6.3.06
Gonçalo Cadilhe (Da casa vejo colinas verdes)
Da casa vejo colinas verdes que são talvez irlandesas.
Passam nuvens carregadas e escuras que só uma latitude escandinava podia provocar.
Depois, volta o bom tempo e a atmosfera enche-se de uma luminosidade cristalina que me recorda o golfo de Portofino na Primavera que lá vivi.
O sol levanta-se no mar, desce para trás de uma montanha.
As nêsperas já amadurecem em fins de Janeiro, as tardes em Fevereiro permitem uma “t-shirt” e pouco mais.
A temperatura do mar convida a um mergulho espartano, flutuo no Atlântico translúcido como um galeão à deriva numa enseada equatorial.
Estou no meu país mas sinto-me deslocado e acolhido por um hemisfério de coordenadas mediterrânicas.
Compro produtos típicos desta terra, vegetais, ervas, frutas e legumes, que no continente nem existem.
As beringelas, o manjericão, os tomates, o tomilho, possuem a intensidade de sabores e aromas que só o sol do sul de Itália costuma permitir.
Também as mulheres transportam o mesmo tipo de beleza luminosa e entrecruzada que só tinha encontrado, até hoje, nesse sul de Itália colonizado por piratas nórdicos.
Ando leve e atordoado como um melro.
Troco as refeições, esqueço-me de comer, esqueço-me do café, esqueço-me do sono.
O trabalho engole as horas, a escrita salta fora com naturalidade.
Passo um pedaço de Inverno na Madeira e parece-me mais fácil ser feliz aqui.
Talvez o seja, para quem esteja só de passagem.
Talvez viver toda uma vida fechado entre mar aberto e montanha madrasta exija um preço a pagar.
A insularidade é uma travessa de cerejas, há que saber escolher as maduras.
GONÇALO CADILHE, O Inverno na Madeira
- Expresso/Única, 4-Março-2006
Nota:
A isto chama-se: escrever bem.
Tão bem que são aqui inegáveis a lembrança, o eco, a música, o ritmo, o bom gosto de... Raul Brandão (As Ilhas Encantadas? Os Pescadores?).
De quem se dizia, há pouco, não por acaso, que Vergílio Ferreira dizia que foi quem melhor escreveu português no séc. XX.
O que não é dizer pouco, a lembrar que nesse século escreveram Aquilino e Cardoso Pires, por exemplo, entre outros mais.
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