8.9.08

Raul Brandão (Morria de remorsos)







(Morria de remorsos…)



Uma, duas, três vezes a Natureza me salvou.

Da última apelei para ela num desespero.

Não só a vinha que plantei me pagou generosamente em frutos, como me ensinou muitas coisas que ignorava.

Deste pedaço de terra, desta meia dúzia de campos se mantém o senhor José, a mulher, a filha e os moços - e eu próprio tiro o essencial para a vida.

Encostado a um muro velho, vi desfilar na minha frente jornaleiros e caseiros, figuras da realidade que se entranharam na minha alma para sempre.

Não foi o outro mundo das cidades que me interessou: ao contrário, pareceu-me sempre fantasmagórico.

O mundo que me impressionou foi este.

Eu felizmente sou um mero espectador da agitação lá de baixo e, quase, só do meu canto assisti ao desenrolar de toda a tragédia contemporânea: - queda do trono, revoluções, mortes, gritos…

Senão, morria de remorsos.

E isto não é uma frase: morria de remorsos se tivesse concorrido para a morte dum homem.



- RAUL BRANDÃO, Memórias, III, Balanço à vida.


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