29.9.08

Maria do Rosário Pedreira (Quando eu morrer)









QUANDO EU MORRER





Quando eu morrer, não digas a ninguém que foi por ti.
Cobre o meu corpo frio com um desses lençóis
que alagámos de beijos quando eram outras horas
nos relógios do mundo e não havia ainda quem soubesse
de nós; e leva-o depois para junto do mar, onde possa
ser apenas mais um poema - como esses que eu escrevia
assim que a madrugada se encostava aos vidros e eu
tinha medo de me deitar só com a tua sombra. Deixa


que nos meus braços pousem então as aves ( que , como eu,
trazem entre as penas a saudade de um verão carregado
de paixões). E planta à minha volta uma fiada de rosas
brancas que chamem pelas abelhas, e um cordão de árvores
que perfurem a noite - porque a morte deve ser clara
como o sal na baínha das ondas, e a cegueira sempre
me assustou ( e eu já ceguei de amor, mas não contes
a ninguém que foi por ti). Quando eu morrer, deixa-me


a ver o mar do alto de um rochedo e não chores, nem
toques com os teus lábios a minha boca fria. E promete-me
que rasgas os meus versos em pedaços tão pequenos
como pequenos foram sempre os meus ódios; e que depois
os lanças na solidão de um arquipélago e partes sem olhar
para trás nenhuma vez: se alguém os vir de longe brilhando
na poeira, cuidará que são flores que o vento despiu, estrelas
que se escaparam das trevas, pingos de luz, lágrimas de sol,
ou penas de um anjo que perdeu as asas por amor.





MARIA DO ROSÁRIO PEDREIRA
O Canto do Vento nos Ciprestes










Andrés Eloy Blanco (Cuántas estrellas tiene el cielo?)









CUÁNTAS ESTRELLAS TIENE EL CIELO?







La última noche que pasamos juntos,
lo preguntó:
-Cuántas estrellas tiene el cielo?
-Trescientas cincuenta mil.
-A que no?
-A que sí?



-Cállate. Esta noche
no quiero que preguntes esas cosas.
Esta noche, si quieres preguntar
cuántas estrellas tiene el cielo,
o cualquier otra cosa,
pregunta algo así como: me quieres?
tienes frío? quién dice que tiene hambre?



Esta noche, pregunta algo que sea
contestado en el mundo sin palabras.
Interroga con toda tu sangre
algo en que toda la vida del mundo
esté preguntando,
algo así como: quién llora?
hace falta algo?



Y verás como todo hace falta
y sabrás cuántas estrellas tiene el cielo
cuando sepas que el cielo tiene una sola estrella
para cada momento,
porque con una que se pierda
dará un paso de sombra la luz del Universo.




Andrés Eloy Blanco


.



26.9.08

Raul Brandão (Foram os pobres)





(Foram os pobres…)



E é da gente ignorada que levo as maiores impressões da existência.

Foram os pobres que me obrigaram a pensar - foi a série de figuras toscas que encontrei na estrada, duma realidade tão grande que nunca consegui afastá-las da minha alma.

Ainda hoje desfilam diante de mim os mortos e os vivos…

Não posso esquecê-los: parece que todos eles esperam alguma coisa de mim.



- RAUL BRANDÃO, Memórias, III, Balanço à vida.


.

Pedro Mexia (Paráfrase)








PARÁFRASE






Este poema começa por te comparar
com as constelações,
com os seus nomes mágicos
e desenhos precisos,
e depois
um jogo de palavras indica
que sem ti a astronomia
é uma ciência
infeliz.
Em seguida, duas metáforas
introduzem o tema da luz
e dos contrastes
petrarquistas que existem
na mulher amada,
no refúgio triste da imaginação.



A segunda estrofe sugere
que a diversidade de seres vivos
prova a existência
de Deus
e a tua, ao mesmo tempo
que toma um por um
os atributos
que participam da tua natureza
e do espaço criador
do teu silêncio.



Uma hipérbole, finalmente,
diz que me fazes muita falta.




PEDRO MEXIA
Avalanche

.
.

23.9.08

Olhar (33)







.
.
.

Paredes de Coura
.
.

- Um dia (fim) e outro (princípio)
.
.
.

Um verso (46)








Um verso do Assis
(ele há tantos):







A solidão é uma espinha
insidiosamente alojada na garganta.





Fernando Assis Pacheco

.

.

.

21.9.08

André Gide (Para adorar o que queimei)











Livros-1 (L.A.Cuenca)

Livros-2 (E.Andrade)

Livros-3 (M.Quintana)

Livros-4 (A.Gide)









PARA ADORAR O QUE QUEIMEI







Há livros que lemos sentados num banquinho
diante de uma carteira escolar.


Há livros que lemos andando
(e também por causa do formato);


Uns são para as florestas e outros para outros campos,
Et nobiscum rusticantur, diz Cícero.


Alguns há que li na diligência;
Outros, deitado no fundo dos celeiros de feno.


Há os para fazer crer que temos uma alma;
Outros, para desesperá-la.


Há os em que se prova a existência de Deus;
Outros, em que não se consegue fazê-lo.


Há livros que não é possível admitir
senão em bibliotecas particulares.


Há os que receberam elogios
de muitos críticos autorizados.


Alguns há em que só se trata de apicultura,
que certas pessoas acham algo especializados;
noutros fala-se tanto da natureza
que não vale mais a pena passear depois.


Outros há que os homens sensatos desprezam
mas que excitam as criancinhas.

A alguns chamam antologias
e neles incluíram tudo o que de melhor se disse
a propósito de tudo.


Há os que desejariam fazer-nos amar a vida;
outros depois dos quais o autor suicidou-se.


Alguns semeiam o ódio
e colhem o que semearam.


Alguns, quando os lemos, parecem brilhar,
carregados de êxtase, deliciosos de humildade.
Há os que amamos como irmãos
mais puros e que viveram melhor do que nós.


E os há impressos em caracteres extraordinários
e que não compreendemos,
mesmo depois de tê-los estudado muito.


Ah! quando teremos queimado todos os livros, Nathanael!


Alguns há que não valem um vintém furado,
outros alcançam preços consideráveis.


Alguns falam de reis e de rainhas
e outros de gente muito pobre.


Alguns há cujas palavras são mais suaves
do que o ruído das folhas ao meio-dia.


Foi um livro que João comeu em Patmos
como um rato; mas eu prefiro as framboesas.
Isso encheu-lhe as entranhas de amargura
e ele teve depois muitas visões.


Ah! quando teremos queimado todos os livros, Nathanael!






André Gide





Outras: Wikipedia / Wikiquote / Nobel Lit.1947 / Bio

.

.

Ver (3)








Primeira:

Pico v. Faial

(Açores)

.

.

Juan Luis Panero (Pierre Drieu La Rochelle)






PIERRE DRIEU LA ROCHELLE (*)
DIVAGA FRENTE A SU MUERTE



Al final pienso que tenía razón
—todo el absurdo tinglado del poder,
el cuchillo implacable de la inteligencia,
las sórdidas, políticas palabras,
los arañados proyectos imposibles—
sí, tenía razón ese día. Me acuerdo bien
cuando pensé, echado junto a ella,
que lo único real era una buena puta,
una piel cálida, unos labios silenciosos, unas manos expertas
en aquel burdel, cerca de Neuilly, al amanecer.
Por eso, porque creo que tenía razón, soy más culpable
—libros, declaraciones, ideas, lealtades,
el secreto de todo, el revés de la nada—
cuánto tiempo perdido para llegar a esto,
para recordar, ya sin solución, sus largos muslos,
el sabor espeso de su boca, los rozados pezones.
Llegaba una luz gris sobre la cama,
sobre su culo memorable, inmóvil,
sí, tenía razón, aquella puta
cuyo nombre nunca supe o tal vez he olvidado,
el humo de un cigarrillo, eso es todo, yo tenía razón,
y si non la tenía, qué importa ahora?

Juan Luis Panero




PIERRE DRIEU LA ROCHELLE
DIVAGA PERANTE A MORTE


No fim, penso que tinha razão
- todo o absurdo artifício do poder,
a lâmina implacável da inteligência,
as sórdidas, políticas palavras,
os arranhados projectos impossíveis –
sim, tinha razão nesse dia. Lembro-me bem
quando pensei, deitado junto dela,
que a única coisa real é uma boa puta,
uma pele cálida, lábios silenciosos, mãos sábias,
naquele bordel, ao pé de Neuilly, ao amanhecer.
Por isso, porque acho que tinha razão, sou mais culpado
- livros, declarações, ideias, lealdades,
o segredo de tudo, o avesso do nada –
quanto tempo perdido para chegar a isto,
para recordar, sem solução já, os seus longos músculos,
o sabor espesso da boca, os mamilos rosados.
Caía uma luz cinzenta sobre a cama,
naquele cu memorável, imóvel,
sim, tinha razão, essa puta
de quem nunca soube o nome ou então esqueci,
o fumo de um cigarro, isso é tudo, eu tinha razão,
e se não tinha, que importa agora?


(Trad. A.M.)



(*) Wikipedia (Pierre Drieu La Rochelle)

.

18.9.08

Miguel Torga (A um negrilho)












A UM NEGRILHO






Na terra onde nasci há um só poeta
Os meus versos são folhas dos seus ramos.
Quando chego de longe e conversamos,
É ele que me revela o mundo visitado.
Desce a noite do céu, ergue-se a madrugada,
E a luz do sol aceso ou apagado
É nos seus olhos que se vê pousada.




Esse poeta és tu, mestre da inquietação
Serena!
Tu, imortal avena
Que harmonizas o vento e adormeces o imenso
Redil de estrelas ao luar maninho.
Tu, gigante a sonhar, bosque suspenso
Onde os pássaros e o tempo fazem ninho!





Miguel Torga


.

.

.

15.9.08

Ferreira Gullar (Barulho)






BARULHO



Todo poema é feito de ar
apenas:
a mão do poeta
não rasga a madeira
não fere
o metal
a pedra
não tinge de azul
os dedos
quando escreve manhã
ou brisa
ou blusa
de mulher.
.

O poema
é sem matéria palpável
tudo
o que há nele
é barulho
quando rumoreja
ao sopro da leitura.


Ferreira Gullar




José Fernandes Fafe (Metafísica do encontro)













METAFÍSICA DO ENCONTRO








Se não tivesse sido a esquadra americana, que fez esgotar a cerveja na cidade, eu não teria ido à outra banda beber um fino… Não nos teríamos encontrado, por conseguinte.
Mas, também, se o teu isqueiro não se tem avariado e a tua voz não fosse - até na adversidade! - manselinha (- “Por favor…” Nas comissuras dos lábios, tanto destino cruzado! - “Muito obrigado, Senhor…”) sequer teria reparado em ti…
Qual é a explicação da tua voz? Herdaste-a de teus pais? De teus avós? De que Senhora Aónia és descendente?
“Poeta desempregado…”. espalham para aí os teus. Mas se não fosse um poeta… quem te houvera de amar, ó minha feia? E empregado… como é que eu poderia, às quatro horas da tarde - numa quinta-feira - estar, digam-me lá, na outra banda?
Os marujos… e se eles eram cupidos… (crescidos, americanos, vestidos à marinheira…) que nos feriram com uma seta, teleguiada, certeira…

.

Foram as manobras da NATO…
Foi um isqueiro empanado…
Foram as voltas do Mundo…
Foi uma loucura (dizem os amigos)… que engendrou - cegamente - o nosso encontro em Cacilhas.
Coisa tão bela e absurda como o aparecimento do Homem!



José Fernandes Fafe


.

.

.

10.9.08

António Ramos Rosa (De súbito dentro)












DE SÚBITO DENTRO







De súbito entrei. Era
uma música
de um barco imóvel no encanto
de ser toda a atmosfera, no descanso
da mais íntima sombra adormecido,
como na essência de um sonho.
Um âmbito sem nome, em total olvido,
o universo completo no jardim.
E a montanha em silêncio, a solidão de estrelas,
um dorso longínquo e sobre ele as ondas
caladas, majestosas.
Era a imortal maturidade de um só instante,
a verdadeira vida aqui, plena, revelada,
o gozo sem afã da formosura imensa,
toda a verdade presente e sem história,
música absoluta de humana divindade.




ANTÓNIO RAMOS ROSA
O Não e o Sim (1990)


.


.

8.9.08

Raul Brandão (Morria de remorsos)







(Morria de remorsos…)



Uma, duas, três vezes a Natureza me salvou.

Da última apelei para ela num desespero.

Não só a vinha que plantei me pagou generosamente em frutos, como me ensinou muitas coisas que ignorava.

Deste pedaço de terra, desta meia dúzia de campos se mantém o senhor José, a mulher, a filha e os moços - e eu próprio tiro o essencial para a vida.

Encostado a um muro velho, vi desfilar na minha frente jornaleiros e caseiros, figuras da realidade que se entranharam na minha alma para sempre.

Não foi o outro mundo das cidades que me interessou: ao contrário, pareceu-me sempre fantasmagórico.

O mundo que me impressionou foi este.

Eu felizmente sou um mero espectador da agitação lá de baixo e, quase, só do meu canto assisti ao desenrolar de toda a tragédia contemporânea: - queda do trono, revoluções, mortes, gritos…

Senão, morria de remorsos.

E isto não é uma frase: morria de remorsos se tivesse concorrido para a morte dum homem.



- RAUL BRANDÃO, Memórias, III, Balanço à vida.


.

Antonio Machado (Todo amor é fantasia)







Todo o amor é fantasia
- ele inventa o ano, o dia,
a hora e a melodia;
inventa o amante e, mais,
a amada. Não prova nada,
contra o amor, que a amada
não existisse nunca.



Antonio Machado

.

.

Original: Corte na Aldeia

.

.

Fontes: Poesi.as (204p) / A media voz (51p) / A media voz-2 (28p) / Los Poetas (bio+38p) / Abel Martin (bio+biblio+antologia)

.

5.9.08

Olhar (32)






.
.
.
Doiro
(by Nokia)
.
.
.

Mário Quintana (Invitation au voyage)






Livros-1 (L.A.Cuenca)

Livros-2 (E.Andrade)

Livros-3 (M.Quintana)







INVITATION AU VOYAGE






Se cada um de vós,
ó vós outros da televisão
- vós que viajais inertes
como defuntos num caixão –
se cada um de vós abrisse um livro de poemas…
faria uma verdadeira viagem…
Num livro de poemas se descobre de tudo,
de tudo mesmo!
- Inclusive o amor e outras novidades.



Mário Quintana


.

.

3.9.08

Mário-Henrique Leiria (A família)








A FAMÍLIA






Vamos à pesca
disse o pai
para os três filhos
vamos à pesca do esturjão
nada melhor do que pescar
para conservar
a união familiar
a mãe deu-lhe razão
e preparou
sem mais detença
um bom farnel
sopa de couves com feijão
para ir também
à pescaria do esturjão
e a mãe e o pai
e os três filhos
foram à pesca
do esturjão
todos atentos
satisfeitíssimos
que bom pescar
o esturjão!
que bom comer
o belo farnel
sopa de couves com feijão!
e foi então
que apanharam
um magnífico esturjão
que logo quiseram
ali fritar
mas enganaram-se na fritada
e zás fritaram o velho pai
apetitoso
muito melhor
mais saboroso
do que o esturjão



vamos para casa
disse o esturjão.



Mário-Henrique Leiria










Antes, aqui: Uma nêspera / Noivado

.

.

1.9.08

Álvaro Mutis (Amen)








AMÉN





Que te acoja la muerte
con todos tus sueños intactos.
Al retorno de una furiosa adolescencia,
al comienzo de las vacaciones que nunca te dieron,
te distinguirá la muerte con su primer aviso.
Te abrirá los ojos a sus grandes aguas,
te iniciará en su constante brisa de otro mundo.
La muerte se confundirá con tus sueños
y en ellos reconocerá los signos
que antaño fuera dejando,
como un cazador que a su regreso
reconoce sus marcas en la brecha.




Álvaro Mutis





Fontes: Club Cultura (sítio oficial) / Poesi.as (36p) / A media voz (17p)










Alberto Pimenta (Balada do f.p.-2)








BALADA DO FILHO DA PUTA – 2




II



o grande filho-da-puta
também em certos casos começa
por ser
um pequeno filho-da-puta,
e não há filho-da-puta,
por pequeno que seja,
que não possa
vir a ser
um grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.


no entanto, há
filhos-da-puta
que já nascem grandes
e
filhos-da-puta
que nascem pequenos,
diz o grande filho-da-puta.


de resto,
os filhos-da-puta
não se medem aos palmos,
diz ainda
o grande filho-da-puta.


o grande
filho-da-puta
tem uma grande
visão das coisas
e mostra em
tudo quanto faz
e diz
que é mesmo
o grande filho-da-puta.


por isso
o grande filho-da-puta
tem orgulho em
ser
o grande filho-da-puta.


todos
os pequenos filhos-da-puta
são reproduções em
ponto pequeno
do grande filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.


dentro do
grande filho-da-puta
estão em ideia
todos os
pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.


tudo o que é bom
para o grande
não pode
deixar de ser igualmente bom
para os pequenos filhos-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.


o grande filho-da-puta
foi concebido
pelo grande senhor
à sua imagem e
semelhança,
diz o grande filho-da-puta.


é o grande
filho-da-puta
que dá ao pequeno
tudo aquilo de que ele
precisa
para ser o pequeno filho-da-puta,
diz o grande filho-da-puta.


de resto,
o grande filho-da-puta vê
com bons olhos
a multiplicação
do pequeno filho-da-puta:
o grande filho-da-puta
o grande senhor
Santo e Senha
Símbolo Supremo
ou seja, o grande filho-da-puta.





Alberto Pimenta




(Balada do f.p.-1)

.


.