
pela ribeira do Tejo,
seu pai acerca morava
e o pastor, de Alentejo
era, e Jano se chamava.


Quando as fomes grandes foram,
que Alentejo foi perdido,
da aldeia que chamam o Terrão
foi este pastor fugido.
Levava um pouco de gado,
que lhe ficou doutro muito
que lhe morreu de cansado;
que Alentejo era enxuito
d'água e mui seco de prado.


Toda terra foi perdida;
no campo do Tejo só
achava o gado guarida:
ver Alentejo era um dó!
E Jano, pera salvar
o gado que lhe ficou,
foi esta terra buscar;
e, se um cuidado levou,
outro foi ele lá achar.


O dia que ali chegou
com seu gado e com seu fato,
com tudo se agasalhou
em üa bicada de um mato.
E levando-o a pascer,
o outro dia, à ribeira,
Joana acertou de ir ver,
que se andava pela beira
do Tejo a flores colher.


Vestido branco trazia,
um pouco afrontada andava;
fermosa bem parecia
aos olhos de quem na olhava.
Jano, em vendo-a, foi pasmado;
mas, por ver que ela fazia,
escondeu-se antre um prado:
Joana flores colhia,
Jano colhia cuidado.
(…)


Bernardim Ribeiro


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2.7.06

Coitado do Jorge (16)






FILOSOFIA DA ALCOVA





Incrível, ela passou da queca mensal à semanal…
Sem passar por quinzenal.
Como classificar o fenómeno?
Salto qualitativo?
Corte epistemológico?


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1.7.06

Fernando Assis Pacheco (Chula das fogueiras)






CHULA DAS FOGUEIRAS




Passarei por ti na Visconde da Luz
Passarás por mim na Alexandre Herculano
passaremos um pelo outro distraídos e parvos
na Rua Olímpio Nicolau Rui Femandes


tu fanê eu gato-pingando no meu casibeque velho
vasculhando a Sereia mas sem nunca nos vermos


o teu suspiro sacudirá as águas
acenderei um cigarro pensando que estou triste


é notável tudo isto o amor do amor
em rosa e oiro. E não há cura



Fernando Assis Pacheco

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